A ALMA DO OUTRO MUNDO - Narrativa Verídica - Anônimo do séc. XIX
A ALMA DO OUTRO MUNDO
Anônimo do séc. XIX
Lemos no Jornal do Comércio do Rio:
“Isto, que talvez pareça a muitos uma fantasia, é um fato
real, sucedido há bem pouco tempo.
Vinha raiando o dia: a manhã era fresca, o tempo sereno.
Pela estrada do Barreto, em Niterói, ia seguindo, a trote
largo, na sua carrocinha, um empregado de padaria, encarregado da distribuição
do pão a vários fregueses moradores além do cemitério de Maruí.
Habituado a esse trajeto matutino, o bom rapaz nem se dava
por achado com os contínuos solavancos de seu veículo, e, como se estivesse
reclinado no mais macio de todo os coxins do Oriente, dava largas à imaginação,
e ia com seus castelos no ar prelibando o favo de mel de uma vida toda de
abastança, que sonhava passar quando chegasse a ser o que mais pode ambicionar
um entregador de pão, quando chegasse a ser dono de uma padaria...
Quantos planos! Que futuro tão dourado pela fagueira
esperança!
De repente, soou-lhe aos ouvidos uma pergunta, feita em voz
um tanto rouca:
— Ó, meu amigo, que horas são?
Arrancado tão bruscamente de sua profunda meditação, o
empregado da padaria voltou o rosto para o lado de onde vinha a voz, viu que ia
assando na frente do cemitério, e sentiu um calafrio correr-lhe pela espinha
dorsal.
— Ó, meu amigo, que horas são? — tornou a dizer a voz.
E o vendedor de pão, verificando no relancear de olhos que
esta pergunta lhe era dirigida por um lívido indivíduo, que ia saindo de uma
sepultura, deu um grito de terror, saltou da carrocinha e deitou a correr como
um perdido até a casa do patrão, onde chegou mais morto que vivo.
A alma do outro mundo era um indivíduo dado à embriaguez,
residente em Niterói, que, na tardinha do dia anterior, fora levado ao
cemitério pela excitação do álcool. Ali, deitara-se na borda de um carneiro
vazio, adormecera sem que ninguém se apercebesse disso, e, durante o sono,
caíra dentro duma cova, onde continuou a dormir até o alvorecer.
Então, já livre dos vapores do álcool, mas ainda sem
consciência de si, despertara e ia saindo da ‘cama’, quando viu o empregado da
padaria, e lhe perguntou que horas eram.
E, segundo parece, o homem da carrocinha nunca mais tornou a
passar por ali, com medo do ressuscitado.”
Fonte: “Jornal do Recife”, edição de 6 de dezembro de 1877. Fizeram-se
breves adaptações textuais.
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