PARA NOITE DE INSÔNIA - Conto Clássico de Terror - Horácio Quiroga


PARA NOITE DE INSÔNIA

Horacio Quiroga

(1878 – 1937)

Tradução: Paulo Soriano

 

 

Nenhum homem, eu repito, narrou com igual magia as exceções da vida humana e da natureza; os ardores de curiosidade da convalescença; os finais de estações carregados de esplendores enervantes, os tempos mornos, úmidos e brumosos, em que o vento do sul amolece e distende os nervos como as cordas de um instrumento, em que os olhos se enchem de lágrimas que não vêm do coração; a alucinação deixando a princípio margem para dúvida, e, depois, convicta e racional como um livro; o absurdo se instalando na inteligência e governando-a com uma lógica aterrorizante; a histeria usurpando o lugar da vontade, a contradição estabelecida entre os nervos e o espírito; o homem discorde consigo mesmo a ponto de exprimir a dor pelo riso.

Baudelaire: “Vida e obras de Edgar Poe”

 

 

A fatal notícia nos surpreendeu a todos. E ficamos aterrorizados quando um criado nos trouxe ― voando ― os detalhes de sua morte. Embora notássemos, há muito tempo, sinais de desequilíbrio em nosso amigo, nunca pensamos que ele poderia chegar a tal extremo. Ele havia praticado o mais pavoroso suicídio, sem deixar ao menos uma lembrança para nós, seus amigos. E quando o tivemos em nossa presença, viramos o rosto, tomados por uma compaixão horrorizada.

Aquela tarde úmida e nublada aguçava a nossa sensibilidade. O céu estava pálido e uma neblina fosca cruzava o horizonte.

Conduzimos o cadáver em uma carruagem, fortemente unidos por um horror crescente. Acima, vinha a noite. E pela portinhola mal fechada caía um rio de sangue que marcava de vermelho a nossa marcha.

Ele ia estirado sobre nossas pernas e as últimas luzes daquele dia amarelento incidiam de chofre em seu rosto violado por manchas lívidas. Sua cabeça era sacudida de um lado para o outro. A cada golpe no calçamento de pedra, suas pálpebras se abriam e ele nos mirava com olhos vítreos, duros e embaçados.

Nossas roupas estavam empapadas de sangue. E pelas mãos dos que seguravam o seu pescoço deslizava uma baba viscosa e fria que, a cada sacolejo, brotava de seus lábios.

Desconheço a causa, mas creio que nunca em minha vida senti semelhante sensação. Ao simples contato com os seus membros rígidos, sentia um calafrio em todo corpo. Estranhas ideias supersticiosas enchiam a minha cabeça. Meus olhos adquiriam uma fixidez hipnótica ao fitá-lo e, no horror de minha imaginação, parecia-me vê-lo abrir a boca num esgar pavoroso, cravar-me o olhar e atirar-se sobre mim, enchendo-me de sangue frio e coagulado.

Meus cabelos se eriçavam, mas não pude nada mais que soltar um grito de angústia, convulsivo e delirante, e jogar-me para trás.

Naquele momento, quando já era completamente noite, o morto escapuliu de nossos joelhos e caiu no fundo da carruagem. Na escuridão, apertamos as nossas mãos, tremendo de cima abaixo, sem que nos atrevêssemos a um olhar recíproco.

Todas as antigas ideias de criança, crenças absurdas, se encarnaram em nós. Levantamos as pernas para os assentos, inconscientemente, cheios de horror, enquanto o morto, no fundo da carruagem, sacolejava de um lado para o outro.

Pouco a pouco, nossas pernas começaram a esfriar. Era um gelo que emergia do fundo, que avançava pelo nosso corpo, como se a morte fosse-nos contagiando. Não nos atrevíamos a um mínimo movimento. De quando em quando, nós nos inclinávamos para o fundo e ficávamos olhando por bons instantes a escuridão, com os olhos terrivelmente abertos, acreditando ver o morto que se recompunha com um esgar de delírio, rindo, fitando-nos, introduzindo a morte em cada um de nós, rindo-se, aproximando às nossas a sua cara, fazendo-nos crer que à noite veríamos brilhar os seus olhos, e ria-se, e ficávamos gelados, mortos, mortos, naquela carruagem que nos conduzia pelas ruas molhadas...

Nós nos encontramos de novo na sala, todos reunidos, sentados em fileira. Haviam posto o caixão no centro da sala e não haviam trocado a roupa do morto, por já estarem muito rígidos os seus membros. Ele tinha a cabeça ligeiramente inclinada, com a boca e o nariz tapados com algodão.

Ao vê-lo novamente, um tremor nos sacudiu todo o corpo, e só nos olhamos furtivamente. A sala estava cheia de gente que se cruzava a cada momento, e isto nos distraía um pouco. Somente de quando em quando observávamos o morto, inchado e verdoso, que estava estirado no caixão.

Transcorrida meia hora, senti que me tocavam e me voltei. Meus amigos estavam lívidos. Ao lugar em que nos encontrávamos, o morto voltava o seu olhar. Seus olhos pareciam crescidos, opacos, terrivelmente fixos. Sem que nos déssemos conta, a fatalidade nos conduzia ao seu olhar, como se estivéssemos unidos à morte, ao morto que não queria nos deixar. Ficamos amarelos, os quatro, imóveis ante a face que, a três passos, se voltava para nós, sempre para nós!

Deram quatro horas da manhã e ficamos completamente sozinhos. Instantaneamente, o medo voltou a apoderar-se de nós.

Primeiro, um trêmulo estupor; depois, um desespero desolado e profundo; por fim, uma covardia inconcebível a homens de nossas idades, um pressentimento preciso de que algo terrível iria acontecer. 

Lá fora, a rua estava repleta de brumas e o latido dos cães prolongava-se num uivo lúgubre. Aqueles que, excitados como estávamos agora, já velaram um morto e, de repente, perceberam que estavam a sós com o cadáver, e ouviram o súbito lamento de um cão ou o crocitar de uma coruja na madrugada de uma noite de morte, assim sozinhos com o defunto, compreenderão a nossa sensação, posto que já estávamos sugestionados pelo medo, e assaltados, às vezes, pelas terríveis dúvidas quanto à horrível morte do amigo.

Como disse, ficamos sós. Pouco depois, um ruído surdo, como um balbucio apressado, percorreu a sala. Saía do caixão, onde estava o morto, ali, a três passos. E o víamos bem, levantando o busto com os algodões esponjados, horrivelmente pálido, olhando-nos fixamente, e víamos como se recompunha pouco a pouco, apoiando-se às bordas do ataúde, enquanto nossos cabelos se eriçavam e nossas testas se cobriam de suor, enquanto o balbucio se fazia cada vez mais ruidoso, e soou uma risada estranha, extra-humana, como se vomitada, estomacal e epiléptica, e nos levantamos desesperados, e nos lançamos a correr, apavorados, loucos de terror, perseguidos de perto pelas risadas e pelos passos daquela pavorosa ressurreição.

Quando cheguei a casa, entrei no quarto e puxei os lençóis ― sempre fugindo, vi o morto estirado na cama, amarelando à luz da madrugada, morto com meus três amigos, que estavam gelados, todos estirados na cama, gelados e mortos...



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