O ASA-NEGRA - Conto Macabro - Artur Azevedo
O ASA-NEGRA
Artur de Azevedo
(1855 – 1908)
Quando, em
185... poucos momentos antes de nascer Raimundo, sua mãe curtia as dores do
parto e curvava-se instintivamente, agarrando-se aos móveis e às paredes,
mandaram chamar a toda pressa a única parteira que naquele tempo havia na
pequena cidade de Alcântara.
A comadre
prodigalizava, naquele momento, os cuidados da sua arte hipotética à mãe de
Aureliano, que era mais rica.
Só algumas
horas mais tarde pôde acudir ao chamado; mas já não era tempo: a mãe sucumbira
à eclampsia; o filho salvara-se por um milagre, que ficou até hoje gravado na
tradição obstétrica de Alcântara.
O pobre órfão
devia sofrer, enquanto vivesse, as terríveis consequências, não só da inépcia
das mulheres que assistiram a sua mãe, como do falecimento desta. Era aleijado,
entanguecido, e tinha a cabeça singularmente achatada, nas cavidades frontais,
pela pressão grosseira de dedos imperitos. Um menino feio, muito feio.
*
Quando Raimundo
entrou para a escola, já lá encontrou Aureliano, rapazito lindo, vigoroso e
rubicundo; mas uma antipatia invencível afastou-o logo desse causador
involuntário dos infortúnios que lhe cercaram o berço.
Aureliano, que
era de um natural orgulhoso, não perdia ensejo de vingar-se da antipatia do
outro. Não houve diabrura de que o não acusasse falsamente, e, como Raimundo
não era estimado, por ser feio, não encontrava defesa, e estendia resignado a
mão pequenina às palmatoadas estúpidas do mestre escola. Isto acontecia
diariamente.
O mestre,
afinal. cansado de castigá-lo em pura perda, pois que as acusações continuavam
da parte de Aureliano, expulsou-o da escola; e, como não houvesse outra em
Alcântara, o bode expiatório cresceu à bruta, sem instrução, não tendo achado
no mundo espírito compadecido que lhe levasse um raio de luz à treva da
inteligência medíocre.
Mais tarde
meteram-no a bordo de um barco, e mandaram-no para a capital, consignado a uma
casa de comercio.
Aí encontrou
Raimundo um protetor desinteressado, que lhe mandou ensinar primeiras letras e
rudimentos de escrituração mercantil. A prática faria o resto.
Dentro de algum
tempo o menino, que já contava dezesseis anos, deveria entrar, corno ajudante
de guarda-livros, para certo escritório de comissões; mas oito dias antes
daquele em que devia tomar conta do emprego, morreu inesperadamente o seu protetor.
Entretanto,
Raimundo apresentou-se, no dia aprazado, em casa do futuro patrão.
— Cá estou eu.
— Quem é você?
— O ajudante de
guarda-livros de quem lhe falou o defunto Sr. F.
— Ah! sim...
lembra-me... mas o meu amiguinho chore na cama que é lugar quente; o serviço
não podia esperar, e eu tive que admitir outra pessoa.
E apontou para
um rapaz que, sentado, em mangas de camisa, a uma carteira elevada, parecia
absorvido pelo trabalho de escrita.
— Ah! murmurou
despeitado o infeliz alcantarense.
O outro
levantou os olhos, e Raimundo reconheceu-o: era Aureliano, que tinha os lábios
arqueados por um sorriso verdadeiramente satânico.
*
Passaram-se
alguns meses, durante os quais Raimundo passeou a sua penúria pelas ruas de S.
Luís. Andava maltrapilho e quase descalço.
Arranjou,
afinal, um modesto emprego braçal, numa agência de leilões. Só quatro anos mais
tarde julgou prudente trocá-lo por um lugar de condutor de bonde.
Durante todo
esse tempo, Aureliano, o seu asa-negra, moveu-lhe toda a guerra possível.
Diariamente lhe chegavam aos ouvidos os impropérios gratuitos e as pequeninas
intrigas do seu patrício.
Raimundo
convenceu-se de que Aureliano, rapaz simpático e geralmente estimado na
sociedade em que ambos viviam, nascera no mesmo momento em que ele, como um
estorvo ao mecanismo da sua existência. Era o seu asa-negra.
*
Foi no bonde
que Raimundo viu pela primeira vez os olhos negros e inquietos de Leopoldina.
Não se descreve
a paixão que lhe inspirou essa morena bonita, cujos contornos opulentos
causariam inveja às louras napeias[1]
de Rubens[2].
A rapariga tinha nos olhos a altivez selvagem e nos lábios a volúpia ingênita
das mamelucas. O seu cabelo grosso, abundante e negro, prendia-se, enrolado no
descuido artístico das velhas estátuas gregas, deixando ver um cachaço que
estava a pedir, não os beijos de um Raimundo anêmico e doentio, porém as rijas
dentadas de um gigante.
Pois Raimundo,
que não era nenhum Polifemo[3],
um belo dia conduziu ao altar a mameluca bonita, e até o instante da cerimônia
esteve, coitado, vê não vê o momento em que Aureliano surgia inopinadamente de
trás do altar-mor, para arrebatar-lhe a noiva.
Infelizmente
assim não sucedeu.
Nos primeiros tempos
de casado, tudo lhe correu às mil maravilhas; mas pouco a pouco a sua
insuficiência foi se tornando flagrante. O seu organismo fazia prodígios para
corresponder às exigências da esposa, cuja natureza não lhe indagava das
forças.
As mulheres
ardentes e mal-educadas, como Leopoldina, quando lhe faltam os maridos com a
dosimetria do amor, confundem a miséria do sangue com a pobreza da casa.
Questão de disfarçar sentimentos, e de aplicar o abstrato ao concreto.
Leopoldina, que até então se contentara com a áurea mediocritas relativa do
condutor de bonde, começou um dia a manifestar apetites de luxo, a sonhar
frandulagens[4] e
modas.
De então em
diante tornou-se um inferno a existência doméstica de Raimundo. Ano e meio
depois de casado, ele evitava a convivência da esposa, jantava com os amigos, e
só aparecia em casa para pedir ao sono forças para o trabalho do dia seguinte.
*
Mas, de uma
feita em que se viu forçado a ir à casa em hora desacostumada, surpreendeu
Leopoldina nos braços hercúleos de Aureliano.
Excitado pelo
desespero, cresceu para eles frenético, espumante; mas os quatro braços infames
desentrelaçaram-se das criminosas delicias, e repeliram-no vigorosamente.
O pobre marido
rolou sobre os calcanhares, e caiu de chapa, estatelado, sem sentidos.
Quando voltou a
si, os dois amantes haviam desaparecido.
Raimundo não
derramou uma lágrima, e voltou cabisbaixo para o trabalho.
Ao chegar à
estação dos bondes, o chefe de serviço repreendeu-o, fazendo-lhe ver que a sua
falta se tornara sensível. Despedi-lo-ia, se não fosse empregado antigo, que
tão boas provas dera até então de si.
O alcantarense
ergueu a cabeça. Os olhos desvairados saltavam-lhe das órbitas com lampejos
estranhos. E respondeu coisas incoerentes. Estava doido.
Dali a uma
semana, foi para Alcântara, requisitado por um tio, derradeiro destroço de toda
a família.
Pouco tempo
durou, iludindo a vigilância do parente, saiu de casa uma noite, e atirou-se ao
mar, afogando consigo as suas desgraças nas águas da Baía de São Marcos.
*
Dois dias
depois deste suicídio, a Ilha do Livramento, árido promontório situado perto de
Alcântara, em frente àquela Baia de São Nilarcos, regurgitava alegremente de
povo. Realizava-se a festa de Nossa Senhora, e os fiéis afluíam, tanto da
capital como de Alcântara, à velha ermida solitária.
Aureliano,
alcantarense da gema e figura obrigada de todas as festas e romarias,
compareceu também ao arraial, exibindo publicamente a sua personalidade, que se
tornara escandalosa depois do adultério de Leopoldina.
No Maranhão as
paredes não têm somente ouvidos, como diz o adágio: têm também olhos.
*
Conquanto o
céu anunciasse próxima borrasca, Aureliano resolveu deixar a Ilha do Livramento
e embarcar, ao escurecer, numa delgada canoa, em demanda de Alcântara, onde
tencionava pernoitar. A empresa era sem dúvida arriscada; mas lá, na colina
escura que se refletia vagamente nas águas negras da baía, esperam-no os braços
roliços da viúva do doido.
Embarcou.
Acompanhava-o
apenas um remador, que desde pela manhã tomara a seu serviço.
*
Em meio da
viagem, soprou de súbito rijo nordeste, e o mar, que até então se conservara
plácido e próspero, encapelou-se raivoso. Em três minutos as ondas esbravejavam
já terrivelmente, e a canoa, erguida a grande altura, e de novo arremessada ao
pélago, num estardalhaço de vagas, recebia no bojo quantidade de água
suficiente para metê-la a pique.
— Cada um
cuide de si! bradou o remador, atirando-se ao mar, e oferecendo combate heroico
à impetuosidade das ondas. Nadava que nem Leandro.
Aureliano
viu-se perdido. A canoa mergulhava. Ele não sabia nadar, o desgraçado!
Preparou-se para morrer...
A embarcação
submergiu-se.
O náufrago
agitava instintivamente os braços e as pernas, esperando talvez que o desespero
lhe ensinasse milagrosamente uma prenda que nunca aprendera.
Debalde!
Foi ao fundo,
vertiginosamente. Voltou de novo à tona d'água, chamado à vida pelo seu sangue
de moço. Bracejou... tentou bracejar... A sua mão encontrou alguma coisa fria.
muito fria... que flutuava. Agarrou-se a esse objeto salvador... boiou muito
tempo com ele... e com ele finalmente foi arremessado à praia...
O cadáver de
Raimundo salvara Aureliano.
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