O HOMEM MORTO - Conto Clássico de Terror - Leopoldo Lugones
O
HOMEM MORTO
Leopoldo
Lugones
(1874
– 1838)
Tradução
de Paulo Soriano
A
aldeota em que paramos com os nossos carros, após um demorado
trabalho de agrimensura em áreas despovoadas, contava com um
estranho homem louco, cuja demência consistia em acreditar-se morto.
Ali
chegara há vários meses, sem querer dizer de onde viera, e pedindo
encarecidamente que o considerassem defunto.
Não
é preciso dizer que ninguém pôde satisfazer ao seu desejo. E por
mais que muitos, ante o seu desespero, simulassem tratar com um homem
morto, tal não fazia senão multiplicar os seus padecimentos.
Ele
não deixou de se apresentar a nós assim que chegamos para
implorar-nos, com uma desolada resignação, que realmente nos
causava dó, que acreditássemos naquela impossibilidade. Assim fazia
ele com os viajantes que, de tempos em tempos, passavam pelo
lugarejo.
Era
um tipo extraordinariamente magro, de barba amarelada, envolto em
andrajos: um demente qualquer. Mas o agrimensor seduziu-se pelo
alienismo e não desperdiçou a ocasião de interrogar o curioso
personagem. Este se deu conta, ato contínuo, daquilo a que o meu
amigo se propunha, e abreviou preâmbulos com uma clareza de
expressão que, por todos os conceitos, contrastava com o seu visível
estado de espírito.
– Mas
eu não sou louco – disse com uma notável calma, que mal escondia,
não obstante, o seu doloroso pessimismo. – Eu não sou louco e
estou morto, efetivamente, há trinta anos. Claro. Para que morri?
Meu
amigo deu-me uma piscadela dissimulada. Aquilo prometia.
– Sou
nativo de tal lugar, chamo-me fulano de tal, tenho família lá em...
(De
minha parte, omito estas referências, pois não quero constranger
pessoas viventes e próximas.)
– Padecia
de desmaios tão semelhantes à morte que, depois de sobressaltar as
pessoas até o espanto, ultimaram por infundir em todos a convicção
de que eu não morreria disto. Alguns doutores ratificaram tal
opinião com toda a sua ciência. Parece que eu tinha a solitária.
“Certa
feita, contudo, após um desses desmaios, sucumbi. E aqui começa a
história de meu tormento, de minha loucura.
“A
incredulidade unânime quanto à minha morte não me deixava morrer.
Perante a natureza, eu estava e estou morto. Mas, para que isto seja
humanamente real, faz-se necessário uma vontade que o permita.
Apenas uma.
“Voltei
de meu desmaio pelo hábito material de voltar. Mas como ser
pensante, como ente, eu não existo. E não há língua humana que
consiga descrever esta tortura. A sede do nada é uma coisa
horrível.”
Dizia
isto com naturalidade, num tom de veracidade que dava medo.
– A
sede do nada! E o pior é que não posso dormir. Trinta anos
acordado. Trinta anos de eterna presença ante as coisas e ante meu
não ser.
Na
aldeia, já se sabia de tudo isto de cor. Tornaram-se triviais as
suas reiteradas tentativas de obrigar as pessoas a acreditarem na sua
morte. Tinha ele o costume de dormir entre quatro velas. Passava
longa horas imóvel no meio do campo, com o rosto coberto de terra.
Tais
narrativas interessaram-nos extremamente. Mas quando nos dispúnhamos
a metodizar nossa observação, sobreveio um desenlace inesperado.
Dois
peões, que deviam nos alcançar naquele local, chegaram na noite do
terceiro dia com várias mulas que haviam ficado para trás.
Não
percebemos a sua chegada, adormecido que estávamos, quando de
repente fomos despertados pelos seus gritos.
O
louco dormia na cozinha de nosso albergue, ou aparentava dormir ente
suas velas habituais – a única esmola que aceitara de nós.
Não
chegava a dois metros a distância entre a porta onde se detiveram os
peões, coibidos por aquele espetáculo, e o homem que simulava o
sono. Um cobertor cobria-o até o peito. Seus pés despontavam na
outra extremidade.
– Um
morto! – balbuciaram quase ao mesmo tempo. Acreditavam-no realmente
morto.
Ouviram
algo parecido com um sopro amortecido de um odre que se desinfla. O
cobertor se aplanou como se nada houvesse sob ele, ao passo em que as
partes visíveis – cabeça e pés – convolaram-se bruscamente em
esqueleto.
O
grito que lançaram nos pôs em dois saltos diante do colchão de
palha.
Tiramos
o cobertor com um arrepio mortal.
Ali,
entre os farrapos, repousavam, sem o mínimo resquício de umidade,
sem a mínima partícula de carne, ossos velhíssimos, aos quais
aderia uma pele ressecada.
Ilustrção: Samo
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