MANU - Conto de Terror - Valentina Silva Ferreira
(Valentina Silva Ferreira - 3º
Lugar no Concurso Bram Stoker de Contos de Terror)
Corto-lhe os cabelos
louros, por fim. Chega, não é mais o anjo de ninguém. As madeixas douradas caem
no chão, uma atrás da outra. Ele chora, não pela perda mas pelo medo que o
consome. Consigo cheirar. É incrivelmente pesado. E doce. Sabe a ferro.
Afasto-me para poder mirá-lo de uma perspectiva mais ampla. Está patético.
Finalmente.
— Estás idêntico a mim — digo-lhe.
A verdade
aperta-me. Eu sou assim, daquele jeito. Feio, estúpido e cobarde.
Ele força as
cordas que o prendem à cadeira. A luz é muito fraca e poeirenta. Consigo ouvir
os ratos movimentarem-se pelo espaço mas não os vejo. Melhor assim. Um cheiro
forte a urina rodeia-me. Dou uma gargalhada. O pobre descuidou-se.
— Por favor, deixa-me ir embora —
pede-me, numa voz praticamente sumida.
Eu olho uma vez
mais para ele. Perdeu a postura de atleta e o sorriso conquistador. Está
curvado sobre os joelhos e, no rosto, uma expressão medonha de desconfiança.
Não vejo os olhos verdes. Estão perdidos na vermelhidão provocada pelo choro. O
olho esquerdo está inchado mas não tanto quanto a minha mão. Deveria ter
treinado o soco.
— Ainda não está na hora — respondo,
por fim.
E quando será a
hora? Não sei. Sinceramente, não sei.
— Manu… — sussurra.
Ele diz o meu
nome quando sabe que eu não gosto dele. Manu. Que nome ridículo. Nome de quem
foi feito à pressa, sem qualquer emoção. O dele é Miguel. Como o anjo.
— Cala-te! — grito.
Estou cansado.
Estamos nisto há demasiado tempo e preciso dormir. Vou até ele e, com todas as
minhas forças, arrasto-o pela cadeira. Ele ajuda. Sabe que o vou encostar à
parede para poder dormir.
— Dorme. Amanhã continuamos — ordeno.
Mas continuamos
o quê? Nem eu próprio sei.
Recolho-me no
canto mais afastado dele. Não quero ouvir os gemidos de dor nem o choro de
aflição. Encontro a melhor posição e fecho os olhos. A lembrança de um certo
dia assola-me. Afasto-a com as mãos, como se enxotasse moscas fartas do calor.
É inútil. A recordação martela-me. O nosso primeiro dia de aulas. Chegámos
juntos. Fomos apresentados à classe. Encostados à ardósia, ele confiante e eu
encolhido como um cão ferido.
— Este menino de olhos verdes é o
Miguel. Digam olá ao Miguel — pediu a professora, uma quarentona solteira,
demasiado bonita para ainda não ser comprometida.
— Olá — um olá alegre, como se
tivessem treinado a semana toda para cumprimentar o Miguel. As meninas
cochichavam entre si. Já tinham sido apanhadas pela sua beleza. E os rapazes
combinavam a maneira de o levar para a equipa de futebol.
— Bom dia, turma — respondeu o
Miguel.
A sua segurança
abateu-me e senti-me mais perdido que nunca.
— E este é o Manu — disse a
professora.
Não foi este
menino de olhos cinzentos é o Manu. Não. Foi apenas este é o Manu.
Compreendi até certo ponto que uns olhos opacos não têm qualquer destaque. Não
era essa a questão. O problema é que eu acabava de ser posto de parte, como se
uns olhos verdes valessem o dobro de uns cinzentos.
— Olá — responderam. Sem afinação,
sem entusiasmo. Um olá seco. As meninas não trocaram confidências, apenas
olhares cúmplices de pena. Os rapazes nem repararam em mim.
— Olá — soltei, demasiado baixo.
Creio que ninguém ouviu.
A professora
colocou-nos lado a lado, nas carteiras do meio. Mais um triunfo para a minha
humilhação. Nós os dois, ali, eminentes. A beleza dele espancando a minha. A
inteligência dele abafando a minha. Aos poucos, ele tornou-se o favorito, o
popular da escola. Eu fui sendo levado para o canto oposto. Não era odiado nem
sofria represálias. Nem isso merecia. Era simplesmente ignorado.
Abro os olhos.
Sinto a fúria
esmagar-me por dentro. Ele nunca nada fizera para eu seguir a seu lado.
Descriminava-me como os outros, enquanto eu o idolatrava. Queria toda a sua
vida para mim nem que fosse apenas por um dia. Queria sentir o que é ser
adorado, invejado, acarinhado. Cerro os dentes e coço-me. Estou magoado por
dentro de uma forma que ninguém pode imaginar. Esfrego-me na parede para
suportar os ardores da minha alma. São as feridas invisíveis que começam a
cicatrizar, provocando aquela sensação de comichão. E quanto mais eu coço, mais
dor provoco. Feito um bicho sarnento, deslizo pela parede como um louco. Os
cascos das feridas levantam. Começam a mostrar a carne putrificada. Cheira mal,
cheira a podre. Ou, se calhar, é a minha loucura que me engana. A culpa é toda
dele. Dou um grito capaz de rasgar a noite até ao fim da galáxia.
Ele acorda e
geme. Está com medo, novamente. Eu levanto-me. Tenho as roupas rasgadas e as
costas desfeitas, numa mistura de arranhões e tinta da parede. Caminho até ele,
completamente desperto. Dou mais um grito, desta vez de guerra, e acerto-lhe
com o pé na boca. O som de dentes partidos fura-me os ouvidos. Isso provoca-me
náuseas. Que ruído horrível. E depois, o cheiro a sangue, o gotejar no chão, um
pling-pling horrendo, a união de sangue fresco com terra batida, o choro de uma
criança sem dentes, o meu choro, os ratos que correm para os nossos pés em
busca de comida, os nossos gritos. E depois, o meu desespero em desaparecer.
Corro pelo quarto à procura de um cansaço que me mate. Ele continua a chorar, a
cuspir dentes, saliva e sangue e eu corro. Finalmente caio. Fecho os olhos com
um esgar sinistro e adormeço. Mas nem assim apago. Ele continua na minha
cabeça, povoando os meus sonhos. Ele, no ar, erguido pelos colegas de equipa,
depois da vitória do interescolas. As raparigas pavoneando-se, tentando ser as
escolhidas do seu coração. Os pais brindando-o com um sorriso de puro orgulho.
O treinador inchado de satisfação. E eu, na bancada, sorvendo toda aquela
solenidade heroica, sendo posto de parte, cada vez mais longe dele.
Acordo. As luzes
que entram pelos buracos das paredes atingem-me como flashes. Estou habituado a
viver na sombra. Alcanço-o com o meu olhar. Está dobrado para a frente. Um fio
de sangue escuro escorrega até ao chão, juntando-se à enorme poça que rodeia a
cadeira. Os dentes estão espalhados. Um amor quase paternal alcança-me e
odeio-me pelo que lhe fiz. Aproximo-me dele e levanto o seu rosto. Está inchado
e desfigurado. Ainda assim, não deixa de ser bonito. Limpo os cantos da sua
boca com a manga da minha camisola encardida. Ele acorda. Primeiro, um olhar
sonolento, como se estivesse acordando de um pesadelo e precisa de ajustar-se à
realidade. Depois, o confronto com a verdade; a transformação do seu olhar numa
espécie de pedido de socorro.
— Desculpa — digo-lhe e estou a ser
sincero. Não queria magoá-lo mas era necessário.
— Porque o fizeste? — pergunta-me
após várias tentativas falhadas. A falta de dentes dificulta-lhe a fala.
— Não sei… — escondo-me no canto mais
escuro e inspiro sofregamente um ar que carrega tudo menos esperança.
— Lembras-te, no verão passado,
quando fomos a casa da avó e descobrimos a casa abandonada? — Miguel olha para
mim. Um reflexo de saudade viaja pelos seus olhos.
— Lembro…
Todos os verões
passamos uma semana em casa da nossa avó. Era a altura do ano em que estávamos
mais próximos um do outro. Sem crianças que o distraíssem, eu era o único com
quem ele podia brincar. Era realmente espetacular.
— Como eu queria estar lá agora —
sussurra.
— Eu também.
Permanecemos em
silêncio durante um bom tempo, até os ossos doerem da posição em que me
encontro. Sinto fome mas não há nada para comer. Estou aborrecido, porém não
posso sair daqui. Não há volta a dar.
— Que vais dizer aos pais? — um
anúncio da sua morte sai da boca.
Ele quer saber o
que vou dizer aos pais depois de morrer. O que ele não sabe é que não pretendo
continuar a viver também.
— Nada — digo, simplesmente.
— Eles hão de condenar-te para
sempre.
— Claro, és o favorito, não és? —
replico, odiando ter de dar o braço a torcer em relação ao favoritismo dos
pais.
— Não sabes o que dizes. Não sabes…
A repulsa cresce
dentro de mim. Mais uma vez, ele revela-se melhor pessoa que eu.
— Não sabes como é ser o pior em tudo
— jogo-lhe.
— Não és o pior. Ninguém te julga.
Vens comigo para todo o lado. És o meu melhor amigo — diz-me o menino perfeito.
A comichão
regressa, mais aguda e pior de coçar. Rapo-me na parede, com discrição. Ele
continua o seu raciocínio sobre autoestima, como se fosse um famoso psiquiatra
a falar para uma plateia. Coço-me com mais força, a necessidade de alívio cada
vez mais distante, o seu monólogo a deteriorar-me sem piedade.
— Cala-te — peço, quase mendigando.
Mas ele não obedece. Continua com a sua moralidade. — Cala-te! — repito, mais
alto, assustando os ratos saciados de sangue.
Ele deixa de
falar.
— Vão odiar-te por isto — diz, por
fim, assinando a sua sentença.
Aproximo-me com
passos lentos, mostrando a minha máscara de boneco diabólico. Ele percebe que é
o final da linha e, como o condenado que é, implora. Um último desejo, uns
últimos murmúrios, os por favores a sair com pressa da boca ensanguentada.
Não, não há
desculpa. Não nascesses o melhor, não fosses o preferido e nada disto seria
real. Poderias ter dividido os teus triunfos comigo. Eu só queria um pouco da
tua beleza, do teu talento, da tua inteligência. Um pouco da tua humanidade.
Não tive nada.
Ele chora.
Estou mesmo
perto dele. Deito-o no chão, amarrado à cadeira. Balanço o pé, encarando-o
intensamente. Ela pestaneja e implora-me com as duas bolas verdes molhadas. Eu
abrando os movimentos e detenho-me no seu rosto manchado pelo medo. Um medo que
eu causei.
Eu, boneco de
borracha, tatuado Manu em plástico negro no peito, levo o braço à boca
e, com a ajuda dos dentes, arranco a minha carne. Nem sangue, nem nada escorre
de mim. Sou um completo vazio por dentro. Gemo de dor. Miguel abre a boca e diz
qualquer coisa que não entendo. Caio aos pés dele e luto contra a falta de ar.
Por fim, respirando dolorosamente, deixo uma luz branca cegar os meus olhos de
botão.
Dia
27 de Outubro de 2186 – Diário da Manhã.
O
Governo Nacional acaba de encerrar as portas da empresa Toys n’ Killers. Após
denúncia de várias famílias e com as declarações feitas pelo Ministro da Saúde,
que garantiu o aumento de depressões e suicídios infantis, o boneco
Manu-suicida deixará, portanto, de ser fabricado. Relembre-se que esse boneco
foi programado para cometer suicídio diante da criança que o comprar. Clark
Mendes, diretor da empresa, ainda não se pronunciou sobre o assunto.
Valentina Silva Ferreira nasceu no Funchal, perto do Natal de 1988. Licenciada em Direito
e mestre em Ciências Jurídico-Criminais, com formação profissional em
Maus-tratos Infantis. Autora de Distúrbio (Ed.
Estronho, 2011), A Morte é uma Serial Killer (Ed. Estronho, 2012) e Os
Loucos também dançam (Flybooks Editora, 2017). Coautora em
mais de vinte antologias portuguesas e brasileiras. Organizadora da coletânea
Insonho - Durma bem! (Ed. Estronho, 2015). Vencedora de prêmios literários
nacionais e internacionais. Tem o conto Mena, ou tantos outros (Ed. Illuminare, 2015) traduzido e editado na
Argentina. Dinamizadora do Projeto Escrita Fantástica, desde 2013, e de
Workshops de Escrita Criativa. Feminista e vegan.
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