LOBO - Conto de Terror - Winter Bastos Guedes Júnior
LOBO
(Winter Bastos Guedes Júnior - 10º Lugar
no Concurso Bran Stoker de Contos de Terror)
Angélica
entreabriu a porta e falou ainda pela fresta:
—
Adivinha o que eu descobri.
Marcílio
estremeceu: “O que será que ela ficou sabendo?”. Disfarçou a apreensão, mas
permaneceu sentado no sofá da sala, olhando para a namorada, calado.
—
Adivinha! — ela repetiu.
Era
sempre difícil a ele identificar as intenções de Angélica, cujas expressões
nunca tinham muita variação: quando brincava ou falava sério a fisionomia não mudava
muito.
—
Sei lá — respondeu Marcílio a custo.
—
Olha! — disse ela, escancarando a porta.
Marcílio
conteve um grito e ficou em pé no sofá. Que seria aquilo? Um vulto escuro
adentrara a sala, feito um raio negro, farejando e circundando os móveis, ágil
e desenvolto como em seu habitat natural.
—
Que é isso, Angélica?! Tem um lobo dentro de casa!
Ela
deu sua estranha risada monocórdica e esclareceu que — é claro — aquele não era
um lobo (mas que ideia!), e sim um cachorro que encontrara no Parque São Francisco.
A
referência ao parque o fez se lembrar de Rodolfo, o antigo amigo, de quem nunca
falava.
*
Conhecera-o
na escola militar. Todos achavam que ele não servia para a carreira. “Onde já
se viu milico fresco?”, chegaram a dizer um dia. Marcílio também ria dessas
zombarias, mas apenas para não ser mal considerado pelos colegas. Os trejeitos
delicados de Rodolfo na verdade não o faziam repulsivo. Era até admirável,
sempre muito asseado, cortês, estudioso, tendo, inclusive, as melhores notas da
turma. Só não ia bem nas atividades físicas ou de tiro e, com isso, todos riam
ainda mais. Davam-lhe ruidosos tapas na nuca quando os professores não estavam
olhando.
Um
dia, tendo se desentendido com Angélica, Marcílio ficou vagando pelo parque São
Francisco. Encontrou Rodolfo sentado junto a uma figueira, chorando. “Que
houve, cara?”
Ele
só chorava. Os dois se abraçaram — algo impensável no colégio. Seguiram até o
fundo da floresta aonde sabiam que ninguém iria, pois se dizia que matilhas de
lobos rondavam a região.
“Marcílio,
você é bom comigo”.
*
—
Seja bom com o Lobo, querido.
—
Viu? Até você admite que é um lobo.
—
Não seja bobo — ela sorriu. — Lobo é só o nome que escolhi pra ele.
*
Num
dos passeios com Rodolfo, ele se enterneceu a tal ponto com as queixas do
amigo... sempre tão ridicularizado pelos colegas, que lhe davam rasteiras e
empurrões. Fora as agressões do pai que o obrigava a se manter no colégio
militar “para virar homem”. Quando viu no colega um hematoma no antebraço,
causado por uma surra em casa, Marcílio lhe deu um beijo sobre o arroxeado da
pele. Ele o fez num reflexo, como quando via algum machucado na namorada. “O
que?!”, fez Rodolfo com olhos lacrimosos. Olhos logo beijados naquela noite
inusitada.
*
—
Tá bom, tá bom, Angélica. Põe esse lo... cachorro lá pra fora, pelo amor de
Deus.
—
Deixa Deus fora disso. E você não devia tratar o Lobo assim: ele amou você.
*
Os
dois amigos mal se falavam ao longo do dia. Rodolfo aguentava sozinho os
deboches dos outros alunos. Marcílio fingia não ver os sofrimentos do colega,
mas ao final da tarde lá estava com ele na floresta atrás do Parque São
Francisco, a não ser quando marcava encontro com a namorada.
Um
dia os estudantes resolveram ir juntos a um prostíbulo no fim da aula. Todos
zombaram de Rodolfo por ele não acompanhá-los. Marcílio também riu. Sentindo-se
na obrigação de seguir os outros, desmarcou o encontro com Angélica, dizendo
que iria jogar bola com o pessoal do colégio.
Mais
tarde, naquela noite, resolveu passar na casa da namorada rapidamente. Foi
sentimento de culpa? Intuição de algo? O fato é que, quando Angélica abriu a
porta, ele levou um choque: bem sentado no sofá da sala estava Rodolfo.
*
Lobo
foi para o quintal. Angélica seguiu-o, depois voltou sorridente, falando para
si: “Tadinho. Ele está com fome”. Então veio da cozinha com um saco de bifes.
—
Você vai dar toda essa carne...?
—
Fica quieto, Marcílio. Você é cruel.
*
No
dia seguinte à ida ao prostíbulo, Marcílio disse — secamente — para Rodolfo:
“Mais tarde vamos ter uma conversa séria”.
Ao
fim do dia chegou à beirada do despenhadeiro onde costumavam olhar o pôr do sol
e lá encontrou o colega, chorando. Teve uma raiva súbita, ódio mesmo, ódio
daquela fragilidade, daquele eterno choramingar. Mais cedo a turma havia
caçoado a valer de Rodolfo, sem que ele reagisse. Jogaram-no ao chão e
encheram-no de cusparadas.
“O
que é que você foi fazer na casa da minha namorada?”
“Te
procurar, Marcílio.”
“Você
sabia onde eu tinha ido.”
“Sabia,
sim. Você não devia fazer isso com a Angélica. Ela não merece suas traições.”
Uma
cólera repentina tomou-lhe, ao ouvir aquela repreensão. “Maldito!”, gritou
irado, dando um chute nas costas de Rodolfo, jogando-o pelo despenhadeiro
abaixo. Do alto da colina, olhou-o caído, tentado em vão se levantar (talvez
quebrara uma perna). Quase se arrependeu do que fizera, mas logo em seguida
murmurou para si: “Que vá pro inferno esse Rodolfo”. E foi embora pisando duro.
*
Angélica
jogava os pedaços de carne, sangrentos. Alcançando-os ainda no ar, Lobo rosnava
de olhos faiscantes. Mesmo do basculante acima da pia da cozinha, podia-se ver
o brilho daqueles olhos ferozes — e Marcílio se apavorava com isso. Dali,
chamou Angélica para que viessem logo dormir e ela, como hipnotizada, demorou a
ouvi-lo.
*
A
aula de Estatística foi interrompida pelo tenente diretor, que deu o recado
sinistro: ao que tudo indicava, Rodolfo — que estava desaparecido havia dois
dias — tinha sido devorado por lobos.
“Ele
deve ter até gostado”, cochichou um dos alunos tentando fazer piada. Ninguém
riu.
Farrapos
do fardamento dum estudante haviam sido encontrados manchados de sangue.
*
Apesar
de Angélica ter adormecido logo, Marcílio ficou perambulando pela casa. Escutou
ruídos à porta da sala. Algo arranhava ali. Quando se aproximou mais, ouviu um
rosnado. Sem pensar, foi até a despensa e, subindo num banquinho, pegou o
revólver no topo da estante. Ao voltar até a sala, nada mais ouviu. Pôs a arma
em cima da cristaleira. Voltou ao quarto, onde o silêncio — agora absoluto —
ajudou-o a conciliar o sono.
*
Assim
que conseguira o engajamento na carreira militar, Marcílio foi morar com
Angélica. Sentia como se o fantasma de Rodolfo rondasse a casa, pois, quando
voltara do prostíbulo, fora ali mesmo naquela sala que o encontrara sentado no
sofá. Não tinha como saber se algo fora contado à namorada, pois perguntar
poderia levantar suspeitas. O que Angélica e Rodolfo teriam conversado? Quanto
ela chorara ao saber da tragédia, mesmo mal conhecendo Rodolfo! Porém, depois,
nunca mais tocara em seu nome. Marcílio também não. Jamais. Talvez justamente
por isso tinha a estranha sensação de que o colega voltaria a qualquer momento.
Pior que isso: o morto era um ausente que, de certa forma, já residia na casa
em tempo integral. Presente em cada silêncio, em cada assunto contornado.
*
Um
cheiro de enxofre parecia ter tomado todo o quarto. Ele se levantou da cama
para descobrir de onde vinha aquele odor. Abriu a porta e sentiu que a sala
também recendia a enxofre, como talvez a casa inteira. Pensou em voltar e
acordar Angélica, mas estacou ao ouvir um ruído vindo de trás do sofá.
Vagarosamente aproximou-se da cristaleira e esticou o braço para alcançar o
revólver, que havia deixado ali. Ainda antes de tocar a arma, ouviu um rosnado
— Lobo, como um monstro demoníaco, saltou em sua direção. Marcílio
instintivamente defendeu o rosto com o braço, logo abocanhado pela fera. Já
banhado no próprio sangue, conseguiu mesmo assim desferir três tiros no
monstro, que caiu a dois passos de distância.
Angélica
apareceu na sala.
—
Vamos fugir pro porão!
—
Não precisa, eu já atirei no...
—
Vem comigo agora!
Lobo
já estava de novo erguido, com olhar furioso.
Antes
de entrarem no porão, Marcílio acertou mais um disparo, desta vez abrindo um
buraco entre os olhos brilhantes da fera, sem que isso a derrubasse.
Trancando
a porta, isolaram-se do monstro e puderam enfim conversar:
—
Como é que esse bicho não morre?!
—
É um lobisomem, Marcílio.
Os
dois ficaram calados. Por mais absurdo que parecesse, não havia outra
explicação.
—
Mas, Angélica, isso não existe.
—
Existe, sim. Aqui sempre houve lobisomem, lá na floresta atrás do Parque São
Francisco onde você e Rodolfo se encontravam escondido.
—
Como é que você sabe disso? — deixou escapar.
Sem
responder, ela continuou a falar de lobisomens:
—
Quando atacam alguém e a pessoa sobrevive, se torna um deles.
—
Perguntei quem é que disse que eu me encontrava com Rodolfo? Foi ele mesmo,
naquele dia em que veio aqui, né? Não sei o que aquele maricas inventou, nunca
tive intimidades com ele: você me conhece.
—
Só hoje eu soube de tudo, não naquela noite. Achei ainda que te conhecia, mas a
minha vingança é que você também não me conhece.
Então
Angélica abriu a porta para o monstro e gritou com olhos flamejantes:
—
Pega ele, Rodolfo!!!
Winter Bastos
Guedes Júnior
é o autor do livro de crítica literária “Malandragem, Revolta e Anarquia: João
Antônio, Antônio Fraga e Lima Barreto” (Editora Achiamé, 2005). Em 2011, foi
contemplado com menção honrosa no IX Conc. Municipal de Conto — Prêmio Pref. de
Niterói, com “O Anão”, posteriormente publicado. Alcançou menção honrosa no 7º
Prêmio UFF de Literatura, em 2013, com a obra “(Des)encontro”, incluída em
antologia. Obteve 1º lugar no II Festival de Contos e Poesias do CLARON (Centro
Literário e Artístico da Região Oceânica de Niterói), com o conto "Não
Sairá no Jornal", em outubro de 2016. Já em outubro de 2017, recebeu 2º
lugar com o conto “A prova”, no III Festival do CLARON.
Por favor, Cláudia Barros, comente novamente. O seu comentário, por um lamentável erro, foi excluído involuntariamente. Desde já, agradeço.
ResponderExcluirDe toda forma, deixo o que Cláudia escreveu:
'Eletrizante com final inesperado, gostei muito."
Gostaria de dizer que eu também gostei muito.
Peço desulpas.
Por favor, pede pro Winter entrar em contato comigo. Sou irmão dele e tem uns 10 anos que a gente não se fala. Meu nome é Eric Campos Bastos Guedes
ExcluirRecaddo encaminhado a Winter, Eric.
ExcluirExcelente, Winter! Parabéns!
ResponderExcluir