SENTIMENTO DE MÃE - Conto de Terror - Sonia Regina Rocha Rodrigues
SENTIMENTO
DE MÃE
(Sonia
Regina Rocha Rodrigues - 16º Lugar no Concurso Bram Stoker de Contos de Terror)
Acendeu-se
a luz.
O
esqueleto destacou-se, nítido em cada detalhe de cada branco osso. Os dez
cadáveres sobre as mesas espalhadas pelo recinto exalavam seu característico
cheiro de decomposição apenas disfarçado pelo formol.
O relógio
da parede em frente indicava meia-noite.
No
prédio às escuras até um segundo antes não se supunha haver nenhuma outra alma
viva além do estudante.
Este
girara a maçaneta devagar, empurrara com lentidão a porta, levara um tempo
demasiado longo para insinuar-se no laboratório, evitando que os sapatos
rangessem, que as dobradiças estalassem, tudo fizera para entrar anônimo e sair
com rapidez do sinistro local onde por nenhum motivo plausível se suporia uma
presença humana naquele horário.
O
rapaz pulou, emitindo um som baixo e esganiçado. Os olhos arregalaram-se no
rosto magro que parecia há muito ausente da luz do sol. Com um escrúpulo de
quem carrega relíquias sagradas, o jovem arreou a mochila. Um bafo quente
sussurrou baixo em sua nuca:
—Ah, aí está
você, seu ladrãozinho de ossos.
O
coração do moço, que quase parara, recomeçou a bater. Com um suspiro, ele
afastou as sombras de sua mente:
— Dionísio!
Que susto!
Fortes
mãos agarraram seus ombros e o chacoalharam. O rapaz tornou a abrir a boca. O
movimento mudo de seus lábios foi eloquente como um grito. Em seguida, ele
desmaiou.
— Esta agora!
Vá a gente entender…
Dionísio
acomodou o corpo inconsciente rente à parede e tratou de abrir a mochila, de
onde foi retirando pedaços de crânios humanos. Em seguida ele recolocou cada
peça na respectiva gaveta.
O
técnico Dionísio trabalhava há trinta anos na Faculdade de Medicina. Menos por
força da profissão que pelo temperamento casmurro, isolara-se em uma rotina de
celibatário. Contemplando diariamente a efemeridade da vida, ocupava-se em
refletir sobre as prioridades da existência. Vivendo entre médicos, conhecia
suas forças e suas fraquezas. Assombrava-o que os novatos na profissão
evitassem o confronto com a morte através de piadinhas tolas. Acostumara-se à rotina
dos trotes maldosos e procurava antecipar-se aos veteranos para proteger os
calouros dos excessos imprudentes.
Dionísio
cuidava do laboratório de Anatomia, onde os alunos do primeiro ano sofriam seu
batismo profissional. As gerações passadas perdiam o apetite e o sono. As
últimas chegavam ao mundo com o deboche nos lábios.
Os
mestres tentavam incutir respeito nos discípulos, em discursos iniciais que
variaram ao longo de décadas de “Façamos uma oração para as almas que nos
cederam seus corpos” a “Um minuto de silêncio como agradecimento aos seres
cujos corpos utilizamos em nosso mister diário”.
Uma
fórmula adequada parecia impossível e argumentos inconvenientes e piadinhas se
sucediam. Tecnicamente ninguém cedia os próprios corpos. Os cadáveres vinham de
hospícios e presídios. Havia controvérsias sobre o significado dos termos alma,
espírito e criatura. Divergências entre abordagens religiosas. A faculdade era
laica. Enfim…
— Por prático
e materialista que seja o século, que diabo, um pouco de dignidade é desejável
— indignação inútil, a de Dionísio.
Todos
os anos ele surpreendia algum ladrão de peças. Estudantes levavam ossos para
estudarem madrugada afora, alheios aos riscos de contaminação e ao mais
elementar respeito aos mortos.
Afastando
com um abanar de cabeça seus ressentimentos inúteis, Dionísio voltou-se para o
rapaz, que se recuperara e permanecia no chão.
— Vou ser
expulso. Meu pai vai acabar comigo.
— Lugar de
ladrão é na cadeia.
O
rapaz sentou-se, tenso, o pânico no olhar.
— Relaxe,
rapaz, se a faculdade se queixasse de todo estudante que pegasse ossos, poucos
receberiam o diploma. Devolva a última peça que falta e eu repito as palavras
de Cristo: “vás e não peques mais.” — Havia tristeza na voz do homem, pois a
peça que faltava despertava-lhe suspeitas de um motivo mais grave para o roubo.
—Todos os
ossos estão aí.
—A última
peça não é um osso.
— O que é?
Dionísio
ficou até contente com a negativa do rapaz. Apenas um jovem tolo, afinal, nada
mais.
— Quem mais
entrou aqui para pegar ossos para estudar?
— O Luiz, mas
ele devolveu os ossos dele ontem mesmo, porque ele bateu o carro, o porta-malas
abriu, a ossada esparramou, os guardas pensaram que ele havia matado alguém,
foi uma bela de uma confusão lá na delegacia.
Dionísio
deixou passar “os ossos dele”.
— O Luiz não
é filho de um delegado?
— Foi por
isso mesmo que ele escapou de boa e devolveu os ossos ontem mesmo. Ninguém aqui
na faculdade deu pela falta, não é? Eu é que dei azar.
Dionísio
botou o rapaz para fora e sentou-se, confuso. A peça que faltava sumira do
laboratório no dia em que o professor de ginecologia viera buscar uns genitais
para ilustrar a aula do quarto ano. Os calouros tinham acesso apenas às mesas e
ao ossário. Amostras de sistemas e aparelhos ficavam trancados nas salas
laterais, devidamente etiquetados em armários e prateleiras.
O
professor de ginecologia viera só. O ladrão forçosamente deveria ser um dos
novatos presentes no momento. Um desses alunos fizera gestos obscenos e usara
palavrões para referir-se à genitália do cadáver de seu grupo, uma mulher.
Dionísio adivinhou ali uma vítima do fundamentalismo religioso, incapaz de
enfrentar os pais, tipo que demonstrava claramente comportamento agressivo e
poderia até mostrar-se perigoso em seu comportamento social. Dionísio o chamara
à ordem e o incidente ficou por ali.
O
homem compreendia os ladrões de ossos. Estudantes de má memória com
dificuldades de compreensão espacial. Já com os irreverentes, os insolentes e
os palhaços ele não demonstrava complacência.
O
técnico procurava um jovem contido, dissimulado, socialmente apagado.
Conhecedor de almas, Dionísio buscava por um psicopata. Durante o dia seguinte
ele percorreu os grupos com seu discurso humanitário sobre a consideração
devida aos defuntos, suas esperanças em novas tecnologias que reproduzem
imagens virtuais em 3D, e uma velada ameaça a quem se apoderasse ilicitamente
do acervo da faculdade.
— Qual é,
velhote, o defunto vai puxar meu pé de noite?
— Você é
trouxa de acreditar em almas penadas?
A
moçada riu. O técnico agradeceu mentalmente a aposentadoria próxima. Em voz
alta, desabafou:
— É com as
almas dos vivos que eu me preocupo. Dos vivos! — e nesse momento ele viu.
Um
desvio de olhar quase indiferente, um meio sorriso.
Dionísio
cresceu frente ao aluno, jogou seu olhar sobre ele disposto a fisgar seus mais
íntimos impulsos e estremeceu. Apontou-lhe o dedo. O rapaz recuou. Dionísio
pensou ver o diabo, a ilusão dissipou-se logo, a impressão perdurou.
— Se a peça
não retornar à prateleira hoje à noite, o ladrão vai comparecer ao Tribunal de
Deus. — Seu gesto inesperado foi tão solene, seu tom tão ameaçador, sua postura
tão definitiva, que a turma calou-se e retirou-se em seguida.
O
aluno suspeito era Jorge, filho de um médico de renome. Um menino tímido cujo
comportamento até então não destoava do comportamento de outros meninos
introvertidos. Horas trancado no quarto. Ouvindo música. Estudando. Devaneando
sabe-se lá sobre que assuntos.
Jorge
chegou em casa sob o impacto da ira de Dionísio. Foi à caixa de acessórios de
computador no fundo de seu armário e do fundo retirou uma caixinha que colocou
no bolso interno de sua mochila. Primeiro pensou em devolver a peça. Não, isso
seria o mesmo que confessar a culpa. Dionísio era amigo de seu pai. Melhor
jogar a peça no lixo. Mesmo porque era um tecido frágil e ficara dilacerada
depois do uso. De manhã cedo ele jogaria a caixinha no lixo do supermercado da
esquina e acabava-se o problema.
Aquela
noite, Jorge jantou em família, conversou com o pai, brincou com as irmãs. Às
onze subia para o quarto.
Por
conta da luz forte da rua, o quarto nunca ficava em completa escuridão. Ao
levantar o lençol, portanto, Jorge facilmente percebeu que havia algo sobre o
colchão. Ele não compreendeu de imediato o que era, até sentir o já familiar
odor de putrefação com formol.
Havia
um pedaço de mulher em seu lençol. Uma pelve.
Dois
pedaços apareceram mais acima. Dois seios.
Uma
boca materializou-se no ar, à sua frente, e falou:
— Você não é capaz de enxergar uma mulher por inteiro.
Jorge
virou-se para a porta e seu caminho foi barrado por outras bocas flutuantes.
Outros seios. Outras pelves. Se não gritou é porque uma das bocas grudou-se à
sua, sugando-a.
Um
rosto de mulher, transparente, jovem, triste, um rosto sem corpo, aproximou-se:
— Vou dizer
quem sou. Uma louca que teve uma filhinha no hospício. Minha filhinha herdou a
doença da mãe. Eu era louca mansa, deixaram-me ficar com a menina. Minha
pequenininha morreu aos cinco anos. Eu morri logo depois. Nossos corpos foram
doados para a faculdade de medicina. Eu não sairia de onde estava, nem chamaria
minhas companheiras, se um monstro como você não profanasse o corpo de minha
filhinha. Ainda aguardei que você se arrependesse. Que devolvesse a pequena
vulva ao laboratório. No entanto, você se dispôs a jogar esse pedaço de minha
filha...no lixo.
Jorge
percebeu então diversos pares de mãos que se aproximaram de seu corpo, que o
imobilizaram, que o empurraram e o conduziram para a cama.
Gargalhadas.
Sussurros roucos. Gemidos.
— Somos
muitas mulheres. Diferentes tons de pele. Diversas cores de cabelos. Vários
cheiros. Gostos distintos.
— Uma noite
para lembrar.
— Diversão
adulta.
As
várias mãos percorriam seu corpo, os lábios mordiam e beijavam, as pelves
balançavam-se e rodopiavam próximas de seu rosto.
— As mortas
têm alma.
— As mortas
têm dignidade.
— As mortas
se vingam.
— As mortas
se divertem.
As
mãos tinham a solidez e o calor de carne viva. Os lábios eram úmidos, mornos e
macios como os lábios das mulheres vivas. As pelves úmidas exalavam o odor das
fêmeas no cio.
Uma
avalanche de sons eróticos, sensuais e excitantes orquestrou a orgia, que foi
elaborada, intensa, longa. Quão longa.
Pela
manhã o corpo do jovem caiu da varanda. A cabeça rachou ao bater na quina de um
canteiro. O pai, ao sair para o trabalho, encontrou o corpo gelado.
As
aulas do campus naquele dia foram canceladas.
Dionísio,
recebendo a notícia, dispunha-se a sair para o velório quando foi surpreendido
pela entrada do amigo.
—Tenha dó de
um pai. Não acrescente a vergonha à nossa dor. — De olhos secos, o amigo
entregou ao técnico a caixinha encontrada na mochila do filho.
Dionísio
recebeu o objeto e o trancou à chave em uma gaveta.
Os
dois homens seguiram calados, lado a lado, rumo ao velório.
Sobre
o campus vazio, um céu de verão brilhava sobre os jardins perfumados por
onde a brisa espalhava os cantos dos bem-te-vis.
Sonia Regina Rocha Rodrigues é
escritora e médica especializada em Pediatria e Medicina do Trabalho. Idealizou
o jornal "Um Dedo de Prosa" e foi coeditora da revista literária
"Chapéu-de-Sol", que circulou em Santos/SP de 1996 a 2001, com as
escritoras Madô Martins, Neiva Pavesi e Mahelen Madureira. É autora dos livros
de contos "Dias de Verão", (1998), “É suave a noite” (2014), “Coisas
de médicos, poetas, doidos e afins” (2014) e um de programação neurolinguística
"O Que Você Diz a Seu Filho? (1999).
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