SOLUS - Conto de Terror - Daguito Rodrigues



SOLUS

(Daguito Rodrigues -1º Lugar no Concurso Bram Stoker de Contos de Terror)


O medo é mais próximo da tristeza do que se pensa. Ambos crescem na solidão. Com os pés ainda molhados, a garota procura por alguém na casa apagada e vazia. Escureceu e ninguém lembrou de acender as velas. De avisar aonde ia. Ninguém lembrou de Soledad. De toalha na varanda e com os cabelos molhados sacudidos pelo vento forte que vem do mar, confirma o que temia: foi deixada para trás.
Em noites de Lua Cheia, a grande esfera branca que pende no teto preto é o ser mais solitário que há. Não naquela sexta-feira. Abandonada, já de roupa, a jovem de vinte e poucos anos seca rápido o cabelo com a toalha e, com a pele gelada e as mãos suadas de pavor, finalmente encontra o bilhete dos amigos sobre a mesa: foram à festa no albergue, como haviam combinado. Não esperaram por ela.
Como podem ter feito isso? Sabem o quanto ela pede para jamais ser esquecida para trás. Piada de mau gosto brincar com aquele medo. Mal sabem eles.
Estou fechada, estou fechada!
O sofá rasgado coberto de areia, as garrafas de vinho abandonadas perto da porta, os castiçais com velas derretidas, tudo tão vazio, tudo tão escuro e silencioso. Tão esquecido. O piso de madeira que estala a cada passo. É o vácuo que preenche o peito da garota. Quartos, salas e paredes velhas. Tudo se exprimindo. Contraindo. A casa alugada se fechando. Madeiras e escuridão. Precisa sair. Precisa sair já. E a casa se exprimindo, esmagando os ossos. Sair já, sair já!
Estou fechada, procurem outro porque estou fechada!
Soledad agora afunda os pés apressados na areia, nos caminhos que cruzam o vilarejo. Um lugar sem energia elétrica, de casas baixas de sapê, cabanas de veraneio daqueles que preferem fugir dos centros urbanos. Ou de jovens como ela, que cruzam as longas dunas em paus-de-arara até se verem isolados em Cabo Antônio, uma vila distante num braço de terra que avança sobre o mar. Iluminada apenas pelo farol centenário de tijolos em cujo topo arde a chama que afana os pescadores.
Soledad!
A voz emana do breu, do mato enegrecido pela noite.
Soledad!
A garota teme por quem vem das sombras. Por quem chama.
Você vai à caminhada, Soledad? — é a garota que conheceu naquela tarde na praia, Martina. Surfista tatuada, de longos cabelos dourados como a pele morena que cobre as curvas de modelo. Sorriso acolhedor.
Soledad repete a mesma resposta daquela tarde. Não irá. Nenhum dos amigos se interessou, preferiram a festa no albergue. Soledad não é de fazer programas sozinha. Não é de ficar só. Ainda mais de noite.
Estarei lá. E mais de cem pessoas também, você jamais ficará sozinha, Soledad.
O que Martina não sabe é que a garota foge não só da solidão, mas daquelas curvas cobertas pela pele morena. Daquele sorriso. Soledad não está pronta ainda. Esperava com aquela viagem entre amigos, isolada num retiro praiano, recuperar a vontade perdida de se relacionar com outras garotas. Ainda não aconteceu. Recusa mais uma vez o convite para a caminhada e parte em direção ao albergue.
Precisa estar entre amigos. Precisa estar entre pessoas. Precisa estar.
O que esconde dos outros é também o medo da noite. Foi desgraçada ainda criança pelo dom de enxergar o que não é visto. As sombras que se movem no silêncio. As forças escusas que habitam o desconhecido. Soledad teme tudo que só ela vê e não entende. Aprendeu com a bisavó a fugir do indescritível: estou fechada, estou fechada! Procurem outro porque estou fechada!
Palavras que sempre funcionaram.
A caminho da festa, estranha a claridão que nasce no horizonte. Há mais luz que o normal naquela noite, naquela vila quase medieval. Não vem do farol. Olha para trás e encontra a grande bola amarela manchada de negro. A enorme Lua Cheia, a grande Super Lua que nasce gigantesca no horizonte.
Hipnótica.
Agora de costas para o albergue, caminha na direção da esfera que ilumina o vilarejo. Nunca viu cena tão linda. Nunca viu Lua tão grande.
Outros jovens da vila seguem o mesmo trajeto e, com Soledad, chegam à Praia Norte. Alguns em pé, outros sentados na areia, observam o espetáculo. Só a luz do luar clareia a região, o farol ficou do outro lado do morro de Cabo Antônio. A garota que queria tanto encontrar os amigos, que precisava tanto de companhia, agora se vê cercada de desconhecidos, de sombras, de silhuetas viradas para a Lua Cheia.
Soledad! Você veio! A caminhada começa já, já.
A garota mal consegue explicar a Martina que não mudou de ideia, que veio hipnotizada pela cena rara. Mas talvez inspirada pela Lua, talvez disposta a seguir em frente, aceita o convite e, com Martina, chega ao ponto de partida da caminhada.
Muita gente reunida, naquela praia, naquela noite de Lua Cheia, disposta a andar doze quilômetros pelo nada até o vilarejo mais próximo, do outro lado das dunas, do outro lado do rio. Invadindo a madrugada.
O que Soledad faz naquele grupo? O que faz ao lado de Martina?
Lembranças de cabelos escuros e olhos castanhos, de mãos macias que tocavam sua nuca momentos antes de beijos apaixonados. Lembranças de manhãs quentes com café coado, de torradas claras com geleia de morango. Lembranças de uma vida que não existe mais. Lembranças de Catarina. E quando vê, já está se abrindo com Martina, contando da namorada que saiu de casa numa tarde qualquer, sem explicações, sem bilhetes ou recados. Catarina sabia de tantas histórias de Soledad ainda criança, sabia o quanto o vazio aterrorizava a garota, e terminou o relacionamento dando a ela o que Soledad mais temia. O nada.
Ficamos quatro anos juntas, morando numa casa perto do lago — revela Soledad, sem os detalhes do medo das sombras. Martina entende agora seus avanços sem resultados: a garota ainda está presa ao relacionamento do passado. E, juntas, caminham com a multidão que se espalha pela areia, iluminada pela Lua Cheia. Soledad explica que só o fato de estar ali, entre desconhecidos, já é um grande avanço naqueles últimos meses.
Podemos nos conhecer melhor, nos tornar amigas, assim você não vai se sentir tão sozinha nesta noite.
Quem enxerga o que não é para ser visto é para sempre um solitário.
Caminham. O perfume salgado da maré perde espaço para um cheiro podre e enormes manchas pretas pintam o marrom da praia. Soledad estranha a cena, não consegue enxergar o que são aqueles montes negros, objetos? coisas? seres na areia? Antes que recordasse das palavras aprendidas com a bisavó, a resposta.
Leões marinhos —explica Martina.
Soledad se aproxima de um deles e reconhece o animal.
São dezenas deles...
Sim...
Mortos?
Você deve ter visto que os leões marinhos ficam lá na praia do outro lado, a do farol, sobre as pedras, tomam sol durante o dia. Vivem em grupos e, quando sentem que chegou a hora da morte, se afastam e vêm até esta praia para morrer. Sozinhos.
Há corpos por todo lado. Soledad não esperava cena tão dramática no que era para ser uma caminhada tranquila.
Relaxa, eu estou aqui — diz Martina, numa tentativa de abraço, prontamente recusado por Soledad.
E a multidão segue pela praia, entre leões marinhos solitariamente mortos. Sombras de desconhecidos caminham em silêncio e quanto mais se afastam do vilarejo, mais o breu toma conta do ambiente.
O que ela faz ali? Tão só, tão desprotegida. Há tempos não brinca com o desconhecido. Talvez por isso estranhe a mão de Martina tão próxima da sua. Mais ainda quando elas se tocam e Soledad percebe os dedos da outra se fechando nos seus.
Trocam olhares.
O caminho é longo e a multidão, que antes andava junta, agora se esparrama em pequenos grupos. Uns mais cansados que outros. Esparsos. O ritmo dos passos é diferente em cada pessoa. Estão quase sozinhas, isoladas na intimidade a dois. Martina segura o ritmo e Soledad para. Em silêncio, olham para o interesse e a esperança de algo novo. A Lua pende imponente no espaço e o tempo estanca.
Desculpa, Martina, não estou pronta...
Soledad...
Desculpa...
Soledad se afasta para mais perto do mar e molha os pés na água gelada. Martina observa de longe, espera que a garota volte. Não volta, Soledad se afasta ainda mais com os pés banhados de sal. Martina desiste e se junta a um grupo de três que segue gargalhando pelo caminho. Martina esboça um sorriso. Queria mesmo é estar com Soledad.
Distante, Soledad se lembra do lago. Se lembra de como tudo era antes. Se lembra de Catarina. E, encarada pela Lua, isolada na solidão, finalmente derrama as lágrimas que tanto segurou. Lágrimas pela namorada que a abandonou. Lágrimas por aquela tarde em que chegou em casa e encontrou o lugar vazio. Os armários vazios. As gavetas vazias. A cama vazia. E embebida em memórias e tristezas, Soledad mal percebe quando se afasta do grupo.
O mais triste é o vazio da alma.
Seguindo a enorme Lua Dourada, se vê agora sozinha na praia, mais uma vez abandonada. Silêncio. Brisa e mar. Nada além.
Estou fechada!
Ninguém ao redor.
Estou fechada, estou fechada!
Não vê Martina, não vê silhuetas de desconhecidos. Só os corpos dos leões marinhos. Mortos, enfileirados na areia. Centenas deles.
Estou fechada, procurem outro porque estou fechada!
De costas para o mar, percebe uma sombra na vegetação.
Procurem outro porque estou fechada!
É alguém.
Quem vem? Quem é? Estou fechada!
A pessoa não responde, anda para longe da praia, se afastando da garota. Só pode ser alguém da caminhada. Lá deve ser o caminho! Chama e corre atrás do desconhecido. A areia dá lugar à grama e pedregulhos e o cheiro dos animais mortos desaparece pouco a pouco. O cemitério fica para trás.
Soledad agora está numa região de pedras, enormes rochas cinzas perdidas na escuridão. Mal enxerga naquela paisagem quase lunar. Ouve vozes mais à frente, o caminho realmente parece certo. Mas está sozinha. E nuvens cobrem a Lua que antes iluminava o futuro. Breu.
Estou fechada, estou fechada! Procurem outro porque estou fechada!
É quando o cheiro podre retorna ainda mais intenso. Uma enorme rocha escura surge logo à frente. Há algo errado. A pedra faz leves movimentos, seguidos de sons suspirados em agonia. Como se estivesse viva.
Estou fechada! Estou fechada!
Soledad cessa o passo e encara a montanha escura. Agora que está mais perto, agora que as nuvens descortinam o luar, a garota percebe do que se trata. Diante dela, afastada da praia, uma enorme baleia agoniza longe da água.
Talvez a maré a tenha levado até lá, talvez com a Lua Cheia o mar tenha baixado mais rápido. Soledad pouco entende das altas e baixas. E estranhando aquela cena inusitada, se aproxima do animal e toca a pele ainda úmida. Percebe o olho aberto da enorme baleia, o olhar que encara a garota e por um segundo parece entender o sofrimento de quem está abandonado sem salvação.
Percebe grunhidos do outro lado do animal. Soledad caminha desconfiada, pouco enxerga naquele lugar escuro e deserto. Ao contornar o bicho, encontra Martina ajoelhada com a cabeça enfiada numa enorme ferida da baleia. Boca lambuzada e dois enormes caninos, mais brancos que os olhos sem pupilas que encaram Soledad.
E num salto inimaginável, mais rápido que qualquer bicho veloz das savanas africanas, Martina se coloca ao lado de Soledad. Estica o braço direito e segura o ombro da garota.
Martina...
A baleia agora está abandonada. Sozinha.
O que Soledad não sabe é que a solidão e a tristeza são as chagas do vampiro. Destinados a vagar sozinhos como predadores pela eternidade. Camuflados entre os normais, procuram iguais na tentativa vã de conseguir companhia. E o olhar vazio de Soledad naquela tarde na praia, o medo de estar só, o trauma do abandono pela namorada alimentaram a esperança de Martina de finalmente encontrar uma companheira para sempre. Por isso, ela, agora já revelada, crava os dentes no pescoço macio de Soledad, que não oferece resistência alguma. Para a garota solitária, aquilo é a morte que tanto procurou. O fim do sofrimento.
É apenas o começo.
Flutuam sobre a praia, entrelaçadas em braços e pernas, abraços e mordidas, entre nuvens clareadas pela Lua Cheia. Gotas de sangue vindas dos céus mancham a areia. Chuva vermelha. Gotejam sem parar. Na valsa do luar, na valsa da morte, flutuam como bolhas de sabão num amanhecer de outono. E como um camaleão muda de cor, Martina assume as feições, as curvas e o corpo de Catarina, a namorada que abandonou Soledad. A mesma voz, o mesmo cheiro. O mesmo olhar.
Posso ser quem você quiser que eu seja... posso sentir quem você ama e ser o alvo do seu amor... e você também pode ser quem você quiser.

Os amigos chegam bêbados na casa ainda escura, mesmo com a alvorada. Nenhuma vela acesa. O sol avança sobre o mar. O farol centenário já está apagado. Chamam pela amiga, dizem que foram atrás dela durante a madrugada, que era apenas uma brincadeira terem ido na frente. Que Soledad deveria ter participado da festa. Que houve muita música e muita dança. Que houve alegria e diversão.
Soledad? Onde está Soledad? Soledad?
A casa está vazia. Soledad não volta mais. Não volta nunca mais.


Daguito Rodrigues é escritor e roteirista. Foi repórter da Folha de S.Paulo, Diretor de Criação na agência Publicis Brasil e roteirista na Rede Globo. Vive também de música e estrada. Já foi premiado nos principais festivais de criação do mundo, como Cannes, D&AD, Clube de Criação, Prêmio Abril, entre outros. Foi selecionado para o Núcleo Experimental de Cinema do MIS-SP e o CLIPE, Curso de Preparação de Escritores da Casa das Rosas. Mantém o blog daguitorodrigues.com e já venceu concursos de contos, com textos publicados em antologias com outros autores. Quer muito que você leia o primeiro romance dele, “Vozes na rua” (editorakazua.com.br, 2016).


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