COLHEITA NEGRA - Conto de Terror - Marcelo Muniz
COLHEITA
NEGRA
(Marcelo
Muniz - classificado no Concurso Literário
Bram Stoker de Contos de Terror)
De longe pareciam
penduricalhos. Amuletos indígenas tipo apanhador de sonhos. O velho carvalho
careca, atrás da capela de São Ito, no alto do vilarejo, exibia seus enfeites como
uma árvore de natal em agosto. Dispostos de forma aleatória, sete corpos nus
jaziam pendurados entre os galhos. Braços emparelhados ao corpo, as mãos
livres. Banquetas de madeira tombadas ao chão e garrafas vazias de uísque
caseiro de milho espalhadas por todo o gramado irregular. Em cada corpo, uma
letra entalhada na região do tórax feita por algum objeto cortante. Sangue
escorria das lacerações em alguns pontos, e em outros, coagulado. Um anum preto
tomava conta.
Com ajuda dos mais
capazes e menos escandalizados, padre Ignácio comandava o resgate. E o primeiro
corpo foi retirado.
— Padre, é os... — tentou dizer um morador. Suas
mãos sujas de sangue.
— Sim, eu sei — interrompeu
o homem santo, não chegando a ser rude, mas sua entonação não era a mesma das
missas de domingo. Havia nervosismo em sua frase. ...Sullivans: Bernardo, Benício, Belchior, Belmudes, Bento, Benjamin e
Benedito. Todos eles. Completou a frase em pensamento.
Fazia sol e ventava
frio. Levou certo tempo até que todos fossem retirados com calma e o mínimo de
dignidade. Seria mais rápido cortar as cordas, mas ninguém iria sugerir. A faca
que Bento usou para fazer o serviço foi encontrada ao chão, próxima a ele. Com
as cordas em seus pescoços, ele marca seus irmãos primeiro, depois em si, e se
mata por último.
Havia um abismo entre o
real e o nebuloso. Mesmo que ninguém fosse com as fuças dos Sullivans, queria-se
saber o que acontecera. Moradores coçavam as cabeças se perguntando. Mulheres
em prantos horrorizadas viravam os rostos das crianças curiosas contra seus
vestidos.
Os corpos deitados,
lado a lado, inebriavam os pensamentos do padre. Ele imediatamente mandou que
cobrissem as partes íntimas, e só então, abençoou cada um com o sinal da cruz. Assustado?
Sim. Mas manteve sua posição altruísta. Dobrou um braço sobre a barriga, o
outro apoiado, levava a mão ao rosto cobrindo a boca. Mergulhou sobre as
letras. Juntava sílabas, balbuciava palavras.
ME-DO... I-DO-NE...
NO-ME... DO-MI-NE...
Elisabete sempre fora
vaidosa. Gostava de vestidos e pentear os cabelos. Casou-se com Belarmino
Sullivan, o mais velho. Foi o mais perto que conseguiu chegar de Bento, sua
paixão avassaladora, já que Ana fora mais rápida e se casara com ele primeiro. Mas
com a morte do marido, há quatro anos, Elisabete finalmente se viu dependente
de Bento. O que era perfeito. Quem falou que o passado estava morto?
Na escala sucessória,
Bento era o mais velho agora, e no primeiro ano após a morte de seu irmão, fez todo
o processo de plantio e colheita por caridade. Sua cunhada nunca teve (e nunca
quis ter) o menor jeito com aquilo. No ano seguinte, eles transavam pelas
costas de Ana. No terceiro, transavam, e ela pagava a ele parte do dinheiro que
ganhava com a venda do milho na cooperativa. Ano passado, ele exigiu a metade da
grana, e às vezes transavam. Elisabete acumulou dívidas e quase nada dentro de
casa. Viu-se em desespero: este ano não teria como pagá-lo. Entrou em parafuso
só em imaginar a hipótese de perder Bento novamente. E isso, ela não iria
permitir. Pensaria noutra forma de
pagá-lo.
Lucyla pediu à mãe para
acompanhá-la na vigília. Afinal, havia completado dezesseis anos, tinha
peitinhos e se considerava uma mulher. Porém ela não permitiu. As duas
discutiram feio, Lucy foi para o quarto e bateu a porta. Elisabete bufou. Espiou
o relógio na parede e viu que faltavam quarenta e sete minutos. Pensou em ficar.
Esperar e desfazer tudo quando Bento chegasse. Mas estava nas mãos dele. Era bom estar. Sacudiu os pensamentos e por
fim saiu, encostando a porta. Quando se convida o mal, ele vem.
23h01. Noite sem
estrelas.
Lucy acordou de um pulo
e sem tempo para entender. Sob a penumbra que a janela veneziana lhe dava, viu sete
homens ao redor de sua cama. Belmudes arriou as calças e deitou por cima dela.
Em véspera de colheita,
as mulheres se reúnem com padre Ignácio na capela em vigília pelo milho. A
fonte de renda do vilarejo. Pedem fartura na vindoura e agradecem a recebida. Essa
é a parte delas. Deveria ser. O pior sobra
pra eles. É o que dizem enquanto arrumam embornais, separam cestos e bebem
até cair.
Lucy se debate e é
contida. Grita, porém a mão pesada e rústica de Belchior tapa sua boca. Consegue
escapar uma perna, mas atinge um chute débil em Bernardo. E novamente é
imobilizada. Belmudes cede lugar a Benedito, mais forte e bem mais bêbado. Sua
habilidade em conectar-se à vagina era tal qual a uma velhinha enfiando a linha
no buraco da agulha. Lucy sentia dores com estocadas brutas. Nunca um homem
havia lhe tocado. Nem um beijo. Bento observava.
Já faz algum tempo que
Ana, Raquel, Beatriz, Clara, Telma, Regina e Marta não se importam mais com o
milho. Desgastadas, rejeitadas, mergulhadas em pensamentos aflitivos, desejavam
um filho mais do que qualquer outra coisa. E ali, corações em súplicas silenciosas
voltam-se aos céus, misturando-se aos gritos que ecoam em suas cabeças: Você só faz filha mulher! Maldita a hora que
me casei com você! O milho é só a merda de um milho.
Depois de Benício terminar
sua participação vomitando em tudo e caindo sentado; de Bernardo ter sido tão
rápido quanto um coelho e Benjamin arregado, o posto de manter a menina de boca
fechada ficou a cargo de Bento. Na troca, Lucy morde a mão de Belchior e ambos
gritam, ela bem mais alto. Belmudes corre, apanha um travesseiro e pressiona contra
o rosto da garota. Ela começa a sufocar, convulsiona o corpo em desespero e
para. Bento retira o travesseiro, olha para ela como aquilo de que o animal
carniceiro se apodera para comer. Coça a barba grisalha, ainda por fazer. Ela
tremia muito e guinchava baixinho. Entre as coxas, espasmos e manchas de sangue
tingiam o lençol. Olhos vermelhos, arregalados e cheios d’água pediam o fim do
pesadelo. Ele então puxou sua camisola e rasgou-a em duas partes. Contemplava
os pequenos seios rijos. Correu um dedo partindo do pescoço até a vagina depois
o enfiou na boca.
Na cabeça de Elisabete,
Bento era o seu homem. Mas Lucy, sua filha. E isso a corroía por dentro. Só uma menina. Inocente. Nova. Bonita. Cheirosa.
Enciumou-se. Foi o preço. A forma que achou de prender e não perdê-lo e talvez
conseguir um ou duas fodas.
Bento cuspiu na palma da
mão e lubrificou o membro. Deitou seu corpo pesado e fedorento sobre o da
garota segurando suas bochechas apertado.
— Se abrir esse bico
pra alguém, sobrinha, mato você e a louca
da sua mãe — cochichou em seu ouvido. — Agora capricha porque cê vai me dá um
filho homem — e penetrou-a.
Padre Ignácio lia uma
passagem e prendia a atenção das fiéis. Assim que pisou na igreja, Elisabete cambaleou.
Sentiu tudo escurecer e girar. As mãos frias e a cor de sua pele indo do
saudável ao branco opaco em segundos. Um forte odor de alecrim queimado inundou
a capela. Do púlpito, uma figura lúgubre vinha em sua direção. Usava um fedora aba
larga, jabô e casaca preta até o tornozelo. No lugar dos pés, Elisabete viu
cascos retinindo. Viu olhos flamejantes por detrás da armação ovalada incendiar
sua alma. Algo serpenteou por dentro do seu braço esquerdo, atacou o coração e
ela desabou como uma árvore serrada nos braços do padre, assustando a todos.
Lá fora o milharal
farfalhava feito uma plateia que aplaudia. Belchior não quis arriscar e mandou
virar a garota de bruços. Ela chorava copiosamente, urrava contra o colchão até
que desmaiou.
Quando partiram, o
quarto ficou um chiqueiro. Fedia a uísque barato, suor e vômito. Ainda
desacordada, Lucy recebe a mesma visita sombria que Elisabete. Ele a observa. Ajeita
a menina de barriga para cima, depois deita a cabeça colando um ouvido em seu
ventre e espera. Sussurra alguma coisa e então dá três batidinhas suaves com o
indicador e o médio como se chamasse alguém. Não demorou e a resposta veio. Inaudível,
mas um coraçãozinho batia.
Após enterrar a mãe,
Lucy nunca mais saiu de casa. Não via ninguém. Não falava com ninguém. Não
abria a porta para ninguém. Suas tias diziam que a garota precisava de cuidados
médicos, mas pouco importava. Apenas padre Ignácio tinha acesso a ela. Religiosamente,
levava mantimentos, roupas limpas, produtos de higiene e é claro, a palavra
santa.
Numa certa manhã, quando
deixava a casa em direção à capela, foi surpreendido por Raquel, mulher de
Benedito.
— O que é que tá
acontecendo naquela na casa, padre? Vamos, me diga, quero saber!
Padre Ignácio se refez
do susto e disse:
— Nada. Não há com o
que se preocupar, Raquel. Volte para casa. Estou apenas cuidando da menina —
respondeu, mantendo a voz linear.
— Padre, não minta! Preciso
saber a verdade — insistiu, passando de falsa preocupada a sarcástica. — O que acha
que diriam se soubessem sobre os doces e brinquedos que você mantém naquele
quartinho onde mora, hã?
Ele estacou. Como ela sabia sobre aquilo?
Impotente sob o manto
da ameaça, não lhe restou alternativa.
— Lucy está grávida —
confessou.
Raquel vacila com a revelação.
O padre conta tudo. Ou quase tudo o que apurou de Lucy sobre a noite maldita. Raquel
fez que não acreditou. Saiu andando, entrou em casa, mas bateu a porta.
À tarde, ao crepúsculo,
hora em que os irmãos estão no galpão de ferramentas, bebendo e falando alto, Ana
e as outras se dirigem à casa de Elisabete. Por debaixo do casaco, Telma trazia
consigo um pé de cabra pequeno. Encaixou o instrumento entre o batente e a
porta na altura da fechadura, forçando até ceder e entrarem. Lucy estava na
cama da mãe, deitada em posição fetal. Magra, porém, bem cuidada. O padre não
havia mentido. A barriga protuberante indicava algo próximo do sexto mês. Época
do ocorrido. Choro. Revolta. Desespero. E um ódio visceral brotou em Clara, que
possuída, toma o pé de cabra das mãos de Telma e desfere um golpe no crânio de
Lucy, depois de chamá-la de vadia!
— O QUE FOI QUE VOCÊ
FEZ SUA BURRA, IDIOTA! — berrou Beatriz, aterrorizada arrancando-lhe a
ferramenta. — Vamos sair daqui!
— Ana, depressa. Temos
que ir embora, agora! — implorou Raquel.
Ana permanece imóvel.
— Não posso.
Ela saca uma navalha do
bolso.
— Eu preciso saber.
Ana ajeita a menina que
sangrava pelo crânio afundado e improvisa uma cesariana. Faz um pequeno corte
horizontal na região pélvica. Passa por camadas de tecido e músculos até
atingir o útero. Olhares arregalados. A figura de preto assistiu a tudo refestelado
numa poltrona.
Um
menino!
Após a cirurgia, envolveram
Lucy e seu filho numa manta e os enterram no milharal.
Na manhã seguinte, Ana
desperta de um sono fragmentado com dores nos seios. No dia seguinte, apanha
uma espiga crua e rói. No terceiro, náuseas, vômitos e alterações de humor. A
barriga incha a cada dia e fortes dores nas costas. Ao nono dia, gritos e
urros. Embasbacado, Bento banca a parteira. Ninguém queria chegar perto de tal
aberração. Foi assim também com Beatriz, Raquel, Clara, Telma, Marta e Regina:
um lindo menino! Morto.
O fenômeno se repetiu
mais duas vezes seguidas. Nove dias, um bebê Sullivan nascia. De repente parou.
...DEMÔNIO!
O padre gelou.
Com discrição, procurou
na aglomeração e percebeu que, estranhamente, não vira as esposas dos falecidos.
Tentou não alardear. Saiu furtivamente e desceu apressado até a parte baixa do
vilarejo. Os irmãos eram vizinhos. Ele ignorou a primeira casa, que era a de
Lucy, e irrompeu na segunda. Seu coração pulsava forte. Foi até o quarto e deu
de cara com Ana. Tinha a garganta cortada e muito sangue na cama. O retrato do
horror o fez sufocar. Ele arranca o colarinho clerical buscando encher os
pulmões de ar. Agarra o crucifixo preso a uma corrente em seu pescoço, abençoa-a
e sai aturdido em direção à casa de Belchior, desejando fervorosamente que tudo
não passasse de um sonho ruim. Só que não. A história foi a mesma até a casa de
Benjamin. Todas mortas! Ainda ontem
as viu sentadas, ouvindo o sermão.
Ele orou.
— Pai nosso, que está
nos céus, santificado seja o teu nome...
Dobrou os joelhos,
fechou os olhos.
— Venha o teu reino,
seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia
nos dá hoje...
Ergueu as mãos para o
alto.
— E perdoa-nos as
nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores...
Então ele se lembrou de
algo que o fez ter vontade de rir. Adeus,
Raquel.
E foi isso o que ele
fez.
Marcelo Muniz
é Gerente de Organização Escolar na Secretaria de Estado da Educação- SP,
Gestor Financeiro pela FATEC Internacional-PR. Em 2015 participou das
coletâneas literárias Círculo do Medo,
Nanquim e Marcas Eternas, todas da Andross Editora. Foi finalista do prêmio
STRIX com o conto Mensagens de Texto pela coletânea Marcas Eternas.
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