A DOR DA MUDANÇA - Conto de Terror - Maria de Fátima Esteves Martins
A
DOR DA MUDANÇA
(Maria de Fátima Esteves Martins - 20º Lugar no Concurso Bram Stoker de Contos de Terror)
Há seis meses que Augusta casara
com Artur, um dos rapazes mais desejado pelas jovens da vila e sentia-se, por
isso, uma mulher de sorte.
No entanto, poucas semanas após o
casamento, e, pela primeira vez, Artur não passara a noite em casa, dizendo que
tinha ido ajudar a mãe e que acabara por dormir lá. Augusta não acreditou. O
mais certo era ter passado a noite com os amigos ou com outras mulheres. Embora
não cheirasse a álcool, estava demasiado pálido e cansado, quase exausto, mesmo
assim, tomou banho e foi trabalhar.
Tudo não teria passado de um
incidente, que estava disposta a esquecer, se o mesmo não se voltasse a repetir
de forma regular, de três em três semanas e, como mais tarde constatou, nas
noites de lua cheia.
De início, ainda fez perguntas,
depois limitou-se a observar os sinais e, mais tarde, decidiu falar com a avó.
Contou-lhe que a mulher de um amigo do marido lhe tinha confidenciado que o
mesmo passava todas as noites de lua cheia fora de casa e chegava ao raiar do
dia muito pálido.
A avó sorriu, um sorriso triste, e
contou-lhe que antigamente, quando ela era jovem, tinha namorado um belo rapaz
com quem tinha sonhado casar e só não o fizera porque ele era diferente. Nas
noites de lua cheia, transformava-se num animal, aquilo que normalmente se
chama de lobisomem, embora nem todos se transformassem em lobo.
O coração de Augusta batia de forma
muito acelerada, ela não queria acreditar, não podia ser mesmo assim, e mesmo
que isso fosse possível, ela não ia fugir como a avó, até porque já estava
casada. Ia enfrentar a situação e ajudar o seu homem. Perguntou tudo sobre o
caso, inclusive como é que a avó sabia que ele era um lobisomem.
A avó sorriu tristemente e explicou
que ele a amava tanto que lhe contara tudo e lhe pedira ajuda, mas ela não
tivera coragem e ele respeitou a sua decisão. Acabou por morrer numa luta
desigual quando foi atacado por um javali, do qual nem tentou defender-se. A
avó contou, ainda, como tudo se passava: nas noites de lua cheia, quando a lua
surgia no céu, ele já estava na rua, normalmente fora das zonas habitacionais.
No primeiro cruzamento de terra (nas zonas não alcatroadas), ao pisar uma
pegada de animal, transformavam-se nesse animal, deixando aí as roupas e saindo
a correr. Tinha de visitar sete vilas acasteladas e regressar de novo
descansando até à próxima lua cheia.
— E havia possibilidade de deixar
de se transformar? — quis saber Augusta.
Havia, mas não era fácil. Era
preciso que alguém o picasse, enquanto estivesse transformado em animal, de
modo a escorrer sangue ou ir ao local onde estavam as roupas e queimá-las antes
que ele regressasse. Picá-lo era um grande risco porque se não acertasse, o
animal poderia atacar. Ir buscar as roupas também era arriscado, porque se não
fossem queimadas antes de o animal regressar ou se ele ainda estivesse perto e
sentisse o odor do humano poderia voltar para trás e atacar quem o tentasse
ajudar. Enfim, a avó não teve coragem e perdeu o único homem que amara de
verdade em toda a sua vida.
Augusta saiu de casa da avó
determinada a ajudar o marido, tinha muito medo, mas não ia ficar toda a vida
casada com um homem que se transformava em animal. Pensou em todas as noites
que Artur saía, sempre depois de jantar, dizendo que ia a casa da mãe. Viu no
calendário a data da próxima lua cheia e decidiu que seria a última que ele
passaria longe dela.
O dia chegou, à hora do costume,
Artur saiu. Augusta vestiu-se toda de preto, embrulhada num xaile que trouxera
da casa da avó. Antes de sair de casa, ateou bem a fogueira que ardia na
lareira e deixou um monte de lenha preparado para quando regressasse.
Caminhou na sombra até junto à casa
da sogra, mesmo a tempo de ver Manuel sair e seguir até à entrada da vila onde
seguiu em direção ao campo. Viu-o chegar a um cruzamento e olhar para o céu. A
lua surgia lentamente em todo o seu esplendor, e, como que por encanto, com um
gemido abafado, Artur transformou-se em lobo (ela esperava que ele se
transformasse em javali ou raposa, pois eram estes os animais selvagens que
mais se aproximavam da vila, mas foi um lobo que ela viu afastar-se a correr).
Esperou vinte minutos, ele já devia
estar longe. Com o coração a bater e as pernas a tremer, aproximou-se das
roupas, pegou nelas, tendo o cuidado de não perder nenhuma peça, e regressou a
casa a correr. Já perto de casa pareceu-lhe ver um vulto, hesitou, não podia
ser o marido, senão já a teria atacado. Apertou as roupas com força, contra o
seu próprio corpo e correu, sem olhar para trás.
Não viu que o vulto era a sogra que
entre lágrimas e orações rezava e agradecia a Deus por aquela mulher que fazia
o que ela nunca tivera coragem de fazer.
Ao chegar a casa, ateou, de novo, a
fogueira, colocou o máximo de lenha e, uma a uma, queimou todas as peças de
roupa, e só então reparou que estava encharcada em suor e lágrimas como se
tivesse participado numa luta corpo a corpo. Estava exausta. Se tudo fosse como
a avó dissera, o seu Artur estaria salvo. Tomou um banho, desta vez perfumado,
vestiu-se e deitou-se no sofá à espera.
Não havia tempo a perder, era
preciso regressar a casa antes do amanhecer. Correu o mais que pode no sentido
inverso. Junto a uma casa viu um estendal com roupa, tirou umas calças e
vestiu-as. Quando se preparava para tirar uma camisa, ouviu gritos atrás de si.
Tinha sido descoberto. Começou a correr, ao mesmo tempo que sentia dores
horríveis nas costas e um líquido quente a escorrer. Estava a ser atacado com
pedras, algumas das quais já o tinham atingido. Sempre a correr, ouviu os cães
a ladrar cada vez mais próximos e soube que estava a ser perseguido.
Correu sem parar, qual atleta a
tentar atingir a meta em primeiro lugar e só sossegou depois de atravessar um
pequeno rio que fez com que os cães lhe perdessem o rasto.
Foi rente à manhã, já com luz, que
ele entrou em casa, mais pálido do que nunca, apenas vestido com umas calças
velhas e com o corpo e os pés a sangrar. Abriu a porta de casa devagar, e, ao
sentir o ar quente, ficou imóvel, sem conseguir reagir. Ao aperceber-se da
demora em entrar, a mulher levantou-se e veio ao seu encontro, deu-lhe a mão,
puxou-o para dentro e fechou a porta.
No ar, o cheiro a roupa queimada
era muito intenso e lá fora o dia acabava de nascer. Ficaram ali abraçados,
enquanto ele balbuciava, entre lágrimas:
— Obrigado, obrigado…
Maria
de Fátima Esteves Martins
nasceu a 13 de janeiro de 1969, no concelho de Mação, no distrito de Santarém —
Portugal. No início de 2014, começou a participar em concursos literários. Tem
cerca de duas dezenas de textos publicados em e-books e em antologias em
Portugal, na Espanha e no Brasil.
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