A SOMBRA RASTEJANTE - Conto de Terror - Rogério Silvério de Farias




A SOMBRA RASTEJANTE
Por Rogério Silvério de Farias

(Para P. Soriano, H. Evaristo e Linx, desbravadores temerários do grotesco e do inverossímil, os que rasgaram o véu dos sonhos negros e abissais)


Eu vi o horror. Ele é negro e medonho, viscoso e imundo. Rasteja ligeiro nas sombras da noite. É uma coisa ímpia e iníqua, uma blasfêmia viva e sórdida, aterrorizante, uma entidade demoníaca não deste mundo, mas das múltiplas cloacas purulentas das profundezas do Inferno;  uma vida atemporal banida, exilada na Terra, coexistindo conosco, agora e para todo o sempre, aqui, nesta esfera insana onde nós, tolos mortais, padecemos na miséria do nada de nossa triste condição humana.

Senhores, sou um pobre miserável e desgraçado por ter o dom de ver coisas que perambulam na escuridão maldita da noite. Ter essa estranha faculdade, essa clarividência lancinante, me faz sofrer; destarte, desejo morrer o quanto antes.

Rezo a Deus toda noite para que me mate o quanto antes, me liberte dos grilhões obscenos da clarividência contumaz, deste fardo sinistro e pungente que se tornou minha vida.

Mas se Deus não atender minhas preces, então que vá para o Inferno! A corda ao redor do meu pescoço aliviar-me-á deste destino maldito, deste suplício, deste anátema insuportável e indizível.

E tudo começou com meus estudos inauditos e proibidos. Debruçado sobre tomos e brochuras antigas, onde o conhecimento oculto milenar era revelado em páginas profanas, mofadas e ímpias. Todo o conhecimento pagão condensado naqueles livros medonhos, abertos à minha mente excêntrica e inquieta!

Sou o último de uma família arruinada, amaldiçoada pela miséria e pelo infortúnio. Meu pendor para as Artes me levou para a pintura e a poesia. Fui um fracasso total em ambas. Meus quadros, num estilo bizarro e grotesco, jamais consegui vendê-los; minha poesia nunca foi aceita e publicada: meus versos falavam do medo, do terror que antecede a hora do sono, do outro lado da meia-noite, dos demônios que rastejam na penumbra das madrugadas, nas catacumbas da loucura.

No amor também tive decepções. Casei-me tarde: eu tinha 38 anos quando conheci Nalva. Uma musa que durante dois belos anos me fizera conhecer os sóis balsâmicos do carinho, da amizade, da ternura. Juntos passeávamos de mãos dadas pelo bosque atrás do velho sobrado que eu herdara de meu pai, Edgar Howard Bierce, que  se suicidara ainda quando eu era pequeno, ao saber que minha mãe o traía.

Os raros e poucos anos de felicidade que tive foram ao lado de Nalva. Seu sorriso era algo mágico, encantador. Seus cabelos lembravam a cor do ouro. Seus olhos também sorriam e me transmitiam um amor cândido, puro, sacrossanto. E seus lábios eram os frutos rubros do paraíso dos prazeres eróticos.

Nos troncos dos salgueiros, à beira do lago plácido atrás de nossa casa, eu escrevera, na primavera do meu amor, com a ponta de um canivete, juras de amor eterno à bela Nalva. Passávamos os dias ali, entregues a um namoro que prometia ser eterno, mesmo no casamento. Foram os dias mais felizes de minha vida. A beleza física de Nalva era tão divina quanto a beleza de seu caráter e de sua alma juvenil.

Foi no fim do Outono de 1975 que Nalva adoeceu. Um mal terrível. Incurável. Todos os tratamentos foram feitos, até que o médico a desenganou. Mandara Nalva morrer em casa, ao meu lado, como ela queria.

Nessa época, a aparência de Nalva tinha sofrido uma grotesca metamorfose. Outrora bela e viçosa, agora ela estava magra, lívida, os olhos tristes. Devido à doença e os tratamentos, seus  cabelos haviam caído, deixando a cabeleira curta e rala. Seu modo de vestir-se também mudara: outrora, ela vestia-se com roupas alegres e coloridas, mas agora ela passara a trajar-se com vestidos negros que contrastavam com sua pele muito branca.

Logo a morte levou para sempre o meu amor; Nalva morreu no crepúsculo de um dia frio, em meados de Junho.

Revoltado contra todos os deuses que regem o destino dos homens, passei a praticar a magia negra.

Muitas noites, no cemitério, em ravinas sombrias ou em pântanos grotescos, tentei evocar a alma de Nalva, mas do reino dos mortos só surgiam efígies falsas, sombras ou simulacros do espírito de minha amada. Logo percebi ser impossível chamar alguém que, por certo, alcançara o nirvana.

Ainda mais rebelde e desgostoso com meu destino, passei a invocar entidades tenebrosas, com o escopo esdrúxulo de zombar dos deuses das Leis Cósmicas que me impuseram tanto infortúnio, na vida e no amor.

Certa noite, num bosque escuro, invoquei, através do Opúsculo de Zerbetreon, um formulário de teurgia negra, aquele horror blasfemo e atemorizante, uma sombra, uma sombra negra, fria como uma lesma de um pântano do Inferno.

E agora, hoje, passadas duas horas desta invocação maldita, eis-me aqui, na choupana abandonada, rabiscando neste diário tudo o que fiz e tudo o que aconteceu comigo.

Corri para cá, porque a sombra rastejante me persegue, a sombra maldita que eu invoquei dos mundos além da tumba!

A porta!...A porta...vejo pelas frestas...uma sombra...é ela! Ela veio! A sombra sinistra do Além, a entidade tenebrosa das dimensões infernais...ela rasteja, posso ouvir...posso sentir o frio emanado de sua carne astral-etérica de trevas.

Deus me perdoe! Deus me ajude!...


Oh, meu Deus! A sombra! A sombra veio para me matar, pois eu a tirei de seu mundo, nas vastidões escuras do reino assombroso de Hades!

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