O DIABO DENTRO DE UM RELÓGIO - Conto Clássico - Lenda



O DIABO DENTRO DE UM RELÓGIO
Anônimo francês do séc. XIX


Certa feita, vira-se o diabo perseguido por um exorcista.
Para livra-se dele, entra transido de medo na triste morada de um pobre homem. Vendo um relógio, único móvel do casebre em ruínas, e tapetado de teias de aranha, ali se encarrapita, suando, bufando misericórdia ao dono da casa, com uns trejeitos e caretas de causar dó.
— Rua, mestre satanás — gritou-lhe o aldeão — senão vou chamar o senhor cura, que anda, a muito tempo, em teu encalço, e terás de haver-te com a água benta!
—Não me denuncies! Peço-te em nome da hospitalidade! — rosnou o demônio, tremendo até a raiz dos cabelos e encolhendo-se a mais não poder em sua estreita clausura.
— Um hóspede, como tu, só pode ser mensageiro de desgraças. Fora daqui! Despeja o beco!
—Não me entregues, por quem és, que eu juro não atormentar a tua alma nem neste e nem no outro mundo.
—Era o que me faltava... fazer eu paco contigo! És um grande trapaceiro. Põe-te fora já!
—Não me vendas, que eu e darei mais ouro do que pode caber neste quarto.
Dito isto, o diabo fechou a porta do relógio e o aldeão, tornando-se pensativo, não saiu da casa.
Nessa hora, passava o padre, rezando e fazendo aspersões. Mas o camponês não o chamou.
Depois que o pároco passou, o diabo quis esgueirar-se sem pagar, mas o espertalhão do camponês, que já sabia da má-fé do devedor, acudiu:
— Não penses que hás de enganar-me.  — E empurrou com toda força a porta do relógio. — Eu fiz o que tratei. É chegada a tua vez, velhaco!
—Pois sim! — disse o diabo, falando lá de dentro de seu esconderijo. —Toda vez que a campainha deste relógio bater as doze pancadas do meio-dia, e também as da meia-noite, acharás doze moedas de ouro nu fundo da caixa.
O camponês, meio incrédulo, recuou um passo, acompanhando com ansiedade o movimento dos ponteiros do relógio, que neste momento se encontravam precisamente no ponto das doze horas. O diabo saiu então muito devagar de sua prisão, bateu meio-dia, e ouviu-se o tinido metálico das moedas de ouro.
—Adeus, amiguinho! Estamos quites? Serve-te das tuas riquezas, mas — cuidado! — nada de abusar.
Com as doze primeiras moedas de ouro, o nosso homem comprou uma porção de terreno contíguo ao seu jardim e que ele tinha em mira havia trinta anos.
Depois, à medida que o ouro se acumulava, crescia na mesma proporção a ambição do camponês.
Uma vinha seguia-se àquele terreno, um campo à vinha, um bosque bem plantado cercava o campo, depois uma granja, adiante uma aldeia, situada ao pé do castelo. Era um nunca acabar.
As doze pancadas do relógio não se fazia ouvir senão duas vezes em vinte e quatro horas. Mas a insaciável cobiça do vilão enriquecido batia a toda hora do dia e da noite, quer ele dormisse, quer velasse.
Esta sede de ganho degenerava já em mania, em loucura. O mísero, esquecendo a advertência que o diabo lhe fizera, pôs-se a fazer girar os ponteiros do relógio com dedo febricitante.  A horas, então, soavam desesperadamente, e as moedas pulavam no fundo da caixa com satânico tinido.
— Venha a mim!  Venha a mim tudo o que se compra! — exclamava ele com os olhos turvados pela embriaguez do ouro.
Empilha então as moedas em alforjes, põe os alforjes em uma carreta puxada por bestas e ei-lo a caminho da cidade.
Chega a Paris, fazendo estalar o chicote durante a viagem e mais ainda à porta do tabelião, em cujo cartório encontra-se com o senhor de sua aldeia, aflito por alienar os seus títulos e terras por somente um bom milhão.
O milhão, que o camponês desembolsara, foi contado.
Mas — ai! — desta vez o diabo, que não se deixara enganar pela astúcia do camponês, pagara em moeda falsa!


O camponês foi preso, processado e enforcado. E como, na transação com o compadre, não tivera a cautela de reclamar, a título de luvas, a salvação de sua alma, entregou-a, toda gangrenada pelo pecado da avareza, ao grão-diabo do inferno!

Fonte: Gazeta de Joinville, edição de 28 de janeiro de 1879.

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