O ABUTRE - Conto Clássico - Conto Fantástico - Marc Donat
O ABUTRE
Marc Donat
Empalhador-naturalista, Edme Forgeot
possuía numa lojinha dos recantos mais afastados do Quartier Latin, por baixo
de um pardieiro enviesado, que parecia oscilar ao peso de tantos séculos e
tantas imundícies.
Encimando a loja, lia-se esta palavra
esquisita:
EMPAL...
O resto fora devorado pela poeira ácida
de Paris. Sobre a porta ostentavam-se o nome e prenome do comerciante, seguidos
dessa orgulhosa menção: “Medalha de ouro nas exposições”.
Edme Forgeot era um homenzinho calvo,
escanhoado como um ator, usando óculos, ativo, gabando-se de literato.
Vivia sozinho, tendo apenas um auxiliar
a quem recorria o menos possível, e ocupava, por cima de seu armazém, três
aposentos sórdidos, úmidos como adegas, tresandando a mofo.
Houve tempo em que trabalhava peças magníficas,
das quais conservava ainda alguns espécimes. Mas, agora, a sua clientela se
achava quase reduzida a certas senhoras do bairro, que lhe vinham, lacrimosas,
empalhar Doucette ou Kiki. Eram raras as boas
encomendas, quase sempre de fregueses em trânsito, seduzidos pelo esplendor
decorativo de um esquilo, pousado num galho, a tasquinhar uma noz, ou pelas
pontas ameaçadoras de uma cabeça de veado presa a um escudo de carvalho.
A juízo da vizinhança, Fergeot era um
maníaco. Acusavam-no de ser pouco comunicativo e também de ter olhares
estranhos, esgueirando-se por trás dos óculos, que os protegiam. Censuravam-no,
ainda, por não possuir um terno adequado aos passeios de domingo, bem como por
não ter amigos ou parentes conhecidos.
Preparava ele mesmo a sua comida, nos
fundos da loja — alguns ovos no prato e beefsteak que ele
comia só, às pressas, para voltar logo ao trabalho. Dedicava-se ao seu ofício
como os artistas da antiguidade se consagravam ao seu. Nenhum o excedia nessa
atitude de vida, que ele procurava imprimir aos animais que empalhava, e
ninguém duvidaria que ele chegasse a fazer grande fortuna se consentisse em
abandonar o seu buraco de ratos para se estabelecer num bairro melhor.
Edme Forget, porém, era agarrado à sua
velha loja e aos seus velhos aposentos. Quando saía, a fazer a sua provisão de
leite e carne, piscava os olhos como um animal noturno à claridade do sol. E
muitas vezes se revelava mau comerciante, recusando entregar, mesmo a peso de
ouro, certas peças, a que ele se afeiçoava, como, por exemplo, adoráveis
borboletas, que ele recebia de toda parte do mundo, e das quais se acercava,
deliciando-se com o seu fulgor, para que a irradiação de suas asas lhe
iluminassem o recanto escuso.
Forgeot era poeta. Quantas vezes, à
noite, vendo a sua lâmpada acesa, diziam: “Lá está o velho usurário contando o
seu ouro”. Edme Foreot alinhava as suas rimas para si, unicamente. Evocava
primaveras mortas, que irrompiam da sua memória, primaveras de ouro e de
perfumes, em que era moço, e que estava certo de vir a ser um suposto
feiticeiro agachado em seu fúnebre covil.
Quais poderiam ter sido as desilusões,
mesmo as catástrofes da sua vida? Ninguém as conhecia e ele próprio, talvez,
delas não se recordasse com precisão. Desde que época manipulava cadáveres de
bichos? Teria existido algum tempo em que lhe fosse dado o prazer de vê-los
vivos? Os cães afastavam-se de sua morada, de onde exalavam odores fenicados, e
o cavalo dum coche, conta-se, que estacionara à sua porta, fora presa de tal
pânico que disparou pela entrada duma drogaria, partindo as vitrines e ferindo
o caixeiro.
O naturalista não gozava da simpatia de
seus patrícios, cheios de desprezo por esse homem que não lia sequer um jornal,
mostrava-se dócil, tímido e reservado, evitava conversas e, na opinião geral,
era mais empalhado que a sua própria mercadoria.
Ainda existem, na imensa Paris
efervescente, criaturas assim. Forgeot, que contava apenas cinquenta anos,
parecia ter sessenta. Trancava-se para o mundo com um rigor singular e vivia,
em suma, feliz, entre o seu trabalho, que o apaixonava, e a poesia, que lhe
servia de passatempo.
Ora, uma noite pareceu-lhe ouvir
barulho na loja. Ele havia colocado na porta uma campainha que deveria avisá-lo
no caso de ladrões tentarem foçar a fechadura. A campainha não soara, mas,
apurando o ouvido, no meio do silêncio absoluto, pôde perceber algo como um
cochicho, um ruído quase imperceptível de passos miúdos e apressados.
Forgeot enfiou as calças, tomou o
revólver e desceu. Nada. Torou a subir e deitou-se, pensando que nessas casas
vetustas rumores assim não eram de assustar. Mesmo assim, teve um pesadelo.
Passou-se um mês quando, novamente, foi
Forgeot despertado, alta noite, por uma espécie de tumulto abafado que vinha da
loja. “Vejamos — disse consigo. — Estarei agora tendo alucinações?”
Quis forçar o sono. Não conseguiu.
Desceu, revistou tudo e nada viu de anormal. Subiu de novo.
No dia seguinte, recomeçaram os
rumores. Então, para a tranquilidade do seu coração, o naturalista resolveu
passar a dormir no seu armazém, em cima de um colchão.
No outro dia, os postigos fechados,
Forgeot instalou-se bem no centro da sala. Despiu-se, deitou-se e apagou a
lâmpada, não sem primeiro ter lido algumas páginas de um alfarrábio, como era o
seu costume.
Eram onze e meia e ainda não havia
podido conciliar o sono. Impressionava-o achar-se a uma ora tão imprópria
naquele meio, aliás familiar. E, conquanto houvesse desaprendido a rir desde
muito, pôs-se a sorrir. Que terror pueril, na sua idade, e com a vida que
levava! À força de vontade, conseguiu adormecer.
As doze pancadas da meia-noite vieram
tirá-lo da sua modorra. “Tenho vontade — pensou — de tornar a subir. O assoalho
é duro, apesar do colchão, e aqui ficarei incomodado.”
Nisto, ouviu, ao seu lado, bem junto a
si, algo como a fuga de um pequeno corpo lesto. “Bem, é só um ratinho!” Depois,
foi um voo, um voo pesado de asas felpudas. “Agora, é um moscardo!”
Levantou-se, acendeu a lâmpada e não viu nada. Mas o bater de asas continuou,
roçando-o. E foi tão forte o sopro que apagou a luz.
Então, de todos os cantos da loja,
partiram sussurros...
Ali pregado de pavor, Forgeot
ofegava... Reconhecia-os todos: era o voo estonteado das borboletas, o andar
cauteloso da raposa, o mudo colear dos gatos, a escalada fulgurante dos
esquilos. Todos os animais da loja ressuscitavam. Eles não lhe queriam mal,
não; ainda não. Saíam de seu entorpecimento, tomavam consciência de
sua força, readquiriam a sua alma feroz ou manhosa, agressiva ou tímida. Os
olhos dos veados reviviam nas cabeças sem corpo e deixavam cair lágrimas. Um
javali abria a goela terrível, por onde vomitava sangue. Uma doninha arrastava
o seu trem paralisado. Nada de feras, feras propriamente ditas. Apenas um abutre
enorme se via suspenso do teto. Esse permanecia imóvel. Forgeot ergueu para ele
um olhar de ansiedade. Fora ele quem o empalhara, quem lhe enchera o ventre de
papéis, entre os quais havia até poemas seus! E, apesar de todo o barulho que o
cercava, a despeito dessas palpitações de asas, dessas fugas de corpos dóceis e
selvagens, ele, na verdade, só tinha olhos para o abutre. Ah, se ele pudesse se
mexer, estaria tudo acabado! “Vejamos. Talvez fosse melhor tentar sair.” E
Forgeot fez esforços... mas uma paralisia fixou-o no lugar. E rolou sobre o
colchão. Quis gritar. Mas, no momento em que abria a boca, viu duas grandes
asas negras que se moviam. Não pôde articular um som; olhou, tão somente. As
patas do abutre se crisparam. Suas asas estremeceram fortemente, agitaram-se
com mais força ainda, até baterem no teto. O naturalista soltou um grito de
horror, um pobre grito de agonia — tão fraco — e o abutre veio cair-lhe em
cheio sobre o peito.
No dia seguinte, publicavam os jornais
esta notícia:
“Fala-se na morte misteriosa de um
naturalista-empalhador de nome Forgeot.
Esse ancião, que, segundo se afirma no
bairro onde morava, possuía conduta equívoca, foi achado sem vida sobre um
colchão, na sua loja, com a fisionomia crispada, numa expressão de terror
indizível.
Nada faz supor, entretanto, que se
trate de um crime, já que tudo foi encontrado intacto no seu estabelecimento.
Um abutre empalhado, caído do teto, sem
dúvida por estar podre o barbante que o sustinha, repousava sobre o peito de
Forgeot.
A polícia procede a averiguações.”
Fonte: "A Província" (PE),
edição de 8 de outubro de 1911.
Tradução de autor não creditado.
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