OS RUTILANTES - Contos de Terror - Luciano Barreto
OS RUTILANTES
Luciano Barreto
Era tarde.
Passava das três horas da manhã. Enquanto Cleide retornava do banheiro percebeu
uma iluminação pelas frestas da porta da sala. Correu ao quarto a fim de
despertar o marido. A luz não se estagnava na porta. Passava lentamente pelas
janelas e pela porta outra vez. Alguém, com uma lanterna, parecia circundar a
pequenina casa. A varanda não possuía nenhuma luz. Isso não trouxe boas
interpretações a ela que, ao virar-se, já em seu quarto, apavorou-se ao olhar o
rosto de sua filha maquiado por uma lúgubre réstia da porta.
— Eu os vi pelo
buraco da fechadura. São magros, rápidos e medonhos, pois brilham na escuridão.
Eles têm tentáculos no crânio, perto das orelhas. Suas cabeças são obovais.
Seus olhos, brilhantes, não denotam boas intenções – resumiu a menina que tinha
o rosto à sombra.
A adolescente
estava excitada com a celeuma que se iniciara devido à chegada das luzes
brilhantes que rodeavam a pequena casa.
— Menina, quem
ordenou a você fazer isso? Eu sou seu pai e mando em você.
— Eu apenas os
olhei, pai – disse a menina que tinha dezessete anos e chamava-se Vilma. Ela
estava num torpor aterrador. Os três estavam numa casa distante do centro de
uma pequenina cidade do interior fluminense. Vinte quilômetros separavam aquela
simples casa, de telhas francesas, de outra mais ao norte. Os cômodos eram
separados por paredes altas, mas incompletas. A casa não possuía foro no teto.
Sérgio abriu o
armário e armou-se de um rifle com cano duplo. Depois os três seguiram para a
sala. A menina aos empurrões. Numa ação investigativa, Cleide deu um grito
quando avistou uma das criaturas. O ser apareceu, brilhante, depois que ela
abriu o vidro da janela lentamente. Da escuridão da varanda havia surgido um
rosto com tentáculos balouçantes que emanavam uma luz de matiz jamais vista por
um ser humano. Uma cor inclassificável. Numa intensidade chamejante.
— Ah! – Um
grito de horror e ela empurrou a babinela, trincando o vidro.
— O que foi? –
Perguntou Sérgio, que estava, de cabeça baixa carregando a arma.
— Também acabei
de ver um. Era horrível. Tinha cobras brilhantes que se moviam em suas orelhas.
Era um vulto de uma coloração estranha. Eu nunca vi aquela cor. Nunca vi. Oh, meu Deus. Eu jamais vi aquela cor horrível.
— Sai da
frente – ordenou o homem, que posicionou os canos da arma no babinela e puxou o
gatilho. O som ecoou pela casa, reverberou no teto e voltou, deixando os
adultos apavorados. O lado de fora continuou silente após o tiro.
— Será que você
o acertou? – questionou a esposa.
— Que eles não
nos ouçam, mas são ignóbeis e espertos – concluiu a menina.
— O que sabe
sobre essas coisas, sua xereta?
— Eles estão aqui antes de nós. Antes de todos
nós. Têm algo que o humano sempre sonhou: a invisibilidade, que para eles não é
de grande valia. Pois só são perigosos na escuridão...
A conversa foi
interrompida por sons oriundos do telhado.
— Deus! Estão
no telhado! – gritou Cleide, em pânico.
— Sim. Já, já eles... — a pausa na fala
da menina pareceu demorar uma eternidade e assustou os adultos – irão entrar — profetizou a jovem.
— Se você não fosse minha filha, eu atiraria em você. Poderia
jurar que você é um deles. Como sabe isso tudo? – indagou o pai com o rifle
apontado para a menina.
— Foram
contatos oníricos. Começou com um terrível pesadelo. Mas agora é um sonho – relatou a adolescente, lacônica.
O chefe da
família apontou o rifle para o teto, mas foi interrompido pela esposa.
— Shhh! Ouçam.
Está tudo quieto demais.
Segundos depois, Cleide tornou a gritar ao ver
uma telha sendo retirada do lugar, deixando um buraco no teto que mostrava um
pedaço do céu noturno. Um céu nublado com nuvens rosadas.
— Olhe o
telhado, Sérgio. Abriram o telhado. Atire neles! Mate-os! – a esposa berrava de
horror.
— Merda! – A
arma bailou, um pouco, em suas mãos, mas ele atirou duas vezes pelo buraco
destelhado. Não atingiu nada.— Será que já entraram? Vou procurá-los nos
quartos e já volto.
— Não! – Gritou a esposa. Mas o homem a ignorou e partiu.
Voltou em alguns minutos.
— Não estão
aqui. Ouviram os tiros e correram com medo. Tiveram medo de levar chumbo.
A menina
sentou-se na cadeira com um sorriso estranho. Ficou perto do interruptor de
luz. Com uma fleuma medonha, entoou uma canção assustadora que parecia ser uma
profecia em forma de música.
Eles são antigos,
Não são amigos
E Louvam o mal
Apaga a luz e verás;
São apavorantes.
Eles são os rutilantes...
Não completou a
frase. Apagou a luz e silhuetas brilhantes e de cores estranhas habitaram a
sala. O horror fez a mulher berrar, outra vez, histérica. Seu grito misturou-se à voz de Vilma, que tornou a cantar a lúgubre letra, acompanhada por uma melodia
apavorante, a qual parecia emanar das luzes que contornavam os seres, e foi
abafado depois que uma silhueta moveu-se rápido ao seu encontro. Somente um
baque surdo tornou-se audível. Algo sendo quebrado. Talvez um pescoço. Sérgio
engatilhou o rifle e disparou várias vezes em direção à cor que calou sua
esposa. Vilma ria loucamente sobre a cadeira e gritava “Só aparecem na
escuridão. Só os vemos na escuridão. Não fiquem na escuridão com eles.”. Depois
que a arma do homem caiu ao chão, ele urrou de dor. Havia duas silhuetas
imensas perto de dele, que balançavam em movimentos decididos. Vilma calou-se
quando reacendeu a luz incandescente da sala. Reparou no corpo de sua mãe, com
vários orifícios feitos pelos projéteis saídos do rifle, que tinha o rosto
virado quase totalmente para trás numa cena tétrica. Ao lado, um amontoado de
carne misturado a roupas. A jovem percebera que aquilo, há poucos minutos, fora
seu pai. Caminhou até o centro do cômodo e falou, enquanto olhava ao redor. Com
olhos investigativos e trêmulos.
— Pronto. Agora
quero ser uma de vocês. Levem-me daqui. Levem-me desta vida inoportuna.
Então ela
assustou-se quando escutou a lâmpada quebrar-se e a escuridão a engoliu como um
tubarão engole um pequeno peixe. Vilma não estava preparada para aquele momento
caliginoso. Estava rodeada dos seres brilhantes com tentáculos tremeluzentes.
Um deles introduziu um tentáculo fosforescente no ouvido da jovem com uma
rapidez estupenda que a impediu de qualquer reação. Tocou, com as ventosas
malignas, seu cérebro. A extrema dor que sentiu, a fez "zumbrir-se". Os fluidos
que deixavam seu corpo, via tentáculo, faziam pulsar a horrível cor que
chamejava do rutilante. Por fim, tornaram-na um zumbi que passou a lucilar,
pelos olhos, a mesma cor indescritível. Mas Vilma tinha uma bizarra diferença.
Poderia ser vista na claridade. Era visível.
Nisto, a
criatura-zumbi, após um pigarro assustador, exclamou de dentro da escuridão com
uma voz apavorante:
— Vamos para o
norte. A vinte quilômetros daqui existe outra casa.
Um rutilante saiu de sua
frente e deu passagem ao zumbi, que foi à cozinha, caminhando na escuridão. Eles
seguiram-na numa procissão maligna. Lá, ela acendeu um candeeiro. Tinha um
rosto macilento na claridade. Abriu as tramelas da porta lentamente e pôs-se a
caminhar para o norte. Meia hora mais tarde, iluminada pela fraca luz do lume
que carregava, escutou o som de um veículo se aproximando. Percebeu a iluminação
dos faróis. Quando o carro encostou ao seu lado, levantando poeira, ela
constatou, sem qualquer reação, que era uma viatura da polícia estadual. O
policial a inquiriu sobre o que pretendia fazer naquele lugar ermo àquela hora
da madrugada e se estava tudo bem. A jovem pediu para que os policiais
desligassem os faróis. Mentiu, astutamente, dizendo que havia um bandido
escondido atrás de uma moita, perto da cerca de arame farpado. Os policiais
pegaram duas lanternas, desligaram os faróis, sacaram as armas, desceram
lentamente do veículo e perceberam quando ela quebrou o candeeiro na lataria do
carro de polícia, deixando-os na mais profunda escuridão. Apontaram a arma para
os dois olhos brilhantes da jovem, mas quando a ouviram cantar, em voz baixa,
estagnaram-se de horror.
Eles são antigos,
Não são amigos
E Louvam o mal
Apaga a luz e verás;
São apavorantes.
Eles são os rutilantes...
Foi pelo vidro
traseiro da viatura que um dos policiais viu os contornos, de cores
inenarráveis, bailando num crânio oboval, orlado com membros tentaculiformes. O
homem girou, tentando surpreender o que quer que fosse, mas antes de findar o
movimento já estava morto. O grito do outro policial denotou muita dor na hora
da morte. A menina-zumbi ficou extática a olhar as estranhas cores moverem-se
rápidas e cruéis durante o ataque. Em seguida, pegou uma das lanternas no chão
e continuou seu caminho. Então, as primeiras gotas de chuva começaram a cair. A
sorte dos moradores daquela casa, mais ao norte, era que em poucos minutos
amanheceria. Contudo, essa sorte estaria fadada ao término. Pois o dia não
duraria para sempre.
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