O FANTASMA - Conto Fantástico - Mauren Guedes Müller
O FANTASMA
Por Mauren Guedes Müller
Alberto ouviu a voz grave de
seu pai dizer, no tom severo a que se acostumara:
– Levante-se!
Abriu os olhos e sentou-se na
cama. Olhou em volta. Não havia ninguém com ele no quarto, o que não era
surpresa, já que seu pai não poderia ter-lhe falado. Afinal, estava morto há
cinco anos. Mas foi surpresa, ao menos por alguns instantes, a percepção do lugar
onde se encontrava. Até que concatenou um pouco as ideias e se lembrou de
haver-se hospedado naquele motel barato, embora ainda estivesse confuso e não
se lembrasse de por que o fizera.
Alberto se levantou e se
vestiu. Sentia muita sede. Foi até o banheiro, onde encontrou um copo, encheu-o
na torneira e bebeu de um gole só. Repetiu o procedimento mais três vezes.
Saiu do quarto, trancou-o e
passou pela portaria do motel, largando a chave sobre o balcão. O atendente
estava ao telefone e não lhe dirigiu a palavra, sequer o olhou. Alberto saiu
para a rua e consultou o relógio de pulso. Nove horas.
Fez sinal para um ônibus, mas o
ônibus não parou. Devia estar lotado. Então, acenou timidamente para um táxi,
mas o táxi também não parou. Não deu importância. Talvez fosse mesmo bom
caminhar um pouco. Percorreu a pé todo o percurso até o prédio comercial onde
tinha um escritório de advocacia. Quando chegou no prédio, entrou sem
cumprimentar o porteiro. Tinha o hábito de fazer assim. Alberto passava a impressão
de ser um arrogante, mas, na verdade, não passava de um tímido. Não
cumprimentava por vergonha de si mesmo. Chamou o elevador, mas o elevador não
veio. Suspirou e dirigiu-se à escada. Subiu os quatro andares, devagar. Começou
a sentir fome. Mas não deu importância.
Quando chegou diante de seu
escritório, a porta se encontrava fechada, com uma placa de “aluga-se”. Embora
já esperasse por algo assim, o desagrado o invadiu e Alberto deixou escapar,
muito baixinho, quase para dentro, um palavrão. Fazia meses que não pegava um
processo novo e os antigos que tinha não andavam. Consequentemente, não pagava
o aluguel. Pegou a chave e tentou metê-la na fechadura. O proprietário,
aparentemente, estava mesmo disposto a impedir-lhe a entrada, porque trocara o
segredo. Pensou em ir atrás dele, em exigir que observasse os prazos e
procedimentos legais, mas a lassidão que o caracterizava o fez desistir. Desceu
as escadas, derrotado, e caminhou lentamente para casa.
Ia caminhando pela rua, olhando
fixamente para o chão, quando se lembrou do fato de ter ouvido a voz de seu
pai, pela manhã. Só então começou a pensar se havia sido mais do que um sonho.
Ouvira-a tão nitidamente... Seu pai sempre fora um homem severo. Nunca lhe dera
dinheiro. Também nunca deixara que lhe faltasse nada – comida, roupa, estudos.
Mas jamais lhe entregara uma nota sequer nas mãos, para que gastasse com o que
bem entendesse, como seus amigos faziam. Todas as vezes em que o desobedecera,
quando criança e mesmo quando adolescente, seu pai havia tirado o cinto e lhe
dado uma surra. Lembrava-se dele com mágoa. Sentira um certo alívio quando ele
havia morrido, e, embora se culpasse por isso, não conseguira esconder.
Mas agora tinha certeza de uma
coisa: já estava acordado quando ouvira a voz de seu pai, no quarto do motel.
Acordado, mas sem ânimo, sem forças para se levantar, apesar da sede. E teria
ficado deitado naquela cama, talvez até morrer de inanição, se aquela voz rude
não o houvesse sobressaltado a ponto de fazê-lo se levantar.
Então, ergueu a cabeça e olhou
em volta. As pessoas não reparavam nele. Ninguém parecia notá-lo. Tornou a
baixar os olhos e se encolheu ainda mais. Alberto já era franzino, e costumava
adotar uma postura que o tornava ainda menor. Um homem esbarrou de leve nele, e
seguiu seu caminho, sem nem ao menos pedir desculpas. Mas uma coisa o incomodou
bastante. Foi uma sensação estranha, ao mesmo tempo insólita e assustadora.
Parecera a Alberto que, embora
ele tivesse sentido o encontrão do homem, o homem não sentira o raspar de seu
corpo...
Alberto chegou em casa e meteu
a chave na fechadura. Desta vez, a porta se abriu. Entrou, em silêncio. Foi
quando ouviu uma risada alegre, espontânea, livre, acompanhada de algumas
palavras. Reconheceu a voz de sua esposa. Estremeceu. Há muitos, muitos anos
não a ouvia rir daquela maneira. Esgueirou-se até o quarto. A porta estava
entreaberta. Olhou pela fresta e teve um choque.
Sua mulher estava na cama, nua,
juntamente com outro homem, um amigo dela.
Alberto recuou, devagar, até a
sala, e deixou-se cair no sofá.
De repente, lembrou-se de tudo.
Descobrira a traição. Comprara
as pílulas para dormir e alugara o quarto de motel, disposto a...
– Estou morto – murmurou, num
fio de voz.
Era por isso que as pessoas
pareciam não notá-lo. Não o notavam, mesmo, porque ele não era mais do que um
fantasma. Era por isso que o senhorio se apressara em pôr seu escritório para
alugar e trocara a fechadura. Era por isso que sua mulher estava na cama, com
outro homem, em plena luz do dia...
De repente, ergueu a cabeça e
deparou-se com uma figura, em pé. Era seu pai. Quando o viu, sua respiração se
trancou por um momento. Seu pai cravou-lhe os olhos, penetrantes, numa
expressão de censura que lhe dava a impressão de estar nu diante dele, ou de
ter sido surpreendido nalgum ato muito vergonhoso. Alberto sentiu o rubor
aquecer-lhe o rosto e baixou os olhos.
– Pai – disse.
– Você, hem? – respondeu-lhe o velho. – Você só me dá
vergonha...
Alberto o espiou, de canto de
olho.
– O senhor veio me levar?
Para... onde?...
– Não vim levar você para lugar
nenhum, Alberto. Só vim tentar fazer com que você recupere um pouco do juízo.
Fazer com que você tenha um mínimo de vergonha na cara.
Alberto suspirou profundamente
e olhou para o chão.
– Agora, é tarde, pai. Eu já
fiz...
– Cale essa boca e olhe para
mim, moleque!
Alberto obedeceu.
– Passei toda a vida tentando
fazer de você um homem – disse ele. – E, no entanto, o que você se tornou? Um
frouxo. Um frouxo que pega a vagabunda da sua mulher com outro e, em vez de aguentar
o tranco e de reagir como homem, pega uma cartela de remédios e vai se enfiar
num canto, como um rato, para se matar!
Alberto voltou a olhar para o
chão.
– Pois é, pai, mas agora...
– Agora? Agora você vai se
levantar, vai enfrentar essa vadia e tocá-la para fora de sua casa, ela e o
amante! E amanhã, você vai procurar o juiz e dizer que, se ele não der
andamento nos seus processos, especialmente naquele que está parado há mais de
ano, você vai procurar a Corregedoria!
Alberto sentiu o desespero
crescer, uma angústia apertar-lhe o peito.
– Agora é tarde, pai! Eu estou
morto! Morto, como o senhor...
– Ora, moleque! – berrou o
velho. – Eu até posso estar morto, sim. Mas você, hem? Você acha que está
morto? Você não foi homem nem para se matar, Alberto! Você é o que,
sem-vergonha ou idiota, mesmo? Achou que ia se matar com menos de meia dúzia
daqueles comprimidos para dormir?
Alberto sentiu como se um
choque elétrico o atravessasse.
– Como? perguntou, quase sem
voz.
– Você tomou muito pouco para
morrer, Alberto! Diga-se de passagem, ainda bem. Mas agora, pare de agir como
se estivesse morto, e seja um homem de verdade!
O jovem o olhou, estático.
Talvez tenha piscado os olhos uma vez ou duas, e foi aí que o fantasma
desapareceu.
Alberto podia sentir o próprio
coração batendo, com uma fúria desesperada. Suas têmporas latejavam. Mas, ao
mesmo tempo, sentia como se seu sangue aquecesse. Sentia-se vivo, sim, mais
vivo do que nunca...
Levantou-se, decidido, e abriu
a porta do quarto. Sua mulher o olhou e deu um grito. O amante arregalou os
olhos, pálido.
– Fora daqui os dois – disse,
com voz firme, mas calma.
– Mas, Alberto... – começou a
dizer ela.
– Fora daqui – repetiu ele. –
Antes que você comece a me falar de seus direitos, fique sabendo que eles serão
discutidos em juízo. Conversa eu não quero com você. Tenha um mínimo de
decência, pegue suas coisas e vá para a casa de seus pais, agora. E você –
voltou-se para o amante dela –, dê o fora de minha casa agora mesmo, ou eu chamo
a polícia!
O homem agarrou suas roupas,
enfiou as calças e saiu, assustado. A mulher de Alberto se vestiu e começou a
fazer sua mala, enquanto ele foi até a sala e deixou-se cair novamente, sobre o
sofá, cansado, com o coração ainda mais acelerado e a respiração agitada, mas
sentindo-se bem melhor.
No dia seguinte, chegou no
prédio do escritório e cumprimentou o porteiro em voz bem alta, de maneira que
o homem não teve como ignorá-lo, apesar de surpreso por aquela sua mudança de
comportamento. Falou com o senhorio. Exigiu que fosse observado um processo de
despejo. Falou com o juiz. Deu andamento em seus processos.
Ao cabo de algum tempo, era
outro Alberto. Mais dinâmico, mais autoconfiante, parecia até mais alto. Certo
dia, voltando do escritório em seu carro – comprara um carro –, parou diante do
cemitério da cidade. Estacionou e desceu. Caminhou por entre os túmulos até se
deter diante do jazigo de seu pai. Ficou parado, em silêncio, por longos
instantes. Finalmente, tocou a pedra com carinho.
– De seu jeito – murmurou –, o
senhor sempre me amou.
E voltou para o carro,
sentindo-se em paz consigo mesmo e, finalmente, com o seu passado.
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