CONVERSÃO - Narrativa Verídica Sobrenatural - Coelho Neto
CONVERSÃO
Coelho
Neto, membro fundador da Academia Brasileira de Letras.
(1864
—1934)
—
Sim, tens razão. Combati, com todas as minhas forças, o que sempre considerei a
mais ridícula das superstições. Essa doutrina, hoje triunfante em todo o mundo,
não teve, entre nós, adversário mais intransigente, mais cruel do que eu.
Em
casa, onde a propaganda, habilmente insinuada, conseguira fazer prosélitos, todos
temiam-me, apesar da minha conhecida tolerância em matéria de fé, porque eu não
deixava passar um só dos livros de preparação e opunha-me, com energia, às tais
sessões reveladoras. Mas que queres?
Não
tiveram os cristãos inimigo mais acirrado do que Saulo até o momento em que, na
estrada de Damasco, por onde ia para a sua campanha de perseguição, o céu
abriu-se em luz e uma voz do Alto o chamou à fé. E de inimigo que era tornou-se,
desde logo, o tapeceiro de Tarso, o mais fervoroso e abnegado apóstolo do
Cristianismo, saindo a pregar a Palavra suave ao gentio pagão. Pois, meu caro,
a minha estrada de Damasco foi o meu escritório e, se nele não irradiou a luz
celestial, que deslumbrou S. Paulo, soou uma voz do Além, voz amada, cujo eco
não morre em meu coração.
Sabes
que, depois da morte da pequenina Esther, que era o nosso enlevo, a vida tornou-se-nos
sombria. A casa, dantes alegre com o riso cristalino da criança, mudou-se em
jazigo melancólico de saudade. Passei a viver entre sombras lamentosas.
Minha
mulher, para quem a netinha era tudo, não fazia outra coisa senão evocá-la, reunindo
lembranças: roupas que ela vestira, brinquedos que a acompanharam até a última
hora, entre os quais a boneca, que foi com ela para a cova, porque a pobrezinha
não a deixou até expirar.
Júlia…
coitada! Nem sei como resistiu a tão fundos desgostos: seis meses depois do
marido, a filha.
Pensei
perdê-la. Todas as manhãs lá ia ela, para o cemitério, cobrir o pequenino túmulo
de flores, e lá ficava, horas e horas, conversando com a terra, com o mesmo carinho
com que conversava com a filha. Ia depois ao túmulo do marido e assim vivia entre
mortos, alheia ao mais, indiferente a tudo.
Propus
mudarmo-nos para Copacabana. Opôs-se. Insistiu em ficar na casa em que fora
feliz e desgraçada, mas onde perduravam recordações do seu tempo de ventura. Temi
que a seduzissem para o Espiritismo, que a lançassem ao turbilhão do mistério em
que se agitam as almas do nosso tempo, como endemoninhados da Idade Média corriam
ao sabbat, nos desfiladeiros
sinistros. No estado de abatimento moral em que ela se achava, seria arriscado
perturbar-lhe a razão com práticas nigromânticas.
As
minhas ordens, dadas em tom severo, foram obedecidas. Júlia passava os dias no
quarto, que fora da pequena, e de fora ouvíamo-la falar, rir, contar histórias de
fadas, exatamente como fazia durante a vida da criança.
Tais
ilusões dolorosas eram bálsamos que mitigavam o sofrimento d’alma, como a
morfina alivia as dores. Cessada a ilusão, o desespero irrompia mais acerbo.
Era assim.
Uma
manhã, porém, com surpresa de todos, Júlia apareceu-nos risonha, posto que os
olhos ainda conservavam orvalho na corola, ao sol.
Interroguei-a,
sorriu. Interroguei minha mulher. Nada. Confesso-te que cheguei a pensar na...
volta da primavera.
Lucílio
tornara-se mais assíduos nas visitas, aparecendo duas e três vezes por semana e
o amor, bem sabes, renova: o amor é como o sol que abre flores nas próprias
covas.
Já
começava a afazer-me a tal ideia quando, uma noite, minha mulher entrou-me pelo
escritório, lavada em lágrimas, e disse-me, abraçando-se comigo, que a filha
enlouquecera.
—Por
quê?! perguntei.
—Está
lá embaixo, ao telefone, falando com Esther.
—Que
Esther?
—A
filha…
Encarei-a
demoradamente, certo que a louca era ela, não Júlia.
Como
se compreendesse o meu pensamento, ela insistiu:
—Lá
está. Se queres convencer-te, vem até a escada. Poderás ouvi-la.
Fui.
Como
sabes, tenho dois aparelhos: um, no “hall”, outro, em extensão, no meu escritório.
Ficamos os dois, minha mulher e eu, junto à balaustrada do primeiro andar. Júlia
falava embaixo, no escuro.
Por
mais esforço que fizéssemos, não conseguíamos ouvir uma palavra. Era um
sussurro meigo, cortado de risinhos. O que me pareceu, por que não dizê-lo?, foi que a conversa era de amor.
Tive
ímpetos de violar o segredo de minha filha, mas o escrúpulo do meu
cavalheirismo conteve-me.
—Por
que dizes que ela fala com Ester? perguntei a minha mulher.
—Por
quê? Porque ela mesmo me confessou e não imaginas com que alegria!
Fiquei
estatelado, sem compreender o que ouvia. De repente, numa decisão, entrei no
escritório, desmontei lentamente o fone do aparelho, apliquei-o ao ouvido e
ouvi.
Ouvi,
meu amigo. Ouvi minha neta. Reconheci-lhe a voz, a doce voz, que era a música
da minha casa… Mas não foi a voz que me impressionou, que me fez sorrir e
chorar, senão o que ela dizia.
Ainda
que eu duvidasse, com toda a minha incredulidade, havia de convencer-me, tais
eram as referências, as alusões que a pequenina voz do Além fazia a fatos, incidentes
da vida que conosco vivera o corpo do qual ela fora o som…
Mistificação?
E que mistificador seria esse que conhecia episódios ignorados de nós mesmos,
passados na mais estreita intimidade entre mãe e filha? Não! Era ela, a minha
neta, ou antes, a sua alma visitadora que se comunicava daquele modo com o coração
materno, levantando-o da dor em que jazia para consolação suprema.
Ouvi
toda a conversa e compreendi que nos estamos aproximando da grande era; que os
Tempos se atraem —o finito defronta o infinito e das fronteiras que os separam,
as almas já se comunicam. E eis como me converti; eis por que te disse que a
minha estrada de Damasco foi o escritório onde, se não fui deslumbrado pelo
fogo celestial, ouvi a voz do céu, a voz vinda do Além, da outra Vida, do mundo
da Perfeição…
—Ouviste-a
ao telefone… E por que não a ouves no ar, como a ouviu… São Paulo, por exemplo?
—Por
quê? Porque o espírito precisa de um meio em que se demonstre. Para viver conosco,
encarna-se. O próprio Espírito de Jesus encarnou-se. O lume precisa de um
combustível para arder e o lume é luz, eternidade: o som precisa de um órgão para
vibrar. Todo o imaterial carece de um veículo para agir.
—Uma
pergunta, apenas: — Como consegue D. Júlia pôr-se em comunicação com o espírito
da filha? Não me consta que a “Companhia Telefônica” tenha ligação com o Além.
—Respondo-te.
Quando Júlia —disse-me ela própria — deseja comunicar-se com a filha, invoca-a,
chama-a com o coração, ou melhor: com o amor, e ouve-lhe imediatamente a voz.
Falam-se, entretêm-se, continuam a vida espiritual. A que está lá em cima é
feliz na bem-aventurança, e a que ficou na orfandade já não sofre, como dantes sofria,
porque o que era esperança tornou-se absoluta certeza…
—Certeza
de quê?
—De
uma vida melhor e maior, de vida puramente espiritual, como a claridade, vida
sem dores, sem os tormentos próprios da carne, que não é mais do que um cadinho
em que nos depuramos em sofrimento para alcançarmos a Perfeição.”
Fonte:
Jornal
do Brasil, edição de 7 de junho de 1923, p. 9.
deus, que conto mais lindo! (๑♡⌓♡๑), esse, tenho certeza, merceceria virar um curta-metragem, faria um enorme sucesso ( ◜‿◝ )♡
ResponderExcluiras histórias do Coelho Neto são tão bonitas e interessantes, eu adoro (。・ω・。)ノ♡
ele é uma das minhas principais inspirações para ser um escritor (◍•ᴗ•◍)✧*。
Interessante é que a narrativa não é, propriamente, um conto. Coelho Neto se refere a um fato verídico. Aconteceu, mesmo, com ele.
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