AR - Conto Clássico de Horror - Emília Pardo Bazán



AR

Emilia Pardo Bazán

(1851-1921)

Tradução de Paulo Soriano

 

 — Temos aqui outra louca. Esta, porém, é interessante — disse-me o diretor do manicômio, despois da aflitiva visita à ala feminina. —Outra louca que forma o mais perfeito contraste com as infelizes que acabamos de ver, e que se agarram ao capote dos visitantes com riso cínico... E tenha o senhor em conta que esta louca está apaixonada. Mas apaixonada até o delírio. Fala apenas de seu noivo. Ele, por sinal, desde que a pobrezinha foi internada, não veio vê-la uma vez sequer. Acaso suprimido o amor — creio — esta jovem estaria completamente lúcida. Verdade que a mesma coisa acontece com muitos mortais. A paixão é, talvez, uma espécie transitória de alienação mental, desde que nos civilizamos.

— Não —redargui. —É na Antiguidade onde, precisamente, se encontram os casos característicos da paixão: Fedra, Mirra, Hero e Leandro[1].

—Ah! Mas já então a espécie estava civilizada. Eu me refiro a épocas mais primitivas.

— Sabe Deus — objetei — o que ocorria nessas épocas, das quais não nos restaram testemunhos ou documentos. Induvidoso é que o grande sofrimento por questões sentimentais é um dos tristes privilégios da humanidade, sinal de nobreza e castigo a um só tempo. Podemos ver essa jovem?

—Vamos vê-la. Mas, antes, participarei a você alguns antecedentes. Esta é uma jovem bem-educada, filha de um funcionário, que ficou órfã de pai e mãe e teve que trabalhar para se sustentar. Chama-se, se bem me recordo, Cecília, Cecília Bohorques. Tentou dar aulas de piano, mas não era propriamente uma professora, e por esse caminho nada conseguiu. Pretendeu ser dama de companhia, mas em todos os lugares disseram-lhe que preferiam moças francesas ou inglesas, com as quais se aprende... sabe Deus o quê! Então, a jovem dedicou-se à costura, e assim conseguiu um meio de viver: dizem que tem habilidade e graça com roupas femininas. As clientes a disputavam e queriam sempre tê-la à mão e todos se desfaziam em elogios à sua conduta. Então apareceu-lhe um namorado, o filho do médico Gandea, um rapaz bonitão, algo perdido. Romance veemente, uma novela em ação. Ao que consta, o rapaz queria levar a novela ao último capítulo, mas ela se defendia. Uma defesa que tem muito mérito porque, repito, e os fatos demonstraram, ela se encontrava absolutamente subjugada pelo império da mais fervorosa ilusão amorosa. Um dos sinais que caracterizam o poder desta ilusão é o efeito extraordinário, absolutamente fora de toda relação com sua causa, que produz uma palavra ou uma frase dita pelo ser querido. Dir-se-ia que é como palavra do Evangelho, que se grava indelevelmente nas profundezas da mente, e da qual deriva, às vezes, todo o conteúdo de uma existência humana. Estranho domínio psíquico é este que a paixão exerce!

“O namorado de Cecilia, ao final das cenas em que ele solicitava o que ela negava, dominando toda a torrente de sua vontade rendida, exclamava, em tom depreciativo:

“—Tu não és nada. És mais fria que o ar!

“Com a sua entonação e tudo mais, a frase acusadora cravou-se como uma bala certeira dentro do espírito da moça, e ali ficou, engendrando uma profunda convicção. Ela era, com certeza, apenas ar. Repetia isto o tempo inteiro. E este foi o primeiro sinal de seu transtorno. E assim como quem nada fez de estranho ou inconveniente. Com o mesmo aspecto de pudor e de reserva com o qual você a verá, continuou apresentando-se nas casas das senhoras para quem trabalhava, e destas senhoras partiu a ideia de trazê-la aqui, a fim de que eu me esforce em curá-la. Interessam-se muitíssimo por ela.”

— E o senhor espera curá-la?

— Não — respondeu o médico em tom decisivo e melancólico. — A experiência me demonstrou que estas loucuras de água mansa, sem arrebatamentos, sorridentes, doces, tranquilas em aparência, são as que grudam e não se vão. Não temo as brutais loucuras do sangue, mas as poéticas, as refinadas, as delicadas, as finas alienações. E lhes pus, lá em minha nomenclatura interna, este nome: loucuras do ar.

— Como a de Ofélia[2]! — respondi.

— Como a de Ofélia, exatamente. Aquele grande médico alienista que se chamou — ou não se chamou — William Shakespeare, conhecia maravilhosamente o diagnóstico e o prognóstico...

Depois destas palavras de mau agouro, o médico me conduziu à cela da louca do ar. Estava muito limpo o quartinho, e Cecilia, sentada em uma cadeirinha baixa, olhava pela grade, com ânsia infinita, o espaço azul do céu e o espaço verde do jardim. Apenas voltou a cabeça, ao saudar-nos. Era a demente uma moça magrinha e pálida. Sua face infantil, miúda, seria bonita se fosse animada pela alegria e pela saúde. Mas é certo que há pouquíssimas loucas bonitas, e Cecilia não o era senão pela expressão realmente divina de seus grandes olhos negros cercados de livor azul, e enrubescidos pelo pranto, quando respondeu às nossas perguntas:

— Ele virá. Ele virá para me ver a qualquer momento! Ele me ama intensamente, e eu, convenhamos, não sei dizer que lhe quero. O pior é que, quando ele vier, já não me encontrará. Porque eu, aqui onde os senhores me veem, não sou ninguém, não sou ninguém. Sou mais fria que o ar! Eis o que sou: ar. Não tenho corpo, senhores. E como não tenho corpo, não pude obedecer a ele com o corpo! Pode-se obedecer a alguém com o que não se tem? Não é certo que não? Eu sou tão somente ar. Não acreditam em mim? Se não fosse essa grade, veriam como é verdade que eu sou ar. E no dia que quiserem, apesar da grade, estarão convencidos de que sou ar. E nada mais que ar. Ele me disse, e ele sempre diz a verdade. Sabem os senhores quando ele me disse isto a primeira vez? Foi numa tarde que passeávamos à margem do rio, nas Delícias. Como estava perfumado o campo! Ele queria abraçar-me, mas, como sou ar, não pôde! E, claro, ele se convenceu! Sou ar, somente ar!

Uma gargalhada súbita, infantil, comentou estas declarações. Saímos da cela com a promessa de dizer ao namorado, caso o encontrássemos, que sua amiga o esperava com impaciência. E, em suma, uma semana depois, li nos jornais a notícia. Tinha esta manchete: Acontecimento Novelesco. Novelesco! Vital, queriam dizer, porque a vida é a grande e eterna novelista.

Talvez aproveitando um descuido dos encarregados de sua custódia, presa de uma vertigem, e aferrada à ideia de que era ar, Cecilia subiu ao terraço de um dos pavilhões, pôs-se em pé no beiral e, exalando um grito de prazer (cumpria, enfim, o seu destino), lançou-se ao espaço.

Caiu, de uma altura de vinte metros, sobre um monte de areia. Ficou imóvel, amodorrada pela comoção cerebral. Respirava ainda e viveu agonicamente por mais dois dias. Não recobrou a consciência.

Sua última sensação foi a de tragar o ar, de confundir-se com ele e de nele absorver o filtro da morte, que cura o amor.

 



[1] Personagens da mitologia grega cujas paixões conduziram-nas a um destino trágico.
[2] Personagem da peça Hamlet, do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564 – 1616).





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