A FIGUEIRA - Conto de Terror - Flávio de Souza
A
FIGUEIRA
Por
Flávio de Souza
"Sob
as árvores os pés dançantes, soltos no ar
Há
nas mãos que esticam-se um pranto oculto
Que
a garganta calada não deixa gritar."
Tânia Souza
Eu
tinha um pouco mais de uma década de vida quando tudo aconteceu. Naquele tempo,
minha compreensão de mundo era tão superficial e enigmática quanto a
profundidade vista pelo vidro de uma bola de gude. As lembranças contadas em
dias não diferiam muito da cronologia de um adulto no que se referia à
importância, sobretudo em eventos específicos, mas o tempo, esse sim, traduzia
um outro significado. Um ano de uma criança nem de longe pode se comparar aos
mesmos trezentos e sessenta e cinco dias de uma vida comprometida com inúmeras
responsabilidades.
De fato, naquela época, o tempo passava mais
lento, mais arrastado, como o caminhar descompassado do meu avô. O velho já
havia passado dos sessenta, trabalhara a maior parte da vida como funcionário
público, mas não desses que penduram o paletó nas costas da cadeira e se
afundam em trabalho burocrático. Não, meu avô passara os melhores anos de sua
vida debaixo do calor impiedoso do sol, ou sob as chicotadas violentas da
chuva, sempre com o peso de uma marreta nas mãos. Quebrar rochas em pedreiras
era o seu ganha pão.
A
pele negra e privilegiada do velho ocultava boa parte dos castigos infligidos
pelo tempo. Os sulcos e rugas em seu rosto não eram tão marcantes quanto em
outras pessoas da mesma idade, no entanto, ainda assim, não se pode negar que
antigamente as pessoas envelheciam muito mais do que nos dias de hoje.
Atualmente é muito comum passar dos setenta com invejável vitalidade, porém,
naquela época, a história era outra.
Contudo,
apesar da ação preponderante da idade e das consequências físicas causadas pelo
trabalho árduo, o que dificultava mesmo a locomoção do meu avô era a influência
das sequelas de um acidente vascular cerebral que culminara numa paralisia
parcial do seu lado esquerdo. Esse fato acarretava-lhe uma forma peculiar de
caminhar. Ele impulsionava a perna direita e, praticamente, arrastava a
esquerda, num movimento de sobe e desce com o corpo. Mas isso não o impedia de
circular livremente para onde queria.
Minha
mãe não era como a maioria das mães dos meus poucos amigos. Ela, por conta da
necessidade, não se valia da condição de dona de casa, muito pelo contrário. Já
naquela época, ela trabalhava fora, o que era um fato incomum e até mesmo
reprovável para os padrões da situação.
Desta
forma, eu passava os dias entre a escola e os cuidados dos meus avós. E não era
só eu. Minha irmã mais nova e um primo quase da minha idade me faziam
companhia. Se minha irmã e eu poderíamos voltar para casa à noite, o mesmo não
ocorria com esse meu primo, pois o pai, ele nunca conhecera e a mãe, minha tia,
sumira no mundo há tempos. Assim, o garoto era criado como filho pelo casal de
idosos.
Meu avô era muito atencioso e gentil, em todos
os aspectos. O mesmo não poderia ser dito da minha avó. Não que ela fosse rude
ou que nos deixasse faltar qualquer cuidado, longe disso. Mas, posso afirmar
que ela era desprovida daquela ternura própria dos avós, daquele algo mais.
Talvez fosse algum resquício da esquizofrenia que lhe acometera na juventude,
pois, embora a enfermidade tivesse sido clinicamente contornada, não era
difícil crer que as cores do mundo exibissem um tom desbotado e
irremediavelmente triste pela ótica de sua visão.
A
casa dos meus avós ficava num conjunto residencial construído e destinado a
servidores municipais. O bairro, por assim dizer, ocupava tanto as encostas de
um morro, quanto o vale aos seus pés. A residência em questão posicionava-se na
parte alta do lugar. Lá de cima, do alto do precipício, era possível vislumbrar
a vastidão ocupada por centenas de casinhas, as ruas que as entrecortavam, um
campo de várzea, uma pequena praça com seus balanços e gangorras, a sede da
associação de moradores, uma escola construída pelo governo militar, muitas
árvores, além da outra quadra do bairro, que ocupava o morro defronte ao que
estávamos.
Todas
as noites, quando minha mãe vinha nos buscar, precisávamos atravessar um longo
e estreito caminho que circundava a beira do precipício. A estrada ainda não
era revestida pela manta negra e tétrica do asfalto, ou tampouco protegida
pelos blocos de concreto dos dias de hoje. Não, naquele tempo a vivacidade do
barro esparramava-se por toda a extensão da via. Não havia qualquer limite. De
um lado, a garganta aberta da ribanceira, do outro a vastidão verde e absoluta da
vegetação.
Havia muito mato no local. Enormes
amendoeiras, jaqueiras e mangueiras estendiam-se ao longo da margem verdejante,
além de arbustos repletos de amoras e pitangas. No entanto, a árvore mais
emblemática era a figueira localizada na parte central da área. Era comum ouvir
as pessoas dizendo que a árvore ocupava o local há incontáveis anos, sendo
testemunha do crescimento de tudo ao seu redor.
De
fato, a figueira era um belíssimo exemplar de sua espécie. Com seu tronco
firme, galhos retorcidos, casca cinzenta, folhagem marcante e raízes
impetuosas, parecia mesclar a imponência desconcertante das espécies
infrutíferas, com a exuberância e generosidade das melhores fornecedoras das
comestíveis gotas róseo-esverdeadas.
O
fascínio despertando pela árvore era tanto, que a própria região, toda a área
compreendida pelos domínios da estrada barrenta, era conhecido pelos moradores
simplesmente como Figueira.
Aos
pés da árvore encontrávamos duas imensas pedras, uma sobre a outra. As rochas
exibiam uma superfície tão lisa que era como se tivessem sido cuidadosamente
polidas. Ao toque do sol, elas ostentavam um leve brilho, sugerindo uma
comunhão perfeita com os raios do astro rei.
O par rochoso encravava-se como um pingente no
mar esmeralda quase desabitado. Quase, porque, na parte posterior à parede
formada pelo matagal, exatamente atrás da figueira e das pedras, situada num
discreto declive, ficava uma solitária e simples casa. Na construção de pau a
pique, residia um jovem casal, na companhia de um velho, o qual seria um tio,
pai ou coisa do tipo de um dos dois. As pessoas diziam que o casal tinha um
filho, mas, eu mesmo, nunca vi a criança. Na verdade, eu quase não via a
mulher, mas não era raro encontrar o rapaz cuidando da pequena roça de
hortaliças.
Não havia qualquer outra residência na
Figueira, a família não tinha vizinhos. Embora a eletricidade não fosse nenhuma
novidade, não havia, ao longo de toda a estrada, qualquer vestígio de
iluminação pública. Acredito que a noite no interior do casebre era iluminada
apenas pela vida dos candeeiros.
Embora,
nos dias de hoje, a escuridão possa sugerir a potencialidade de perigo, a única
preocupação em se atravessar a Figueira correspondia às velhas histórias
contadas pelo povo. Pode parecer estranho, mas isso era levado muito a sério
por algumas pessoas. Tanto que, na hora de irmos para casa, minha avó nos
acompanhava até o fim da estrada, porém, minha mãe não a deixava voltar
sozinha, e a acompanhava de volta. O impasse persistia até a desistência de uma
delas.
Minha
irmã e eu não dávamos muitos créditos ao que ouvíamos, nem mesmo nosso primo,
que era um tanto sonhador, se importava com os relatos. Achávamos até graça da
situação. Eu, particularmente, gostava de cruzar os domínios da Figueira. O céu
era limpo, muito diferente da nebulosidade triste causada pela luz artificial.
O forro negro salpicado de estrelas brilhantes ficaria para sempre gravado em
minha memória. Como eu sinto falta daquele céu dos meus tempos de menino!
Dentre
as diferentes lendas locais, eu gostava muito de ouvir a que falava da morte de
um jovem padre. Minha avó não se cansava de repeti-la. E, apesar da repetição,
a tensão do ineditismo estava sempre presente em cada uma das vezes. Ela
arregalava os olhos e repuxava involuntariamente os lábios finos. Sua pele alva
de descendente de portugueses ficava ainda mais pálida.
II
A
história dizia que num certo tempo indeterminado, naquela mesma região, um
padre recém-ordenado assumira a paróquia local. Porém, em poucos meses de sacerdócio,
ele caíra de amores por uma jovem comprometida. O padre a tomou para si,
engravidando-a. Não tardou para que o romance clandestino fosse descoberto e
hostilizado pela população. O noivo traído estava disposto a engolir a
humilhação e perdoar a futura esposa, assumindo como sua a criança que crescia
no ventre da moça. No entanto, para isso, o responsável pela sua desgraça
deveria ser expulso de uma vez por todas da comunidade.
O
pároco até estava disposto a abrir mão da felicidade em prol da amada, porém,
ela não estava pronta para tal sacrifício. E, não podendo exercer o direito de
ser senhora da própria sorte, decidiu selar definitivamente o destino que lhe era
reservado, atirando-se num voo sem volta pelo precipício.
Ao
constatar a morte da jovem, o padre foi tomado pelo desespero. E, mesmo sabendo
que a atitude que estava prestes a cometer significaria a condenação eterna de
sua alma, de acordo com suas próprias convicções, ele trançou uma corda num dos
galhos fortes da velha figueira, a fim de dar cabo de sua miserável existência.
Enquanto
sufocava e se debatia, pois o pescoço não quebrara, ele foi invadido por toda a
sorte de maus sentimentos. Rancor, ódio, decepção, vingança, frustração. Cada
gota da aflição que corrompia seu espírito era exalada dos poros dilatados e
liberada no ar. Seus olhos vidrados contemplavam a vastidão da ribanceira,
leito de morte de um tesouro inestimável.
Dizem
que as pessoas tocadas por um fardo similarmente pesado, seja na alma ou no
coração, são capazes de vê-lo pendurado na figueira. O horror da imagem seria
indescritível e irreversivelmente perturbador.
III
Mesmo
durante o dia, a região da Figueira não era vista com bons olhos. E, justamente
nesse quesito, estava uma das nossas maiores diversões na infância. Fazia parte
da rotina, toda tarde, escaparmos rumo ao local maldito. Ficávamos os três, meu
primo, minha irmã e eu no topo das rochas duplas. Era como se estivéssemos no
dorso de um grande elefante. O toque quente da superfície rochosa era reconfortante,
quando combinado com a brisa fresca que balançava as folhas da figueira ao
entardecer.
A
árvore dava frutos vistosos, mas estes eram raros quando comparados à
abundância fornecida pelas demais. Além disso, não eram tão saborosos quanto a
bela aparência poderia sugerir. Certa vez experimentei um dos figos, o gosto
era terrivelmente amargo. Acho que a expressão que devo ter feito na ocasião
intimidou as outras crianças, pois nenhuma delas quis compartilhar da
experiência. Desde então, nos restringimos às mangas, jabuticabas e outras
frutas.
Embora
pudesse parecer, o real objetivo de nos refugiarmos na Figueira não era a busca
pelos diversos frutos do local, ou a contemplação da paisagem do alto das
pedras. O que buscávamos, de fato, era a provocação, a desobediência descarada.
Invariavelmente, meu avô seguia em nosso encalço. Com uma vara seca de
goiabeira na mão, ele vinha mancando e gritando em franca ameaça. Obviamente,
sabíamos que ele era incapaz de nos machucar, mas a perseguição inocente era o
ápice do nosso dia, o momento mais aguardado. A severidade em seu olhar nunca
se traduzia em atos palpáveis, mas era legítima. Contudo, para nossa sorte,
nada de ruim nos acontecia, nunca. As preocupações tolas eram um incentivo a
mais para nossas traquinagens.
Assim,
nossos dias passavam longos, com a eternidade da infância como um escudo a nos
proteger das mazelas da irresponsabilidade. As lembranças desses dias eram
doces como o gosto das frutas ao nosso dispor, mas um fato inesperado surgiu
para estremecer os alicerces formados por nosso trio. Meu primo, em seu excesso
de confiança e inabalável senso de aventura, sofreu um terrível acidente, algo
que trouxe, de imediato, um torpor indescritível em minha existência.
Inevitavelmente, senti o gosto amargo dos figos outra vez...
IV
Meu avô era a sombra do que um dia fora,
enquanto o mundo particular de minha avó dava cada vez mais mostras de que suas
fronteiras se expandiam. Era inevitável que maldissessem a nuvem negra que
pairava na região, mas o tempo, em sua inabalável marcha, continuava a impor a
sequência da vida. E, a velocidade, que até então era subjetiva sob meu ponto
de vista, ganhava outros contornos. Porém, mesmo assim, eu não acreditava, ou
melhor, não entendia a razão para tanta aflição por conta de um lugar, mas esse
ceticismo começaria a perder força muito mais rápido do que eu poderia supor.
V
Era
um domingo ensolarado, daqueles que parecem feitos sob encomenda para um grande
evento. Praticamente toda a garotada da comunidade estava reunida na praça
local. No campinho de várzea, estava sendo realizada uma festa em comemoração
ao dia das crianças. Havia brincadeiras, gincanas, concursos, farta
distribuição de lanches e brinquedos, tudo patrocinado pela associação de
moradores.
Lá
de baixo, conseguíamos enxergar as casas espalhadas pela encosta do precipício,
o qual, daquele ângulo, parecia muito mais alto do que quando olhávamos do
sentido inverso. Dentre as inúmeras residências, estava a dos meus avós, com
seu muro revestido por heras e as paredes pintadas de bege.
Girando
o olhar para o lado esquerdo, estava ela, a Figueira. As rochas impávidas
exibiam-se como um colosso, enquanto a árvore que dava nome ao local balançava
suas folhas ao sabor do vento, como se acenasse de longe.
Eu
poderia, e deveria, estar concentrado no jogo de revezamento de escalada com
corda, eu era o último da minha equipe, e a classificação dependia de mim.
Porém, meu olhar estava vidrado em direção à Figueira. Eu tive a impressão de
ter visto uma pessoa circulando levianamente pela beira da ribanceira. Apertei
os olhos e tive certeza: era um homem. Sua pele mulata reluzia ao sol. Ele
vestia uma calça comprida e nada mais. Por alguns instantes, ele hesitou, como
se estivesse desnorteado e, então, caiu.
Seu
corpo parecia despencar em câmera lenta, era uma imagem mostrada quadro a
quadro. Não sei por quanto tempo tive essa impressão, só sei que ela terminou
com o som de um grito estridente emitido por uma garotinha banguela que estava
ao meu lado. Então, ele caiu rápido, como deveria ser.
Muitas
pessoas correram em direção ao ponto final da queda, enquanto outras recolhiam
suas crianças que gritavam e choravam. Eu permaneci no mesmo lugar, olhando
para cima, e foi aí que vi.
Meu
corpo tremeu dos pés à cabeça, pois tive a certeza, mais do que absoluta, de
ter visto a imagem de um homem vestido de preto pendurado por uma corda
amarrada aos galhos da figueira. Mais do que isso, tive a impressão de que ele
olhou diretamente para mim, mesmo com a morte a lhe apertar o pescoço, o homem
olhou para mim!
Sufoquei
um grito na garganta. Esfreguei os olhos e a imagem desapareceu. Lá no alto
havia apenas as rochas, o mato, as árvores simples e a figueira. Senti um toque
no ombro, e desta vez não consegui controlar o pânico e gritei. Mas era apenas
minha mãe trazendo minha irmã pela mão.
Mais
tarde, soube que, apesar da queda violenta, o homem não morrera. Ele se ferira
muito com o acidente, mas, a despeito disso, estava lúcido e consciente. Era
fato que ele não se lembrava de absolutamente nada, e dizem que nunca mais foi
o mesmo, assim como eu. Desde aquele dia, o episódio entrou para a galeria dos
fatos inexplicáveis da Figueira. Só que para mim era algo totalmente novo, pois
eu sabia que havia realmente algo estranho lá, e não era apenas uma questão de lendas
do povo. Eu vi, nunca contei para ninguém, mas eu vi o padre enforcado enquanto
o homem despencava.
O
colorido da minha infância havia terminado ali. Quando se vê a face fria da
morte é difícil esperar outra coisa. Era como se eu tivesse ficado mais seco,
mais vil e egoísta, tão insosso quanto o sabor do figo que um dia preenchera
minha boca. Eu não conseguia encontrar mais sentido no que antes movia minha
vida e, por dias, permaneci no mais absoluto recolhimento...
VI
Eu
não conseguia tirar da cabeça a idéia de ver novamente a imagem do padre. Não
sei explicar, é até antinatural querer contemplar algo que desencadeara tamanho
dano em seu existir, mas eu achava que olhar mais uma vez para aqueles olhos
frios poderia reverter o temor que me consumia.
Estávamos
mais do que proibidos de cruzar a estrada empoeirada, e desta vez parecia que
não haveria qualquer tipo de tolerância com desobediências. Eu queria ir a
Figueira, olhar para os galhos da árvore, mas não poderia comprometer minha
irmã por conta dos meus atos. Assim, tramei para que eu passasse a noite de
sexta-feira na companhia dos meus avós, ao invés de voltar para casa.
Os
velhos costumavam dormir com as galinhas, e foi nesse momento que resolvi
escapar.
Acho
que não há palavras para descrever a escuridão que assolava a velha estrada.
Nem mesmo minhas companheiras no céu ofereciam o brinde de sua presença. Mas eu
não estava com medo, juro que não estava, e segui decidido em minha marcha.
Cheguei
à parte central da trilha, exatamente onde ficavam as rochas e a figueira. A
velha árvore não mexia uma só folha. Eu nunca tinha reparado antes, mas a
imagem da figueira automaticamente me remeteu ao desenho que certa vez vi
estampado num livro de ciências. A disposição do seu caule lembrava a
reprodução do aparelho circulatório humano, excetuando-se a maneira retorcida
que os galhos apresentavam nas extremidades.
Escalei
as rochas rapidamente. À noite, o toque daquela superfície não oferecia o mesmo
calor do qual eu me acostumara, pelo contrário, remetia à sensação
proporcionada pela água gelada de um chuveiro numa manhã de inverno.
Enxerguei
uma luz bruxuleante no interior do casebre, mas não havia qualquer sinal da
família. Concentrei minha atenção no galho que julgava ser aquele pelo qual o
padre se enforcara, mas nada vi. Esperei por um bom tempo e, já estava
desistindo, quando ouvi uma voz chamando meu nome.
Virei-me
em direção ao casebre, que era de onde parecia vir a voz. Então vi a figura de
um velho. Imediatamente associei-o ao tal tio ou pai de um dos jovens da
família, o tal senhor de quem alguns falavam.
Tive um impulso inicial de correr, mas contive
o ímpeto. E, antes que eu pudesse falar qualquer coisa, ele me perguntou se eu
sabia o porquê de ter visto a imagem do padre enforcado. Eu poderia ter ficado
intrigado em querer saber como o desconhecido conhecia meu nome, visto que eu
nunca havia me encontrado com ele antes, ou em saber como era de seu
conhecimento o fato do que eu tinha visto. Mas a única coisa com que me ative
foi no conteúdo de seu questionamento, pois, segundo diziam, só alguém com um
fardo pesado a carregar, poderia avistar a assombração.
O
velho riu por conta do desespero estampado em meu rosto, ele sabia, o maldito
sabia. Só aí percebi que ele usava uma surrada batina por baixo dos trapos que
lhe cobriam, além do laço a lhe apertar o pescoço. O padre caminhava em minha
direção e, num piscar de olhos, já estava ao meu lado no alto das rochas.
Ele
já não exibia os contornos cativantes e típicos de um idoso comum, não, o que
estava diante de mim era um emaranhado arroxeado de carne em decomposição. E
essa mescla horrenda falava comigo, me dizia claramente que sabia porque eu
conseguia vê-lo.
VII
Sempre
fui correto em tudo, da melhor maneira possível. Mas, até mesmo para aqueles
que se consideram coerentes, existem ocasiões em que a prática testa a teoria.
Nada nunca me faltou, isso é fato, mas, ainda assim, eu sentia uma pontada de
inveja pela forma com a qual o meu avô tratava o outro neto, aquele que criava
como filho.
Pouco
antes do incidente, no qual meu primo se envolvera, eu tinha um punhado de
moedinhas recém lançadas num daqueles inúmeros planos econômicos que eram bem
comuns até um passado recente. Então, fiz uma proposta em trocá-las com meu avô
por uma nota, coisa de criança, eu levaria até vantagem na conversão. Só que,
imediatamente, meu primo pediu as moedinhas ao meu avô, no qual fora
prontamente atendido. Fui tomado por uma raiva incontrolável, embora não a
demonstrasse.
Eu
não admitia, mas era fato que após ter experimentado aquele figo, parece que
tudo de ruim que havia em mim tornara-se ainda mais evidente. Assim, elaborei
um plano para tomar as moedinhas de volta. Num dia em que minha irmã
acompanhara minha mãe no trabalho em uma casa de família, aproveitei para
convencer meu primo a me seguir até a Figueira.
Uma
vez lá, tratei de rolar a bola dente-de-leite, seu brinquedo preferido, por uma
brecha no meio do matagal que crescia na encosta do morro. Então, sugeri que
ele descesse pelo buraco para pegá-la de volta, agarrando-se no capim rasteiro
como forma de apoio. Ingenuamente, como lhe era peculiar, ele foi, só que o
mato não conseguiu sustentar seu corpo e ele rolou ribanceira abaixo.
Acompanhei seu tronco desaparecer, depois a cabeça e por último os braços
erguidos.
No
mesmo instante fui tomado pela vergonha, pelo arrependimento, mas nunca contei
a ninguém o que eu havia feito. Meus avós nunca se recuperaram do baque, e dia
após dia, visitavam o neto/filho adormecido num coma absoluto até serem
vencidos pela frieza da foice do destino.
Porém,
antes de serem visitados pela senhora do inevitável, eles ainda viriam a sofrer
muito mais por minha causa, não só eles como o resto da minha família. Mas,
desta vez, eu não tive participação consciente no episódio...
VIII
Diante
daquele vestígio de homem, de olhos negros e fatais, eu sabia que nenhuma
mentira poderia resistir, pois ele podia enxergar através da minha alma. Eu só
não conseguia entender como ele ficara velho e carcomido, se quando se
enforcara não passava de um rapaz inconsequente. Mas, quando ele me ofereceu a
corda, e eu a aceitei de bom grado, tudo ficou claro para mim.
Enquanto
eu sufocava pendurado nos galhos da velha figueira, entendi que nossas almas, a
dos condenados, envelheceriam eternamente como um fruto que apodrece no pé sem
ser colhido. Entendi, também, que o velho, a mulher e a criança, que diziam
morar no casebre, talvez não passassem de aparições que se confundiam com o
mistério acerca do rapaz que morava no local. Era bem possível que, em muitos
anos, eu também fosse inserido no contexto de alguma família local.
O
jovem, que se isolava na Figueira, não se incomodava com a presença de
estranhos em suas terras. Era até bom, pois a proximidade colaborava para que
novos frutos fossem inseridos na árvore que cuidava com tanto esmero. Sua longa
linhagem, a que advinha do noivo traído que se culpou pelo suicídio da amada,
jurou cuidar da árvore, símbolo da dor da comunidade.
XIX
As
histórias vêm e vão, se confundem e se mesclam ao longo do tempo, o qual, às
vezes passa depressa como a vida de um adulto, ora corre lento como os sonhos
infantis.
Muita
coisa eu vi no decorrer dos anos, enquanto os vermes corroem a estrutura da
minha essência, algo que nunca terminará. O velho conjunto residencial de
servidores municipais se transformou numa violenta favela. Não há tanta
simplicidade quanto outrora, e, vez ou outra, a figueira recebe novos frutos.
Aliás, muito mais do que antes.
Do
alto da árvore secular, pendurado por uma corda que quase ninguém vê, como um
figo ignorado por todos, eu permaneço. E, não é raro que eu seja invadido pela
impressão de ver, sentada numa cadeira de balanço, na varanda que já não existe
mais, a silhueta da minha avó, com seus cabelos de prata reluzindo ao sol e sua
pele alva com tons rosados nas bochechas. Ao seu lado, com seu chapéu de palha
na cabeça, meu velho avô, exibindo o mesmo bigode grisalho, sinal de respeito,
como dizia. A pele de ébano, com as rugas do trabalho árduo cultivadas pelas
intempéries do tempo, era a mesma. A origem da miscigenação da qual eu tanto me
orgulhava.
Eu
queria poder ter a oportunidade de visitar meu primo que sofre por anos no
hospital, mas sei que a prisão da Figueira nunca permitirá. Quando ele for
tocado pelo abraço frio da morte, algo que logo ocorrerá, ele será recebido
pelo carinho dos meus avós, algo que nunca mais terei, pois um lugar bem melhor
está reservado para todos eles. Algo bem diferente do que me abriga e
continuará a abrigar por toda a eternidade.
Boa tarde Barão!Puxa, muito obrigado por ter colocado esse conto em tão honroso espaço. Ele é um dos meus preferidos, por ter uma poesia da nossa querida amiga T e por contar com elementos que retirei de minha própria infância, como a descrição dos meus avós, do local, do evento, da Figueira (que realmente existe). Fiquei muito feliz. Mais uma vez, obrigado! Abração! Flávio
ResponderExcluirNão há de quê, Flávio.
ExcluirÉ sempre uma honra tê-lo conosco.
"A Figueira" é, sem dúvida, um belo conto!
Merece constar em qualquer site ou antologia de terror.
Araços!