A CAÇADA - Conto de Terror - Cristina Faraco



A CAÇADA

(Cristina Faraco - 5º Lugar no Concurso Bran Stoker de Contos de Terror)


A chama da velha lareira iluminava e aquecia o grande salão comunal da vila. Apesar do frio noturno, sua testa e mãos estavam suados e seu coração batia rente aos próprios ouvidos. Por muito tempo, alertara a comunidade sobre a terrível criatura da floresta e ansiava pela oportunidade de matá-la com suas próprias mãos. As mesmas mãos que seguraram e enterraram o corpo de seu único filho, morto durante a última caçada. Desta vez, jurara ao seu próprio Deus que a criatura encontraria seu fim, de uma vez por todas.
Sem liberdade e tomados pelo medo, os moradores da pacata vila de Bosque Profundo temiam ser dizimados. Nenhum homem sozinho conseguiria destruir o monstro. Contudo, ainda havia a esperança de que um grande grupo de caçadores poderia acabar com aquele pesadelo.
O reverendo Baltazar reuniu todos os homens que pudessem empunhar uma arma para se juntar à caçada. Mas não seria qualquer arma e aquela não era uma caçada comum. A bizarra criatura que vivia dentro da mata, meio homem e meio lobo, buscava suas vítimas sempre em noites de lua cheia. Aquela noite fria e sem nuvens revelava a lua em seu total esplendor. Seria o momento ideal para a grande perseguição mortal.
Mas, como mataremos o monstro se ele parece imune às nossas lâminas de ferro? — argumentou, um tanto incrédulo, o ferreiro da vila. — Não vou arriscar minha pele se nossas armas não funcionam.
Um burburinho espalhou-se entre os homens, muitos deles de porte robusto do trabalho pesado no campo. Apesar de serem homens fortes, nenhum deles tinha experiência militar ou perícia de luta. A pacata vila nunca entrara em guerra com outras comunidades e sua subsistência baseava-se na extração de lenha, ordenha do gado, plantio e coleta de grãos. O medo de um confronto corpo a corpo com o homem lobo intimidava até o mais destemido deles.
Reverendo Baltazar fez sinal com as mãos para que silenciassem, até que finalmente falou:
A velha senhora da floresta contou-me sobre a criatura! O monstro teme o poder da prata, que brilha como a lua que o desperta.
Ela é uma bruxa isolada no fundo da mata! — resmungou o criador de cavalos. — Por que confiaríamos em uma velha bruxa?
As vozes, mais uma vez, acaloraram-se, gerando uma discussão difusa sem chegar a lugar algum. O marceneiro da vila tomou a palavra desta vez:
Se esse monstro não for destruído, minha família e eu vamos abandonar a vila, como já fizeram tantos outros!
Acalmem-se, senhores! — pediu o reverendo. — Entendo a aflição de todos, e estamos aqui para pôr um fim neste desespero. Quero tanto a morte deste monstro quanto vocês! Perdi meu próprio filho para suas demoníacas presas e tenho convicção de que irei matá-lo com as minhas próprias mãos. A dúvida só nos levará à derrota! Precisamos ter fé para alcançar o sucesso de nossa caçada.
Ter fé numa bruxa? — insistiu o criador de cavalos.
Não! — respondeu o reverendo. — Mas nisto!
Retirando um pano que cobria algo sobre a mesa, revelou uma grande besta de madeira trabalhada artesanalmente, com empunhadura de metal e uma flecha de ponta de prata.
Eu mesmo mandei talhar e forjar na grande cidadela! — disse o reverendo, enquanto todos silenciaram com os olhos atentos. — E, com a bênção do bispo, batizei com a água benta do templo maior, para matar a criatura amaldiçoada com a flecha sagrada!
Todos se espantaram com a beleza da arma e encheram seus corações de esperança, apesar do todo o medo. O silêncio imperou no salão comunal enquanto vislumbravam o artefato bélico, como se aquilo houvesse sido construído pelos próprios anjos.
Vamos acabar com esta maldição, e vai ser nesta noite!
Todos vibraram com a coragem e a nova arma do reverendo. No meio de todo aquele terror, houve espaço para sorrisos nervosos e gestos de afirmação diante de tamanha valentia. Sem titubear, cerca de vinte homens juntaram facões, machados e porretes em suas mãos, munidos de tochas para iluminar a escuridão do bosque. De sangue quente correndo em suas veias, rumaram sem medo para as profundezas da floresta que cercava a vila. A obsessão de Baltazar em aniquilar a bizarra criatura despiu-lhe de todos os medos e precauções. Ele só tinha olhos e ouvidos para as profundezas da noite. Nem sequer as súplicas de sua esposa para que não se arriscasse naquela louca empreitada foram suficientes para que desistisse naquele momento.
A caçada começou logo após o cair da noite. Em poucos minutos, as chamas desapareceram aos olhos da vila, engolidas pela escuridão da floresta. Os cerca de vinte homens rumaram valentes, todos a pé, com armas em punho e tochas ardendo, reluzentes, em meio à penumbra. As passadas firmes da caminhada sobre a serapilheira seguiram a trilha por cerca de três horas até os limites conhecidos da mata. Até que pararam em frente a dois troncos imensos caídos pelo caminho.
O que faremos agora? — questionou o velho marceneiro.
Tragam os machados!
E, a mando do reverendo, quatro homens desceram seus machados sobre os troncos gigantescos, picando-os em vários pedaços. Após uma hora de trabalho árduo, já com as frontes suadas e os dedos cansados, cheios de calos, eles concluíram o serviço e desobstruíram o caminho. Nada impediria Baltazar de encontrar o ser monstruoso que dilacerou o seu filho. Nem mesmo as próprias árvores da floresta o impediriam de cruzar com aquele que acreditavam ser a fonte de todo o mal.
Seguindo mata adentro, numa baixada de terra, chegaram diante de um vale de leito seco que descia como uma profunda garganta rochosa. O vento soprava num horripilante assovio que eriçou os pelos até do mais bravo caçador. Eles pararam para observar o terreno antes de prosseguir, e então notaram algo estranho.
Que barulho é esse? — disse o ferreiro, já não tão corajoso quanto outrora.
Um som inusitado, como o farfalhar de milhares de asas, surgiu das profundezas do vale. Tentando enxergar o que havia mais à frente, reverendo Baltazar ergueu sua tocha. Neste instante, um enxame de morcegos atravessou o ar sobre suas cabeças, trazendo pânico à maioria dos homens. No desespero, muitos tentaram inutilmente acertar os pequenos e aterrorizantes animais com suas armas e tochas, derrubando-as no chão. Os gritos de horror ecoaram pelo vale, retumbando sobre as rochas maciças de basalto e granito. Uma grande parte dos caçadores abandonou o grupo, correndo desesperadamente de volta para a trilha da floresta que levava à vila, na esperança de chegar viva em casa.
Covardes! — gritou o reverendo.
Sua fúria transparecia em seus olhos famintos por vingança e o abandono de seu fracassado exército não lhe havia tirado a sede de matar o monstro. Ainda que todos o abandonassem, ele não desistiria da sua obsessão. Mesmo que essa decisão o levasse à sua própria ruína.
Vamos! — continuou convicto. —Temos que acabar com isso de uma vez!
Ele e apenas um punhado de homens continuaram pelo vale, iluminados por suas tochas e pelo luar do grande astro noturno, que despontava no céu. Uma auréola formou-se ao redor da lua cheia, fazendo com que um dos lenhadores hesitasse em continuar.
Isso é mau presságio! Eu sabia que não deveríamos dar ouvidos àquela bruxa!
Cale a boca! — resmungou o reverendo. — Vamos em frente, ou junte-se aos covardes que nos abandonaram! Depois que matarmos o lobisomem, você vai conseguir suportar a vergonha da sua covardia? Onde está a sua fé, homem?
O lenhador sentiu-se envergonhado e, engolindo em seco o seu medo, seguiu adiante logo atrás dos outros. Os minutos passavam feito horas e a noite parecia não ter mais fim.
Sem a noção real do tempo que passava, perceberam que o vale estreitava-se cada vez mais à medida que avançavam. Até que a garganta do vale terminou em frente a uma grande caverna. A boca da entrada tinha cerca de seis metros de altura por quatro de largura, como a porta da casa de um terrível gigante.
Eu não vou entrar aí dentro! — vacilou o ferreiro. — Pode me chamar de covarde, mas não vou entrar aí nem morto!
Então volte, seu covarde!
É isso mesmo o que eu vou fazer!
E, sem olhar para trás, o lenhador e mais dois outros homens seguiram de volta pelo vale apressados, antes que suas tochas apagassem com o vento gelado que soprava através da garganta.
Os quatro homens restantes entreolharam-se. Reverendo Baltazar viu que eles estavam com medo, mas segurou sua fúria para não os afugentar. Estava guardando todo o seu ódio e forças para acabar de vez com o lobisomem. Ele depositava toda a sua fé na besta e na flecha de prata que carregava. Aquilo tinha que terminar naquela noite. Seria um único e fatal tiro. Até a madrugada, todo aquele terror teria um fim.
Diminuindo os passos, eles entraram na grande e assustadora caverna. Ela seguia em curva para a direita, fazendo com que não fosse possível enxergar muito além. As paredes úmidas vertiam água em pequenos filetes pelas dobras das rochas e um cheiro pútrido vinha de seu fundo, espalhando-se pelo ar. Conforme avançavam, perceberam ossadas espalhadas pelo chão. Pareciam costelas e ossos longos de cervos e outros animais. O cheiro fétido aumentava enquanto adentravam o túnel, mas os caçadores continuaram o caminho com suas armas em guarda. O suor escorria pelos seus rostos tensos. Segurando a besta com força, o reverendo sentiu suas mãos tremerem. Baltazar podia sentir o cheiro da morte.
Uma espécie de urro gutural alastrou-se pelo túnel, vindo de seu fundo escuro.
O que foi isso?
O lenhador sentia o coração bater em sua garganta. As mãos suadas mal conseguiam segurar o machado e a tocha, que já estava quase se apagando. Com os olhos arregalados, fitou um dos crânios que jazia jogado no chão. Ratos e insetos asquerosos saíam pelos orifícios oculares da ossada, revelando a imagem macabra de um crânio humano. Uma ratazana cinzenta, que estava apoiada sobre a rocha de uma das paredes, saltou em seu rosto e o mordeu no nariz, fazendo com que o homem gritasse apavorado, deixando cair a tocha no chão úmido. Desesperado, segurou o animal com uma das mãos, enquanto cambaleava com o machado balançando a esmo, inutilmente, desajeitado o suficiente para dar um encontrão e derrubar a tocha do homem ao seu lado. Assustado, naquela penumbra, o homem cuja tocha apagou-se na umidade do chão da caverna saiu correndo aos berros túnel afora. O lenhador, com o rosto e as mãos ensanguentados pelo roedor faminto, escorregou, caindo de costas no solo, enquanto dezenas de outros roedores avançaram sobre o seu corpo. Gritando apavorado, o pobre homem era devorado vivo, enquanto os outros dois homens que sobraram assistiam chocados, sem saber como reagir. Tentaram se aproximar com o fogo da tocha, mas o medo de serem atacados pelos animais assassinos era maior do que sua compaixão.
De costas para o fundo da caverna, os dois últimos caçadores não perceberam que a criatura se aproximava. Num salto, o bestial lobisomem jogou-se sobre o último companheiro de Baltazar, cravando suas enormes presas pontiagudas sobre o pescoço do homem, dilacerando-lhe os ossos e rasgando suas artérias, a ponto de impedir-lhe qualquer reação. O sangue jorrava para todos os lados, numa dança macabra e assustadora. Apavorado e com as mãos tremendo, o reverendo Baltazar apontou sua besta para a horrenda criatura enquanto esta se virava para atacá-lo. Ele não podia hesitar agora. Era o único e fatal tiro que tanto esperava. Seu dedo encaixou no gatilho e puxou.
A criatura saltou no exato momento em que a flecha de prata atravessou o ar e acertou em cheio o seu peito. Quando a ponta atravessou a carne peluda, o lobisomem abriu sua boca soltando um grunhido de dor, até cair sobre o corpo do reverendo, com todo o seu peso. O homem com a besta caiu para trás no chão, enquanto as presas afiadas cravaram-lhe o ombro. Uma dor indescritível penetrou-lhe o músculo e os ossos, espalhando-se por todos os nervos e tecidos. Uma sensação estranha de mal-estar deixou-o nauseado e desgovernado. Pensou que era o seu fim, mas não era.
Lentamente, o enorme lobisomem que estava caído sobre seu corpo começou a morrer. Ofegante e fora de si, a criatura moribunda deu seu último suspiro, e o reverendo pôde sentir seu bafo quente no próprio rosto. O monstro encontrou o seu fim de olhos abertos, fitando o homem que o matara. Aos poucos, o robusto corpo coberto de pelos começou a se transformar, retomando uma forma humana. Ao fim da metamorfose, o imenso lobisomem não passava de um homem comum, como tantos outros moradores da vila de Bosque Profundo.
Baltazar empurrou o corpo nu do homem morto para o lado, esquivando-se na tentativa de levantar-se. Seu ombro doía muito, enquanto se erguia novamente no túnel escuro. Não havia mais tochas para iluminar. Estava muito difícil de enxergar, entretanto, conseguiu cambalear lentamente para fora da pútrida caverna.
Sozinho, na escuridão do vale, ele seguiu de volta para a floresta onde retomou a trilha feita pelos caçadores. Estranhamente, estava com uma fome insaciável e decidiu voltar logo para a vila. Sua visão estava diferente. Os sons e aromas também estavam estranhamente nítidos e seu estômago retorcia-se de fome. Com os sentidos aguçados, escutou vozes pela mata e seguiu seus instintos. Correu rapidamente em meio às folhagens e arbustos, em direção ao som familiar. Mais adiante, estavam o lenhador e outros dois homens que haviam fugido da caçada. Apesar do frio e da penumbra noturna, eles lavavam o suor de seus rostos na beira de um pequeno riacho na floresta.
Ao escutar sons de galhos partindo-se como se algo se aproximasse, os homens ficaram assustaram e tentaram ver o que era.
Reverendo, é você?
Quando Baltazar revelou-se por trás das árvores e arbustos, os três homens levantaram-se com armas em punho, ameaçadoramente, com pleno terror em suas vozes:
Afaste-se, monstro assassino!
Quando o reverendo tentou falar, um uivo assustador saiu de sua boca, enquanto ele mesmo virava sua cabeça para a lua cheia no céu.
Os três homens, desesperados, correram de volta para a vila gritando que o terrível lobisomem havia matado o reverendo e estava solto pela floresta, em busca de mais sangue para saciar sua fome de carne humana. A caçada ainda não havia acabado e precisariam de mais reforços do povoado vizinho para destruir a criatura assassina.
O reverendo Baltazar, cheio de ódio e obcecado pela sua vingança, conseguiu matar a bizarra criatura que assassinou o seu filho e que tanto atormentara a vila de Bosque Profundo. Porém, sua cegueira e loucura levou-o, inevitavelmente, a transformar-se no próprio monstro. Agora, ele seria caçado sem piedade até o fim dos seus dias.


Cristina Faraco é Bióloga graduada na UNISINOS, Especialista em Gestão Ambiental pela ACE e Mestre em Educação na UNISUL. Escreve histórias de ficção desde os oito anos de idade e seus primeiros contos de terror foram impressos aos dezessete anos, tendo uma boa repercussão entre os colegas de escola. Atualmente, leciona Ciências Biológicas na Escola de Educação Básica Prefeito Luiz Carlos Luiz, em Garopaba. Paralelo ao trabalho docente, se dedica a criação de histórias de ficção, terror e fantasia. Por incentivo de leitores, a partir de 2018, pretende divulgar suas obras em concursos literários.

  

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