A MORTE QUE ESPREITA - Conto Clássico de Mistério - Maurice Leblanc

A MORTE QUE ESPREITA

Maurice Leblanc

(1864 – 1941)

Tradução de autor anônimo do séc. XX


Depois de contornar os muros do castelo, Arsène Lupin voltou ao ponto de partida, decidido a empregar o grande recurso. Penetrando na espessa moita onde escondera a motocicleta, apanhou um rolo de corda sob o selim e dirigiu-se para o ponto em que árvores grandes, pertencentes ao parque, deitavam os galhos por cima do muro. Fixando uma pedra na ponta da corda, Lupin atirou-a para cima, puxou um galho grosso, montou-o e deixou que ele se reerguesse, suspendendo-o da terra. Não havia outro meio para entrar no vasto domínio de Maupertuis. De longe, examinou o castelo, com o auxílio de um binóculo, estudando-lhe a fachada triste e sombria. Todas as janelas estavam fechadas e tinha-se a impressão de um lugar desabitado.

Nisso, uma das portas do térreo abriu-se, dando passagem a uma silhueta feminina, muito esbelta, envolta num capote preto. Passeou de um lado para outro, dando migalhas de pão aos pássaros, que logo a rodearam; depois, desceu os degraus de pedra, que levavam ao gramado central, e tomou a alameda da direita. Com o binóculo, Lupin via-a distintamente encaminhar-se para o seu lado; era alta, loura, graciosa, extremamente jovem. A dois terços da distância que os separava, ouviram-se latidos furiosos e um enorme cão dinamarquês surgiu do seu nicho, levantando-se nas patas traseiras, forçado pela corrente que o prendia. A moça afastou-se um pouco, sem dar muita importância a esse incidente, que devia produzir-se todos os dias. O cão redobrou de fúria e de esforços, como o risco de estrangular-se. Trinta ou quarenta passos mais longe, a moça impacientou-se e, voltando-se, fez um gesto com a mão. O dinamarquês teve um estremecimento de raiva, recuou até o fundo do nicho e arremessou-se de novo, irresistível.





A moça deu um grito de terror louco, enquanto o cão vencia a distância que os separava, arrastando a corrente partida. Ela pôs-se a correr com todas as forcas, gritando desesperadamente por socorro; mas em poucos saltos o cão alcançá-la-ia. A moça caiu, exausta, perdida, com o feroz animal tocando-a quase. Nesse momento preciso, ouviu-se uma detonação, o cão deu um salto no ar, caiu uivando roucamente, arquejou, arquejou e foi tudo.

Morto — disse Lupin, que correra, pronto a descarregar todo o revólver, em caso de necessidade. Quanto à moça, Levantara-se, pálida, vacilante ainda. Olhou, surpresa esse homem, que não conhecia e que acabara de salvar-lhe a vida, e murmurou:

Obrigada.. Tive muito medo… Já era tempo. Muito obrigada, senhor.

Lupin tirou o chapéu:

Permita que me apresente, senhorita. Jean Daubreuil. Mas, antes de qualquer explicação, peço-lhe que me conceda um instante.

Abaixou-se, examinou a corrente do cão no lugar em arrebentara, e disse, entre dentes:

É isso mesmo. Tal como eu esperava. Os acontecimentos precipitam-se e eu deveria ter chegado mais cedo.

Voltando-se para a moça, disse-lhe depressa:

Senhorita, não temos um minuto a perder. Minha presença neste parque é absolutamente insólita e não quero ter surpreendido, por motivos que lhe dizem respeito. A senhorita acha que podem ter ouvido a detonação castelo?

A moça parecia refeita da emoção e respondeu, com uma firmeza que revelava toda a sua natureza corajosa:

Acho que não.

O senhor seu pai está no castelo hoje?

Meu pai está de cama há um mês. Além disso, o quarto dele dá para o outro lado.

E os criados?

Trabalham também do outro lado. Ninguém vem nunca por aqui, a não ser eu.

Então, é provável que não me tenham visto também, tanto mais que essas árvores nos escondem. Posso falar-lhe com toda a liberdade?

Sim, Mas não compreendo…

Compreenderá dentro em pouco. Permita-me que seja breve. Há quatro dias, a Srta. Jeanne Darcieux…

Sou eu.

A Srta. Jeanne Darcieux escreveu uma carta a uma amiga chamada Marceline, que mora em Versailles…

Como sabe o senhor de tudo isso? — perguntou a jovem, estupefata. — Rasguei-a sem terminá-la…

Sim, e jogou os fragmentos na estrada que vai do castelo a Vendôme.

É verdade. Eu estava passeando lá.

Esses fragmentos foram recolhidos e o seu conteúdo me foi comunicado no dia seguinte.

Então… o senhor leu… — disse Jeanne, com certa irritação.

Sim. Cometi essa indiscrição e não o lamento, pois por isso posso salvá-la.

Salvar-me de quê?

Da morte.

Lupin pronunciou essa pequena frase com voz clara e a jovem teve um arrepio.

Mas eu não estou ameaçada de morte.

Está, senhorita. Em fins de outubro, quando lia num banco do terraço, onde costuma sentar-se todos os dias, à mesma hora, um bloco de pedra desprendeu-se da fachada e por poucos centímetros a esmagava.

Um acaso.

Numa bela noite de novembro, atravessando o pomar, a senhorita ouviu um tiro e uma bala passou raspando a sua orelha.

Pelo menos, eu assim pensei…

Enfim, na semana passada, a pontezinha de madeira, que atravessa o rio do parque, a dois metros da queda d’água, ruiu no momento em que a senhorita passava. Foi por milagre que conseguiu segurar-se a um arbusto.

Jeanne Darcux procurou sorrir:

De acordo; mas em tudo isso, como mandei dizer a Marceline, só há uma série de coincidências, de acasos…

Não, senhorita, não. Um acaso dessa espécie é admissível; dois também, e no máximo! Mas não se tem o direito de supor que, três vezes, o acaso se divirta e consiga repetir o mesmo ato, em circunstâncias tão estranhas. É por isso que tomei a liberdade de vir em seu socorro; e, como a minha interferência só pode ser eficaz permanecendo secreta, não hesitei em penetrar aqui sem ser pela porta. Era tempo, como a senhorita o disse. O inimigo atacava-a mais uma vez.

Como?! O senhor acha?… Não, não é possível, não quero acreditar…

Lupin apanhou a corrente do cão e mostrou a Jeanne:

Olhe este último elo; não resta a menor dúvida que foi limado; mesmo porque uma corrente tão forte não partiria de outro modo. Aliás, a marca da lima é visível.

Jeanne empalidecera e o pavor contraía-lhe o lindo rosto:

Mas, então, quem me odeia assim? É horrível! Não fiz mal a ninguém. E, no entanto, vejo que o senhor tem razão. Quem sabe se o mesmo perigo não ameaça meu pai também? Não se move da cama, mas sua doença é tão misteriosa... Não tem mais forças, já não anda; além disso, tem sufocações, como se o coração fosse parar. Que horror, meu Deus!

Lupin sentiu toda a autoridade que podia exercer sabre ela em tal momento, e disse-lhe:

Não tenha receio, senhorita. Se obedecer-me cegamente, tenho certeza do sucesso.

Sim, sim, obedecerei. Mas tudo isso é tão horrível!

Peço-lhe que tenha confiança. E ouça-me. Preciso de algumas informações.

Então, umas sobre as outras, fez-lhe perguntas diversas e ficou sabendo que Jeanne morava só com o pai quase inválido no castelo, não tinha irmãos, perdera a mãe com anos incompletos. Deu-se por satisfeito com esses detalhes. Ao despedir-se, Jeanne perguntou-lhe:

Daqui a pouco, quando o porteiro encontrar o cadáver do cão, quem eu digo que o matou?

A senhorita, para defender-se contra um ataque.

Mas nunca ando armada.

Dirá que anda. E depois, acreditem o que quiserem, o essencial é que não me suspeitem quando eu vier ao castelo, e para isso não é prudente ficarmos mais tempo juntos.

Ao castelo? O senhor pretende?…

Não sei como, mas virei e a começar desta noite; portanto, repito-lhe, fique tranquila, porque respondo por tudo.

Jeanne olhou-o e, dominada por ele, seduzida pela sua expressão de segurança e boa-fé, disse, simplesmente:

Estou tranquila.

Então tudo correrá da melhor maneira. Até logo.

Até logo.

De ouvido alerta para não ser encontrado, Lupin visitou os menores recantos do parque, procurou uma portinha que vira, quando rodeara os muros, abriu o trinco, tirou a chave e voltou pelo mesmo caminho por onde entrara. Dez minutos depois, tomava a motocicleta e partia.


*


Na aldeia de Maupertuis, quase contígua ao castelo, procurou saber onde morava o Dr. Guéroult, que Jeanne lhe dissera ser o médico e velho amigo da família. Uma vez em sua presença, apresentou-se como Jean Daubreuil, morador em Paris e mantendo com o Serviço de Segurança relações oficiosas sobre as quais pedia segredo. Declarou ter tido ciência, por uma carta rasgada, da série de incidentes que vinham pondo em perigo a vida da senhorita Darcieux e que, por isso, viera socorrê-la. O Dr. Guéroult, velho médico de roça, que gostava imensamente de Jeanne, aceitou sem demora as explicações de Lupin e concordou que aqueles repetidos incidentes eram provas inegáveis de um complô. Conversaram muito tempo e, depois do jantar, ambos se dirigiram ao castelo.

Guéroult subiu ao quarto do doente, situada no primeiro andar, e pediu permissão para apresentar um colega jovem, ao qual, desejoso de gozar um merecido repouso, pretendia passar dentro em breve toda a sua clientela. Ao entrar, Lupin viu Jeanne à cabeceira do pai. Ela conteve um gesto de surpresa; a um sinal do médico, retirou-se. A consulta processou-se na presença de Lupin. O Sr. Darcieux tinha uma fisionomia emagrecida pelo sofrimento e olhos brilhantes de febre. Naquele dia, queixava-se principalmente do coração. Falou muito em Jeanne, certo de que o enganavam e que ela sofrerá outros acidentes. Apesar da negativa do médico, mostrou-se inquieto, querendo que a polícia fosse chamada a fazer um inquérito. Pouco a pouco, sua agitação esgotou-o e ele caiu em estado de torpor.

No corredor, Lupin interrogou Guéroult:

Então, doutor, qual sua opinião exata sobre a doença do Sr. Darcieux? Acha que pode ser atribuída a qualquer causa estranha?

Como assim?

Sim, suponhamos que o mesmo inimigo tenha interesse em fazer desaparecerem o pai e a filha.

O Dr. Guéroult mostrou-se estupefato com a hipótese:

Com efeito, com efeito. Essa doença apresenta, às vezes, um caráter tão anormal! Seria talvez veneno… Mas qual? Aliás, ele não tem nenhum sintoma de intoxicação… Mas, que está o senhor fazendo?

Os dois homens conversavam diante de uma sala do primeiro andar, onde Jeanne, aproveitando a presença do médico ao lado do pai, começara a refeição da noite. Lupin, que a observava pela porta aberta, viu-a levar aos lábios uma xícara da qual bebeu alguns goles. De repente, precipitou-se em direção dela e segurou-lhe o braço:

Que é isto que está bebendo?

Chá, Sr. Daubreuil!

A senhorita fez uma careta; por quê?

Não sei. Pareceu-me sentir uma espécie de amargor… Mas é por causa do remédio que pinguei, com certeza.

Que remédio?

Umas gotas que tomo às refeições, sob prescrição do Dr. Guéroult. Não é doutor?

Sim. Mas esse remédio não tem gosto algum. Você sabe muito bem disso, porque há quinze dias que o vem tomando.

É verdade. E hoje está com um gosto!… Estou ainda com a boca que parece fel.

O Dr. Guéroult provou o remédio e cuspiu, dizendo que havia ali alguma mistura horrível. Por sua vez, Lupin examinou o vidro e perguntou onde era guardado durante o dia. Mas Jeanne não pôde responder. Levara a mão ao peito, tinha o rosto lívido, os olhos convulsionados e gemia. Os dois homens levaram-na para a cama, prepararam um vomitório com água morna, deram-lhe sais a cheirar. Depois disso, Lupin voltou à sala de refeições, vistoriou o armário, desceu à cozinha, sob pretexto de ter sido incumbido de estudar a alimentação do Sr. Darcieux, e, como quem não quer nada, interrogou a cozinheira, o criado e o porteiro que estava jantando no castelo. Voltando, encontrou o médico, que lhe disse estar Jeanne fora de perigo e adormecida, mas que a tentativa de envenenamento era patente. E o velho médico, apavorado, indagou:

Mas, quem?

Não sei. O demônio que arquiteta tudo isto conhece os hábitos do castelo. Anda para lá e para cá quando quer, passeia no parque, lima a corrente do cão, envenena os alimentos, enfim, move-se como se vivesse da própria vida daquela ou daqueles que quer suprimir.

Então, o senhor acha mesmo que igual perigo ameaça o Sr. Darcieux?

Sem dúvida. Não sei ainda quem é, não sei nada. A única coisa que posso dizer é que a situação é trágica e que se devem esperar os piores acontecimentos. A morte está aqui, doutor; paira neste castelo e dentro em pouco atingirá aqueles aos quais persegue.

Que fazer então?

Velar. Pretextemos que a saúde do Sr. Darcieux nos inquieta e durmamos nessa pequena sala. Os dois quartos, do pai e da filha, são próximos. Em caso de alerta, estaremos certos de ouvir tudo.

Tinham uma poltrona à disposição e ficou resolvido que dormiriam cada qual por sua vez. Mas, na verdade, Lupin só dormiu duas ou três horas. No meio da noite, sem prevenir o companheiro, deixou o quarto, fez uma ronda minuciosa no castelo e saiu pelo portão principal. Por volta das nove horas da manhã, chegava a Paris, de motocicleta e, em companhia de dois amigos, procedeu às pesquisas que decidira fazer. Às seis horas, voltava a toda a pressa, arriscando a vida, loucamente, numa velocidade diabólica. Chegando ao castelo, subiu correndo ao primeiro andar e não encontrou ninguém na salinha; então, sem hesitar, sem bater, entrou no quarto de Jeanne. Vendo-a a a conversar calmamente com o doutor Guéroult, deu um suspiro de alívio. O velho médico, inquieto por ver em tal estado de agitação aquele homem, cujo sangue frio já aprendera a apreciar, perguntou-lhe:

Alguma novidade?

Nada, nada de novo. E aqui?

Também nada. Deixamos agora o Sr. Darcieux comendo muito bem, depois de haver passado um dia excelente. Quanto a Jeanne, o senhor pode ver que já recuperou as belas cores.

Então é preciso partir.

Partir? Mas isto e impossível! — protestou a moça.

É preciso — exclamou Lupin, batendo o pé com verdadeira violência. Logo depois dominou-se, pediu desculpas a Jeanne e explicou-lhe:

A senhorita partirá amanhã pela manhã, por uma semana ou duas somente. Levá-la-ei a casa de sua amiga Marceline Peço-lhe que prepare tudo esta noite, sem reserva, prevenindo os criados. Por outro lado, o Dr. Guerroult avisará ao senhor Darcieux, com todas as precauções, que essa viagem é indispensável à sua segurança. Alias, ele irá ter com a senhorita logo que suas forças lhe permitam. Está combinado, não é?

Absolutamente dominada pela voz ao mesmo tempo imperiosa e suave de Lupin, Jeanne concordou sem mais luta. Disse-lhe ele que preparasse tudo e não saísse mais do quarto. Diante do seu receio de passar a noite sozinha, tranquilizou-a, afirmando-lhe que voltariam ambos se houvesse o menor perigo para ela.

Enquanto Gueroult ia desincumbir-se de sua missão junto ao Sr. Darcieux, Lupin fazia uma ligeira refeição. Afinal, retiraram-se, tendo dado dez horas no relógio da igreja de Maupertuis. Nuvens negras, entre as quais a lua escapava de quando em quando, pesavam sobre o campo. Os dois homens caminharam um pouco e, de repente, Lupin agarrou o braço do companheiro, fazendo-o parar e dizendo-lhe, com voz ansiosa:

Se os meus cálculos não falharem, se eu não estiver inteiramente enganado, esta noite a senhorita Darcieux será assassinada.

Como? Que diz? — balbuciou o médico, apavorado. — Então, por que saímos de lá?

Exatamente para que o criminoso, que segue todos os nossos gestos na sombra, não adie seu crime e que o realize, não à hora que escolhera, mas à hora que eu determinei.

Voltamos então ao castelo?

É claro, mas cada um de per si. Ouça-me bem, doutor. Antes de mais nada, é preciso burlar qualquer vigilância e, para isso, vá diretamente para sua casa e só saia de lá alguns minutos depois, quando estiver certo de não haver sido seguido. Há de se dirigir, então, para os muros do castelo, pelo lado esquerdo, perto da portinhola do pomar. Está aqui a chave. Quando o relógio da igreja bater onze horas, abra-a devagar e se encaminhe para o terraço. A quinta janela do castelo fecha mal; basta empurrá-la e entrar. Uma vez no quarto da senhorita Darcieux, feche-a e não se mexa. Compreenda bem: não se mexa, nem ela tampouco, aconteça o que acontecer. Reparei que a senhorita Darcieux deixa entreaberta a janela do quarto de vestir, não é verdade? É por lá que entrarão.

E o senhor?

É por lá também que entrarei.

E o senhor sabe quem é esse miserável?

Lupin hesitou um tanto, e respondeu:

Não… não sei. E, dessa maneira, acabaremos sabendo. Mas, suplico-lhe, tenha calma. Nem uma palavra, nem um gesto, aconteça o que acontecer.

O médico partiu. Lupin, seguindo em direção oposta à que tomara o médico, dirigiu-se ao castelo. Quando deu onze horas, preparou-se para fazer a mesma manobra que o conduzira ao parque da primeira vez. Uma vez em cima do muro, pareceu-lhe ouvir um ruído; então, prestando atenção, viu uma sombra, que se movia, trinta metros adiante. Um raio de luz atravessou as nuvens e Lupin viu distintamente que a sombra o visava com uma espingarda. Quis descer do muro, mas sentiu um choque no peito, ouviu uma detonação, deu um grito de dor e de raiva, e despencou-se como morto…


*


Entrementes, Guéroult seguira todas as instruções de Lupin e, uma vez no quarto de Jeanne, que encontrou de pé e já pronta para partir, ordenou-lhe que se deitasse, e preveniu-a que alguém viria essa noite tentar o último golpe. Diante de seu pavor, sossegou-a, dizendo-lhe que ela estava bem protegida por Daubreuil, que devia estar à espreita, em algum canto do parque. Nas trevas da noite, Guéroult instalou-se ao lado da cama e, então, escoaram-se minutos muito penosos e que pareciam infindáveis. Ambos apuraram o ouvido, com todos os nervos exasperados. Súbito, um pequeno estalido fez-se ouvir e eles tiveram a impressão de que a janela do toalete se abria mais, porque lufadas de ar frio os envolveram. E, depois, não havia mais dúvida: alguém estava no quarto ao lado. O médico, cuja mão tremia um pouco, segurou o revólver. Lembrava-se da ordem formal, que recebera, e tinha medo de tomar uma decisão contrária. A escuridão era completa no quarto. Não podiam ver onde se encontrava o inimigo, mas adivinhavam-lhe a presença e seguiam seus gestos invisíveis, seus passos abafados pelo tapete, e tinham certeza de que ele transpusera a porta de comunicação. Nessa altura, o inimigo parou, disso estavam eles certos. Estava de pé, a cinco passos da cama, imóvel, talvez indeciso, procurando traspassar as trevas com seu olhar agudo. Na mão do médico, a mão de Jeanne tremia, gelada e coberta de suor… Em sua outra mão, o médico apertava o revólver, com o dedo no gatilho. Apesar da palavra empenhada, não hesitaria em atirar ao acaso se o homem tocasse os pés da cama. O inimigo deu um passo mais e parou de novo. Eram pavorosos esse silêncio, essa impassibilidade, essas trevas onde três seres se espiavam desesperadamente. Mais um passo e imobilidade outra vez. Parecia ao médico e Jeanne que sua silhueta se destacava, mais negra, no espaço negro, e que seu braço se erguia lentamente. Um minuto e outro ainda. De repente, mais longe que o homem, para a sua direita, surgiu um facho de luz ardente, que lhe foi projetada em pleno rosto, impiedosa. Jeanne deu um grito de agonia, pois vira, meio curvado sobre ela e com um punhal na mão, a figura do seu pai! Ao mesmo tempo, e logo que a luz se apagou, o médico atirou.

Pare, não atire! — gritou Lupin.

E agarrou o médico, que sufocava de estupefação e se debatia, gritando que o homem estava fugindo e que acabaria escapando.

Deixe fugir. É o que há de melhor.

Depois, acendendo novamente a lanterna elétrica, foi ao quarto de vestir, constatou que o homem desaparecera e, voltando calmamente, acendeu a luz e sentou-se. Jeanne estava desmaiada. O médico, encolhido na poltrona, emitia sons inarticulados. Afinal, reanimou-se, prestou a Jeanne a necessária assistência e, deixando-a entregue ao sono pesado, dirigiu-se com Lupin para a saleta. E então foi-lhe contada toda a história.

Darcieux não é pai, mas sim padastro de Jeanne. Era ele recém-nascida quando o pai morreu, casando-se a senhora Darcieux com um primo do marido, portador do mesmo nome. No mesmo ano em que contraiu segundas núpcias, a senhora Darcieux morreu, deixando Jeanne aos cuidados do padrasto. Este levou-a primeiro para o estrangeiro, depois comprou este castelo e apresentou a criança como sua filha, ignorando ela mesma a verdade sobre o seu nascimento. Passei o dia nos cartórios de Paris, consultei registros civis, interroguei dois tabeliães e vi todos os documentos. Não há dúvida quanto a esses fatos.

Mas isso não explica o crime ou, antes, a série de crimes.

Sim, e desde o início, desde a primeira hora em que me vi envolvido nesse caso, uma frase da senhorita Darcieux me fez pressentir a direção que devia imprimir as minhas pesquisas: “Eu tinha quase cinco anos quando minha mãe morreu, há dezesseis anos”. Ora, a senhorita Darcieux ia, pois, completar a maioridade. Imediatamente, achei esse detalhe importante. A maioridade é a idade em que se pedem contas. Qual era a situação da fortuna da senhorita Darcieux, herdeira natural de sua mãe? Bem entendido, não pensei nem um segundo no senhor Darcieux, primeiro porque não se pode conceber tamanha monstruosidade, depois porque a comédia de doente, que ele representava, era perfeita. Tudo isto afastava dele as suspeitas, tanto mais que eu o supunha vítima, também, de tentativa criminosa. Mas a minha viagem a Paris revelou-me a verdade: a senhorita Darcieux herdara de sua mãe uma grande fortuna, da qual o padrasto tem o usufruto. No mês próximo, deveria haver em Paris uma reunião do conselho de família. A verdade surgiria, seria a ruína para o Sr. Darcieux, que sofreu grandes penas em consequência de especulações infelizes.

Mas, enfim, Jeanne não lhe teria retirado a gestão de sua fortuna!

Há um detalhe, que o senhor ignora, doutor, e que eu conheço pela leitura da carta rasgada: é que a senhorita Darcieux ama o irmão de sua amiga Marceline e que esperava a maioridade para casar-se, porque o Sr. Darcieux se opunha ao casamento (o senhor agora poderá compreender a razão disso). Portanto, só lhe restaria uma tábua de salvação: a morte da enteada, da qual ele é o herdeiro direto. Era preciso, entretanto, que o não suspeitassem, e, por isso, ele maquinou aquela série de acidentes, a fim de que a morte parecesse fortuita. E por isso, também, querendo precipitar as coisas, foi que lhe pedi que lhe comunicasse a partida iminente da senhorita Darcieux. Depois, já não bastava que o doente imaginário errasse pelo parque ou nos corredores do castelo, protegido pela noite, e pusesse em execução o golpe combinado há tempos. Não; era preciso agir, e agir imediatamente, sem preparação, brutalmente, a mão armada. Eu tinha certeza de que ele se decidiria por essa solução e não me enganei.

Então, ele não desconfiava?

Só de mim. Pressentiu minha volta esta noite e estava de guarda no lugar exato onde pulei o muro.

E então?…

Então — disse Lupin, rindo —, levei um tiro em pleno peito, ou antes, em minha carteira de cigarros, que é de metal. Despenquei-me da árvore, como um homem morto. Acreditando-se livre de mim, ele veio para o castelo e eu o segui.

O médico pensou um instante e disse:

Mas o senhor poderia tê-lo agarrado antes. Por que o deixou subir? A prova era bastante dura e inútil para Jeanne.

Era indispensável, Dr. Guéroult. Nunca a senhorita Darcieux admitiria a verdade. Era preciso que visse o rosto do assassino. Logo que ela acorde, o senhor a porá a par da verdadeira situação e ela esquecerá depressa.

Mas, a desaparição do Sr. Darcicux?

O senhor explicará facilmente: uma viagem repentina, um ataque de loucura. Farão algumas pesquisas e ninguém mais ouvirá falar nele.

Sim, o senhor tem razão. Deu provas de uma habilidade extraordinária e Jeanne deve-lhe a vida. Não lhe posso ser útil em alguma coisa? O senhor disse-me que mantém relações com o Serviço de Segurança. Permite-me escrever-lhe elogiando sua coragem?

Lupin pôs-se a rir.

Certamente! Uma carta desse gênero me será útil. Escreva então a meu chefe direto, o inspetor principal Ganimard. Ele ficará encantado de saber que seu protegido, Jean Daubreuil, mais uma vez se distinguiu por um feito de sensação. Acabo justamente de trabalhar sob suas ordens num caso que não lhe deve ser desconhecido, o caso da echarpe vermelha…. Como esse bondoso Sr. Ganimard vai ficar satisfeito!…


Fonte: “Fon-Fon”/RJ, edição de 13 de novembro de 1948.

Fizeram-se breves adaptações textuais.

Ilustração: PS/Perchance.



 

Comentários

  1. Amigo Paulo, sábado de manhã, hoje, agora, esterei lendo este conto. Depois comento sobre a obra.

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  2. Barão amigo, acabei de ler o conto. Alto poder descritivo e os diálogos, muito bem trabalhados. Um contaço sem dúvida, vou pesquisar sobre o autor nas IAs...esse autor , parece que já o conheço de outras leituras...Enfim, um conto perfeito, realmente.

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  3. ah, realmente, esse é o criador do famoso detetive Lupin ! Curioso que o personagem ficou mais famoso que o autor...eu realmente já tinha lido algo do Leblanc, mas não me recordava. Agora, o contaço muito bem escrito, alto poder descritivo, diálogos bem elaborados...Uma obra de arte contística.

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