CUIDADO QUE A CUCA TE PEGA - Conto de Terror - Desidério de Moraes
CUIDADO
QUE A CUCA TE PEGA
(Desidério
de Moraes - 11º Lugar Lugar no Concurso Bram Stoker de Contos de Terror)
Degravação
oficial dos áudios das três (3) últimas consultas de Odessa Duarte com a
Doutora Fabielle Pensatto nos dias 9,11 e 13 de agosto de 2010, pelo
departamento de Perícia Digital - Polícia Federal.
Mídia 1 –
(09/09/2010)
Doutora
Fabielle Pensatto: Esse é o início da quarta
semana do desmame de Odessa. Ela tem reagido bem até então, sem grandes
complicações. Ocasionalmente ela conta sobre terrores noturnos que se
assemelham bastante com os que tinha no início do tratamento anos atrás, mas
nada fora do esperado. [A gravação é pausada e retomada em outro momento]
Odessa
Duarte: Essa noite eu sonhei de novo com ela,
doutora. Eu tava deitada na minha cama, quase pegando no sono. Quando,
de repente, no canto da janela do quarto, eu vejo uma silhueta familiar coberta
por um véu preto. Era ela... Me olhando pelo vidro. Na hora eu perdi o sono e
meu coração começou a bater muito rápido. Ela, então, abre uma fresta e entra
pela janela, com aquele fedor de mofo e carniça vindo enquanto ela se movia
pelo teto com a agilidade de uma aranha. Eu tento fugir, jogar as cobertas pro
lado e sair correndo, mas eu não consigo. Estou paralisada. Ela vem bem perto e
o seu crânio pendurado pelos cabelos na mão direita balança bem diante dos meus
olhos. Com aquelas órbitas vazias brilhando uma luz negra hipnotizante. Ela
abre a boca e gargalha dizendo: “Criança” [Odessa imita uma voz]
“Esperei tempo demais pra provar
de sua carne doce. Mas agora não tem pra onde correr, a idade chegou pra você,
e você será minha”. Eu tento gritar, mas nenhum som sai da minha boca. Ela
desce do teto e cai pegajosa sobre mim, ela arranca as cobertas revelando o
resto do meu corpo. Ela olha pra
baixo. Eu sinto a sua mão gelada e dura passar pela minha perna e encontrar
minha calcinha. Então, eu sinto uma dor terrível e é ela enfiando o braço na
minha ahn.... vagina... eu sinto ela entrando até o útero e me dilacerando por
dentro. Como se fosse um peixe escamado com lâminas se debatendo dentro de mim.
Ela ri. Eu acordo toda suada e com muita cólica, quando olho pra baixo vejo o
lençol sujo de sangue.
Dra.
Pensatto: Você contou para sua mãe?
OD: Sobre as cobertas sim. Ela veio assim que eu acordei, veio me
socorrer por conta dos gritos. Eu nem sabia que tava gritando. Aí ela
perguntou por que eu tava gritando e eu mostrei o sangue, ela riu da
minha cara e começou a me explicar sobre menstruação. Eu não sou burra, claro
que eu sei o que é menstruação. Mas eu não disse nada sobre o sonho, não queria
comentar com ninguém que não fosse você…
Dra. P: Você pode confiar na sua mãe, Odessa. Lembra que tínhamos
conversado sobre trabalhar isso progressivamente? Essa seria uma ótima
oportunidade de você treinar isso e se reaproximar dela. É bom que você tenha
algum outro ponto de apoio além de mim, principalmente porque sua mãe está
presente diariamente contigo. [a doutora faz uma pausa e continua em
seguida] E quanto à menstruação? Como você se sente sobre isso?
OD: Eu não sei dizer ao certo, eu estaria feliz, mas… eu acho que não
consigo separar uma coisa da outra. Pra mim, é como se ela tivesse me feito
sangrar. Ela me machucou por dentro. Eu demorei tanto tempo pra menstruar, e
quando acontece ela tá no meio...
Dra. P: Calma Odessa. Acho que teve seu lado positivo também. Olha só,
bem no início do desmame e você já menstruou! É uma conquista e tanto pra você.
Seu organismo se acostumando à sua própria natureza de novo. Tenta pensar mais
sobre isso do que sobre você ter sonhado com ela. Infelizmente o desmame tem
esse efeito colateral nas primeiras semanas, essa sensação de instabilidade, eu
quero dizer. É questão de paciência, à medida que você for se habituando às
doses mais baixas isso vai passar. Mas se os seus pesadelos piorarem eu vou
precisar saber. Eu achei esse sonho diferente dos outros, você consegue
perceber alguma coisa diferente também?
OD: Como assim?! Que tal o fato de que eu acordei sangrando depois
que um “sonho maluco” fistou a porra da minha boceta?!
Dra. P: Sim, claro... Isso também. Mas a impressão que ficou pra mim é
que esse sonho não tinha as mesmas imagens de antes. Eu percebi que o arquétipo
do esqueleto assumiu uma posição de algoz e a tua imagem assumiu a de vítima.
Isso é uma dinâmica nova. Pelo que eu me lembre, ou as imagens eram do que
aconteceu quando você era menor, ou a relação desenvolvida entre você e a
caveira era da natureza de uma ameaça, um aviso de que ela se vingaria de você,
que viria te pegar. Você entende o que eu tô falando?
OD: Sim...
Dra. P: O que você acha que pode ter mudado essa dinâmica? Você tem se
sentido mais vulnerável?
OD: Hmm… Eu não sei… É como se dessa vez ela realmente estivesse lá.
Foi como a primeira vez em que eu a vi. O cheiro, os sons… o som dos ossos se
batendo quando ela se mexia…. tec tec tec. Não foi como uma imagem
sonhada. Porque eu lembro que na primeira vez eu tava acordada, mas tudo
parecia um sonho. Dessa vez eu tava dormindo, mas tudo parecia real. Eu
não entendo o porquê… Logo agora que eu não tenho esses pesadelos há eras. Não
era pra acontecer. Eu não tenho mais medo, só de vez em quando que eu me
lembrava dela. Mas não tô vivendo aquele horror de antes.
Dra. P: Essas coisas vão e voltam, Odessa. É preciso não só aceitar, mas
entender que você passou por uma experiência muito traumática. O que aconteceu
com o Caio foi de uma barbárie imensa. E o fato de que você foi testemunha
disso tão novinha... Não é à toa que sua cabeça criou essa personagem pra lidar
com o trauma. Esse tipo de coisa deixa marcas na gente, deixou uma marca
profunda em você. É uma cicatriz sua, vai melhorar com o tempo, mas não tem
como apagar. Fica tranquila, meu bem. O nosso tempo acabou por hoje, mas eu
quero que você saiba que não precisa passar por isso sozinha, você tem meu
número, pode me ligar se tiver uma crise e quiser conversar. Nos vemos na
quarta então, certo?
OD: Claro, tchau-tchau. Até…
-Fim da
gravação-
Mídia 2 – (11/09/2010)
Dra. P: Ontem, por volta da meia-noite, Odessa me ligou após ter sofrido
de alucinações e acordado de um desmaio com alguns hematomas pelo corpo que ela
não sabia explicar. Eu a acalmei como pude pelo telefone e sugeri que na
consulta de hoje nós tentássemos uma dinâmica hipnótica pra tentar ajudá-la a
recobrar sua memória sobre o que exatamente aconteceu. Ela concordou em se
submeter à hipnose. A minha expectativa é que nós consigamos ver os fatos como
realmente aconteceram, sem as máscaras das ilusões de Odessa. [A gravação é
pausada e retomada em outro momento]
Dra. P: Você se importa em me mostrar os hematomas Odessa?
OD: Não [a menina fala em um sussurro]. Além desse no meu
pescoço tem alguns pelas costas…
Dra. P: Meu deus…[alguns segundos de silêncio se seguem] Me conta
o que você consegue se lembrar, Odessa.
O.C: Eu… [a menina começa a chorar e fala entre soluços] Eu me
lembro de estar no meu quarto. Tinha acabado de jantar… Depois do sonho da
menstruação eu fiquei lembrando do Caio, o tempo inteiro. Vendo aquelas cenas
horríveis na minha cabeça de novo e de novo…
Dra. P: Você diz de quando você viu seu amigo sendo, ahn... Comido, pelo
esqueleto?
OD: Sim! Daí eu quis ver fotos do Caio, eu precisava ver ele de novo,
saber do rosto dele de verdade e não da lembrança que eu tenho. A cabeça dele
ensanguentada no chão... Eu queria ver ele como uma pessoa de novo, eu acho...
Eu peguei umas fotografias antigas nossas… Fiquei olhando pra uma que a gente
tá no quintal da casa dele… Essa é a última coisa que eu me lembro, depois tudo
ficou preto e eu acordei no chão do quarto, com o corpo doendo.
Dra. P: Muito bem, Odessa. Vamos começar então? Feche os olhos...Ouça a
minha voz. Inspire fundo… agora solte. Eu vou contar de dez a um e a cada
número você vai se imaginar caindo no espaço. Dez, você sente seu corpo afundar
no divã. Nove, você está bem relaxada. Oito, seu corpo vai afundando no
estofado. Sete, o estofado abraça seu corpo. Seis, cada vez mais fundo. Cinco,
você está muito relaxada. Quatro, mais relaxada, mais fundo. Três, mais fundo,
mais fundo. Dois, muito relaxada, muito fundo. Um, você cai num sono profundo.
Eu quero que você volte para quando estava vendo as fotos antigas, ontem, no
seu quarto. O que você vê?
OD: Eu vejo meu amiguinho Caio, debaixo de um pé de goiaba.
Dra. P: Tem alguma coisa que chama a sua atenção?
OD: Tem uma mão no ombro dele.
Dra. P: De quem é essa mão Odessa?[a menina não responde, mas é
possível ouvi-la grunhir e arfar] Odessa, de quem é essa mão?
OD: Dela… [a menina fala num sussurro] Do esqueleto…
Dra. P: E o que ela tá fazendo? Ela tá machucando o Caio?
OD: Não… Ela tá olhando pra mim… Ela tá sorrindo com a
gente.
Dra. P: E o que aconteceu depois disso? Você consegue se lembrar?
OD: E-ela…. Ela se vira pra olhar pra mim… Ela olha pra mim que tô
fora da foto… E-eu me assusto, dou um grito e jogo a foto no chão…
Dra.P: E então?
OD: Eu pego a foto do chão… Eu olho de novo, mas ela não tá
mais lá… E-eu entro em pânico, eu não sei o que tá acontecendo…
Dra. P: E você lembra de alguma outra coisa que aconteceu no seu quarto? [a
menina não responde] Odessa, o que aconteceu depois disso?
OD: [ela su
ssurra sua
resposta] E-E-Ela tá aqui. A-Arrgh! Aaaaa! [Odessa
começa a gritar e gemer alto enquanto parece se debater no divã, a julgar pelos
barulhos]
Dra. P: ODESSA! ODESSA, PRESTA ATENÇÃO NA MINHA VOZ! [A doutora grita
tentando superar os gritos da paciente] ODESSA!
OD: ELA VAI ME PEGAR! NÃO! NÃO! ME SOLTA, ME SOLTAAAA!.
Dra.P:[ a
doutora também grita e as vozes ficam sobrepostas e concomitantes] ODESSA! QUANDO EU CONTAR TRÊS, VOCÊ VAI DESPERTAR. UM! DOIS!
TRÊS! Odessa?! Você tá bem, querida?
[ouve-se o
choro da menina]
Dra.P: Shh-shh… Calma, tá tudo bem, respira… isso…. Toma aqui,
bebe um pouco de água. Eu vou ligar pra sua mãe vir te buscar, ok?!
-Fim da
gravação-
Mídia 3 –
(13/09/2010)
Dra. P: Na última consulta, eu tentei acessar as memórias de Odessa
através da hipnose, mas ela acabou entrando em um estado de choque, o que me
fez mudar de ideia sobre o desmame e nós voltamos à dose antiga para prevenir
qualquer piora da paciente. O que me chamou a atenção e acabou ficando fora da
minha documentação foi que Odessa visivelmente conseguiu se lembrar do que
havia ocorrido, mas não quis me contar. Eu esperava que a hipnose fosse
providenciar um relato que não fosse uma alucinação, mas não foi esse o caso. O
retorno dela hoje se dá numa consulta extraordinária que eu arranjei com a mãe
dela. [A gravação é pausada e retomada em outro momento]
Dra. P: Você está se sentindo melhor hoje?
OC: Muito melhor, doutora. Obrigada.
Dra. P: Que bom, querida. Eu queria me desculpar com você por ter causado
qualquer desconforto no decorrer da hipnose e depois dela. Você ficou muito
abalada. Eu sinto muito.
OC: Tudo bem, doutora. Na realidade foi bom o que a hipnose me
mostrou, eu pude entender o que realmente estava acontecendo.
Dra.P: E você se sente mais à vontade agora para me falar o que
descobriu? Eu vi que você tinha entendido alguma coisa, mas a julgar pelo seu
estado de estresse na hora, eu achei melhor não tentar te perguntar nada.
OC: Na verdade doutora, eu queria contar sobre outra coisa que
aconteceu comigo ontem, se você me permite.
Dra.P: Claro, querida. Me conte.
OC: Eu tava no meu quarto, ontem à noite, chorando alto e
incomodando os vizinhos. Sendo uma menina mimada. Eu tava com muito medo,
eu acho… até tinha deixado as janelas e a porta trancadas, mas eu fui inocente
de achar que isso iria detê-la [risos].
Dra.P: “Detê-la”? O esqueleto?
OC: Sim, não me interrompa! Enfim, eu estava debaixo das cobertas
quando ela entrou pela janela quebrando as esquadrias e os vidros. Eu gritei e
saí correndo. Desci as escadas, mas eu não sabia o que fazer, minha mãe não tava
em casa, então eu me escondi dentro do armário de bebidas da sala. Fiquei um
bom tempo lá, olhando pelos buraquinhos do trançado de madeira da porta. Eu não
conseguia ouvir nenhum barulho lá em cima, também não conseguia ver nada
estranho pelos buracos, então eu achei seguro sair. Mas eu não percebi que ela
também me olhava pelo buraquinho do lado de fora [risos]. Quando eu abri
a porta do armário, ela tava lá. Me agarrou pelo pescoço e me suspendeu
no ar… ela disse “agora sua inocência não te protege mais de mim, sua menina
suja” e me jogou no chão. A mão dela soltou a cabeça que caiu no chão junto com
o seu esqueleto sem vida. Então a cabeça quicou até mim… coc, coc, coc…
e abocanhou o meu pescoço, quebrando a minha coluna e me separando do meu
corpo. Aí o crânio dela começou a devorar o meu corpo na minha frente pra eu
assistir, comendo todas as carnes só deixando os ossos. Quando ela terminou seu
banquete, meu esqueleto se recompôs, se pôs de pé e levantou a cabeça dela
pelos cabelos. Meu corpo a servia agora, e eu ainda conseguia sentir ele se
mexendo contra a minha vontade. Ela me pegou. Ela venceu, ela me comeu.
Dra.P: É por isso que você está usando esse véu preto? Você se sente
vencida pelo seu medo?
OD: Eu sempre uso véu preto, doutora. E por conta dessa sua
malcriação de dizer que eu não existo, vou te levar comigo também. [risos]
Dra.P: Do que você está falando, Odessa?!
OD: [o
áudio fica distorcido e cheio de chiado] A Odessa
não tá aqui! [risos]
[Podem ser
ouvidos gritos da doutora por cima do áudio distorcido. Não é possível
descrever os sons gravados, nem tampouco deduzir o que se passa.
Aproximadamente um minuto e meio depois os sons cessam. Os vinte minutos
seguintes registram absoluto silêncio e a gravação se encerra por falta de
memória no celular]
(Vinícius) Desidério
de Moraes nasceu em novembro de 1997 nos arredores da capital federal e
sempre contou com influência artística e cultural dos seus pais, que durante
toda a infância e parte de sua adolescência foram professores. Quando atingiu
os 15 anos de idade, Desidério começou a enfrentar problemas relativos à sua
saúde mental. Sem qualquer diagnóstico preciso, mas recebendo prescrições medicamentosas
cada vez mais agressivas, o jovem rapaz encontrou na poesia e na prosa uma
forma de processar seus tormentos psicológicos. Hoje, com vinte anos, a batalha
contra a depressão e o pânico ainda não chegou ao fim, mas gerou frutos
literários como o conto apresentado nesse concurso e uma zine independente de
poesia ilustrada que começa a circular nos becos da Capital e suas cidades
satélites nesse ano de 2018.
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