LATIDOS NO TERRAÇO - Conto de Terror - Fernando J. Nogueira
LATIDOS
NO TERRAÇO
(Fernando J. Nogueira - 4º Lugar no
Concurso Bran Stoker de Contos de Terror)
A brisa noturna
esfriava seu ânimo e o café que em suas mãos fumegava em brumas entorpecentes.
O encontro havia sido marcado para as dez da noite, mas os indícios eram de que
sua companhia não daria as caras tão cedo. O dedo inquieto buscava a tela do
celular a todo instante em busca de alguma novidade que o libertasse da
aflitiva inércia da qual se via refém. Nada. Seu orgulho sangrava ao imaginar
que havia investido tanta expectativa naquele jovem par de olhos castanhos,
enquanto poderia estar em tantos outros lugares num sábado à noite. A atendente
no balcão já retirava o avental e o fitava com ares de impaciência. Certamente
ansiava por fechar o estabelecimento e o que a separava de sua liberdade era
tão somente aquele fardo patético sentado em uma das mesas, admirando o nada e
roçando a pequena xícara entre seus dedos. Há horas.
Por volta da meia-noite
o prazo estipulado por sua paciência findou-se. Os passos tentaram conduzi-lo
de volta ao carro, mas a cafeína em suas veias gritava por uma caminhada. A
cidade dormia um sono encolhido, embalada pelo frio dos ventos de julho,
deixando para as ruas o silêncio das vozes e os ecos da vigília. As poucas
luzes do interior proporcionavam ao céu um impecável espetáculo polvilhado de
constelações. O espelho de Deus.
Vitório lamenta que o
passeio solitário tome a vez dos lábios quentes nos quais esperava se
embrenhar, mas sua mente precisa do ambiente para suas tagarelices. A vida de
solteiro cobrava um preço alto pelas noitadas perdidas diante da televisão. Um
chamamento interior que converte preguiça em excitação e fomenta a vida noturna
das grandes cidades.
Sua cidade nem de longe
lembrava uma grande metrópole, ao contrário. Itubiara era um lugar de gente
velha, de bem com a vida e com as rotinas. Refúgio para os mansos e masmorra
para os jovens. O asfalto untava algumas poucas ruas próximas à igreja e a
maioria das construções ainda trazia a assinatura dos primeiros colonos. Beleza
carcomida que atraía os olhos e as carteiras do turismo durante os festivais.
Um dos casarões,
certamente o mais famoso, era o da família Levedo de Albuquerque, fina casta
burguesa que migrara do Sul e fundara a primeira fábrica da cidade quando tudo
ali não passava de uma lamacenta rota para os romeiros. A antiga estrutura se
manteve lá, frequentada por gerações de filhos e netos, Levedos do Norte e
Albuquerques do Sul, até que um dia o velho patriarca, Gumercindo, acometido de
uma doença chamada senilidade, despediu-se do mundo.
Foi-se o homem, ficou a
lenda.
Conta-se, desde então,
que Gumercindo esteve só nos últimos anos de sua vida. Gênio difícil. Sua única
companhia era um dogue alemão negro que aparecera em sua casa. Cão de porte
impressionante, mesmo para os padrões agigantados da raça, sisudo e zeloso como
uma sentinela draconiana. Olhos rubros e comportamento sereno, típicos de um
ser nascido para o caos.
Seus latidos eram
trombetas infernais que soavam diariamente quando o relógio na torre da fábrica
de condimentos marcava o horário das 15 horas, e o sinal da troca de turno era
acionado. Sincronia condicionada pela rotina.
Segundo consta, era
justamente neste momento que o velho Gumercindo se levantava de seu escritório
e alimentava o enlouquecido animal que salivava, esfomeado, em sua janela.
Conforme os relatos, a
morte do patriarca movimentou a pequena cidade com a chegada dos familiares e
as homenagens que vinham de diversos lugares. Um verdadeiro cortejo de
sanguessugas que se acotovelavam em busca de uma nesga da fortuna deixada pelo
homem. Como nuvens de gafanhotos, deixaram para trás o vazio, levando consigo
quadros, mobília e quase tudo do antigo casarão.
Quase tudo...
Os poucos remanescentes
de tal época descrevem que o monstruoso cão de Gumercindo, o dogue alemão
negro, foi abandonado e deixado para morrer, confinado no terraço da
residência. Os latidos do animal eram ouvidos diariamente por quadras de
distância, sempre que o alarme da fábrica apitava o sinal das 15 horas. Com o
tempo foi ficando mais fraco, mais fraco, até que um dia se calou. Contudo, há
quem jure poder ouvi-lo ainda hoje, em noites em que nem os grilos cricrilam nem
as corujas crocitam, ressoando pelos quarteirões exatamente no momento em que o
velho relógio da fábrica aponta para as três da madrugada.
Vitório nunca se abalou
com tais crendices, nem deu asas ao imaginário que pulula nas rodas de conversa
de cidade interiorana. Até que, naquela noite, avistou luzes acesas no antigo
casarão. Estacou diante da janela que ficava no alto da residência, intrigado
com a possibilidade de alguém estar habitando um espaço que há tanto tempo
esteve entregue ao abandono. O mato havia crescido e tomava as laterais da casa
como um emaranhado de trepadeiras que subiam pelas paredes e se retorciam pelo
telhado, já condenado pelo tempo e pela umidade. Os portões permaneciam
lacrados e não havia sinal de que alguém pudesse ter entrado ali. Ao menos, não
de forma consentida.
Aproximou-se mais.
Sentiu um estranho calafrio escalando suas costas e encontrando os cabelos
eriçados na nuca. Percebeu que a parca luz vinha de um único cômodo, exatamente
onde antes ficava o escritório do velho Gumercindo. Levou as mãos até as grades
do portão e sentiu o gelo do aço espalhar-se por suas falanges. Não havia
planejado terminar ali sua caminhada, mas agora queria dar sentido aos fatos e
encontrar respostas para uma luz estar brilhando onde sequer deveria haver
energia elétrica. Avançou um dos pés para um apoio em meio às ranhuras do
portão e preparou-se para tomar impulso. Foi quando ouviu com nitidez mórbida,
tal como o roçar das cordas soltas de um contrabaixo, o urro feroz avançando em
sua direção. Um espectro demoníaco imerso nas sombras se jogou contra seu corpo
suspenso, arremessando-o de costas na sarjeta. Algo insólito, impossível de se
descrever.
Vitório se pôs de pé
num sobressalto e sem olhar para trás correu em disparada na velocidade que suas
pernas trêmulas eram capazes de empreender. Sumiu pela estrada por onde veio
até estar de volta à segurança de seu carro.
Os lençóis e a colcha
de lã trançada agora acolhiam um sono há muito adiado. O calor, aos poucos, se
espalhava de volta por seus membros e uma sensação de ventre materno o conduzia
para o mundo além da matéria. Inspirava com a profundidade de quem transita
pelas fronteiras da inconsciência e apertava o rosto contra o aconchegante
travesseiro de penas de ganso. Talvez, pelo torpor que se imantava aos seus
sentidos, percebeu com lentidão rastejante os sons que vinham até sua janela.
Sons que ganhavam tônus na medida em que seus olhos se abriam de volta para o
mundo. Sons de um timbre animalesco e insofreável. Pulou da cama com o peito
rufando quando percebeu que se tratava de latidos. Diferentes. Aterradores.
Rugidos de um leão descontrolado.
Trôpego, tateou o
escuro até alcançar o interruptor. Teve medo de espiar pelo vidro e enfrentar o
chamado sobrenatural que vinha da rua. Sentou-se de volta na cama, balbuciando
para si mesmo:
— Não é possível. Não é
possível. É só uma história. História de gente velha e que não tem o que fazer.
As paredes pareciam se
fechar, comprimindo seus pulmões. A velha asma, companheira de infância,
retomava o controle de seu raciocínio e ditava o ritmo de sua respiração. Um
medo irracional se agigantava em seu íntimo e a voz do pesadelo seguia em seu
brado intermitente. Cada vez mais alto. Cada vez mais próximo.
Foi expulso de seu
transe macabro quando, subitamente, o celular vibra em seu criado-mudo. Estende
o braço até o móvel e olha atônito para a tela do aparelho. Incrédulo, seu
semblante parece realinhar parcialmente a calma enquanto caminha até a janela e
finalmente ousa espiar entre as frestas da cortina. Não podia crer no que via.
Uma onda efervescente assumiu o comando de suas reações e sorriu quando
avistou, parada diante de seu portão, a dona do belo par de olhos castanhos. A
mesma que horas atrás o deixara plantado e esperando por um encontro que nunca
aconteceu.
Vestiu-se como pôde e
desceu as escadas, lutando ainda por familiarizar-se com aquele estranho
acontecimento. Correu para a sala e abriu a espessa porta de madeira no mesmo
instante em que o inverno trouxe até seu pescoço muito mais do que uma rajada
de frio.
Um vulto agarra-o pelas
roupas e o arrasta para dentro da névoa que envolvia os arredores. Sequer teve
tempo para gritar.
Nenhum rastro jamais
foi encontrado de seu paradeiro. O único vestígio que ficou para trás, uma
mensagem no celular, ainda hoje faz-se enredo para muitas prosas em rodas de
bar em Itubiara. Nela dizia:
“ Vai me deixar aqui sozinha e
com fome no frio? ” 03:00 a.m.
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