A BRUTAL EXECUÇÃO DA FAMÍLIA TÁVORA - Narrativas Históricas Cruéis - Camilo Castelo Branco e Anônimo do séc. XVIII


A BRUTAL EXECUÇÃO DA FAMÍLIA TÁVORA

Em setembro 1758, tentou-se contra a vida de D. José I de Portugal. Quando o monarca retornava clandestinamente da casa daquela que seria a sua amante — D. Teresa, esposa (e tia) do 4º marquês de Távora —, a sua carruagem foi alvejada. O monarca saiu ferido do incidente. O atentado serviu de pretexto ao desencadeamento de uma intensa e avassaladora perseguição, promovida pelo poderoso Secretário de Estado do Reino — o Conde de Oeiras, futuro Marquês de Pombal — a desafetos políticos, opositores do regime. Membros da nobreza portuguesa, parentes consanguíneos e afins, foram julgados por regicídio, condenados à morte e executados publicamente: o duque de Aveiro, o conde de Atouguia, o 3ª marquês de Távora, sua esposa Leonor e seus dois filhos, Luís Bernardo (4º marquês de Távora) e José Maria. Alguns plebeus[1] — um em efígie — também foram supliciados. Um manuscrito anônimo do século XVIII, contemporâneo à época dos fatos, e reproduzido em 1838, retratou a brutal execução. Eis o seu conteúdo:


O teatro de execução dos abomináveis réus tinha de alto quinze palmos levantados na grande praça de Belém, mais perto do cais que da Quinta do Meio, chamada dos Bichos, em que estavam os réus de maior crime; a cavalaria formada entre aquele e o mar; e a infantaria e Dragões na mais circunferência. Veio a marquesa de Távora[2] em cadeirinha, acompanhada de dois padres, e assim todos os demais fidalgos (os padres que os acompanhavam eram da Congregação da Missão chamados de Rilhafoles, Marianos e Arrabidos), apeou-se ao pé da escada que subia para o teatro onde estavam todos os Ministros Criminais e Corregedores da Corte e Casa, fez cortesia a todo o povo, subiu ao teatro, ajoelhou, confessou-se  e foi com desembaraço sentar-se na cadeira, e com o mesmo estava vendo como o algoz lhe amarrava os pés e braços. E vedando-lhe este os olhos, enquanto ela repetia o que os padres lhe ditavam, cortou-lhe de um golpe a cabeça pela parte posterior, ficando-lhe suspensa pela pele da garganta. Com a mesma destreza, desamarrou o cadáver, que cobriu com um pano preto.

Seguiu-lhe o seu filho José Maria, que subiu com igual ou maior valor[3], pediu perdão a todo o povo e que o ajudassem com as suas orações e, dizendo mais algumas coisas, lhe mandou o Corregedor do Crime da Corte e Casa apressar a execução. Ajoelhou, e logo que acabou de reconciliar-se, os deitaram os algozes sobre umas aspas[4] e, amarrando-o de pés e mãos, lhe deram garrote[5] apressado (estando as aspas à vista do povo) e logo lhe quebraram com uma maceta de ferro as pernas, por baixo e por cima do joelho, e os braços por baixo e por cima dos cotovelos. Soltaram-no das aspas e, enrolando-o como um novelo, o puseram sobre um poste[6], que estava no teatro, e coberto por um pano preto.



Seguiu o seu irmão marquês novo[7], que foi justiçado do mesmo modo.
Depois o conde d’Atouguia[8], este, porém, com a diferença de que logo que subiu ao teatro, lhe tirou o algoz os sapatos e cabeleira e, enquanto um algoz lhe dava garrote lento, outros lhe quebravam pernas e braços.

Seguiram-se dois criados, ou lacaios do duque de Aveiro[9], e um cabo de esquadra do Regimento de Alcântara, e foram punidos como os primeiros, e a todos descalçava o algoz antes de os desamarrar das aspas.

Seguiu-se o marquês de Távora velho[10], que se confessou ao pé do corpo da marquesa, e ia vestido de preto com cabeleira. Assim que foi descalço, o amarraram às aspas e com a roda lhe foram quebrando as pernas e braços, pedindo ele a cada golpe que o acabassem de matar, o que se lhe fez dando-lhe por último duas pancadas maiores no peito. E morto foi levado ao poste.

Veio o duque com vestido encarnado sem cabeleira. Subiu com desembaraço. Depois de se confessar, foi amarrado e justiçado como o marquês, posto que com maior clamor (em todas as execuções se levantavam as aspas à vista do povo). A cavalaria, que estava de rosto para o teatro quando levantaram o marquês de Távora velho, que tinha sido o seu instrutor, voltou as costas até se lhe fazer a execução.




Seguiu-se em estátua um caçador do duque. E um barbeiro guarda-roupas do mesmo, o qual subiu ao teatro com desembaraço, e com o mesmo esteve vendo os infelizes cadáveres, que todos se lhe descobriram. E passado algum espaço em que o tiveram à vista daquele horrível espetáculo, o assentaram e amarraram a um poste, e o pulverizaram com enxofre e alcatrão, que lhe meteram pelos vestidos, e entre a carne e a camisa, chegaram-lhe lenha, e os mais postes, que os forçados acarretaram, puseram-lhe fogo lento, em que ardeu cinco minutos sem expirar, tendo-se-lhe queimado todos os vestidos, e ainda as prisões dos braços. Assisitu-lhe um padre da Congregação da Missão com grande espírito até o último alento. Logo que este desceu, se abateu o teatro com o fogo que ardia em um barco de tojo que se lhe tinha posto debaixo, e queimado tudo, se deitaram as cinzas ao mar.


No livro “Perfil do Marquês de Pombal”, o fecundo romancista Português Camilo Castelo Branco (1825 – 1890) narra a execução de D. Leonor, marquesa de Távora:


A aurora do dia 13 de janeiro de 1759 alvorejava uma luz azulada do eclipse daquele dia por entre castelos pardacentos de nuvens esfumaradas, que a espaços saraivavam bátegas de aguaceiros glaciais.

O cadafalso, construído durante a noite, estava úmido. As rodas e as aspas dos tormentos gotejavam sobre o pavimento de pinho. Às vezes, rajadas de vento do mar zuniam por entre as cruzes das aspas e sacudiam ligeiramente os postes.

Uns homens, que bebiam aguardente e tiritavam, cobriam com encerados urna falua[11] carregada de lenha e barricas de alcateia, atracada ao cais defronte do tablado.

Às 6 horas e 42 minutos ainda mal se entrevia a facha escura com umas cintilações de espadas nuas, que se avizinhava do cadafalso. Era um esquadrão de dragões. O patear cadente dos cavalos fazia um ruído cavo na terra empapada pela chuva. Atrás do esquadrão seguiam os ministros criminais, a cavalo, uns com as togas, outros de capa e volta, e o corregedor da corte com grande majestade pavorosa. Depois, uma caixa negra que se movia vagarosamente entre dois padres. Era a cadeirinha da Marquesa de Távora, D. Leonor. Alas de tropa ladeavam o préstito. À volta do tablado postaram-se os juízes do crime, aconchegando as capas das faces varejadas pelas cordas da chuva. Do lado da barra reboava o mugido das vagas que rolavam e vinham chofrar espumas no parapeito do cais. Havia uma escada que subia para o patíbulo. A marquesa apeou da cadeirinha, dispensando o amparo dos padres. Ajoelhou no primeiro degrau da escada, e confessou-se por espaço de 50 minutos. Entretanto, martelava-se no cadafalso. Aperfeiçoavam-se as aspas, cravavam-se pregos necessários à segurança dos postes, aparafusavam-se as roscas das rodas.

Recebida a absolvição, a padecente subiu, entre os dois padres, a escada, na sua natural atitude altiva, direita com os olhos fitos no espetáculo dos tormentos. Trajava de cetim escuro, fitas nas madeixas grisalhas, diamantes nas orelhas e num laço dos cabelos, envolta em uma capa alvadia roçagante. Assim tinha sido presa um mês antes. Nunca lhe tinham consentido que mudasse camisa nem lenço do pescoço. Receberam-na três algozes no topo da escada, e mandaram-na fazer um giro no cadafalso para ser bem vista e reconhecida. Depois mostraram-lhe um por um os instrumentos das execuções, e explicaram-lhe por miúdo como haviam de morrer seu marido, seus filhos, e o marido de sua filha. Mostraram-lhe o maço de ferro que devia matar-lhe o marido a pancadas na arca do peito, as tesouras ou aspas em que se haviam de quebrar os ossos das pernas e dos braços ao marido e aos filhos, e explicaram-lhe como era que as rodas operavam no garrote, cuja corda lhe mostravam, e o modo como ela repuxava e estrangulava ao desandar do arrocho. A marquesa então sucumbiu, chorou muito ansiada, e pediu que a matassem depressa. O algoz tirou-lhe a capa, e mandou-a sentar num banco de pinho, no centro do cadafalso, sobre a capa que dobrou devagar, horrendamente devagar. Ela sentou-se. Tinha as mãos amarradas, e não podia compor o vestido que caíra mal. Ergueu-se, e com um movimento do pé consertou a orla da saia. O algoz vendou-a; e ao pôr-lhe a mão no pescoço, — não me descomponhas — disse ela, e inclinou a cabeça que lhe foi decepada pela nuca, de um só golpe.


Fontes da narrativa do século XVIII: Revista Estrangeira, Porto, março de 1838 e Jornal das Famílias, RJ, edição de 17 de junho de 1843.
Ilustrações de autores desconhecido do século XVIII




[1] Brás José Romeiro, João Miguel, Manuel Alves, Antônio Alves Ferreira e, em efígie, por se encontrar foragido, José Policarpo de Azevedo.

[2] Leonor Tomásia de Lorena e Távora (1770 – 1759) foi, por direito próprio, a 3ª. Marquesa de Távora e 6ª. Condessa de São João de Pesqueira.

[3] Ou seja, coragem.

[4]  As aspas eram um antigo instrumento de suplício em forma de X (vide ilustrações).

[5] Estrangulamento produzido por torniquete (aperto de uma corda, presa ao pescoço do supliciado, produzido pelo movimento circular de um bastão ligado àquela).

[6] Encimado por uma roda alta, instrumento de tortura.

[7] Luís Bernardo de Távora (1723 – 1759) foi o 4.º marquês de Távora e 7º conde de São João da Pesqueira. Era casado com D. Teresa de Távora, possivelmente amante do rei D. José I.

[8] Jerônimo de Ataíde (1721 – 1759), 11º conde de Atouguia, era casado com Mariana Bernarda de Távora, filha do 3º marquês de Távora.

[9] José de Mascarenhas da Silva e Lancastre (1708 - 1759) foi o 5.º marquês de Gouveia, 8.º conde de Santa Cruz e 8.º duque de Aveiro. Era casado com Leonor de Távora, irmã do 3º marquês de Távora.


[10] Francisco de Assis de Távora (1703 - 1759) foi o 3.º Conde de Alvor e, por seu casamento, 3.º Marquês de Távora e 6.º Conde de São João da Pesqueira. Era primo de D. Leonor, sua esposa.

[11] Embarcação fluvial de carga. 

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