O MENINO MORTO - Conto Clássico de Loucura e Horror - André de Lorde

O MENINO MORTO

André de Lorde

(1869 – 1942)

Tradução de autor desconhecido do séc. XX


Meu secretário entrou no escritório para avisar que um operário desejava falar pessoalmente com o comissário de polícia. Dei ordem para que o fizessem entrar e convidei-o a que me dissesse o motivo da sua visita. Por única resposta, tirou do seu bolso um embrulho amarrado, no qual estava escrito com letra feminina o seguinte:


“Ao senhor comissário de polícia.”


—Encontrou isto? —perguntei.

—Sim, senhor comissário.

E o operário narrou que trabalhava na reparação de uma parede, em um pavilhão situado no fim do bairro Vangirard, e que, no dia anterior, aquele embrulho tinha caí junto dele, sem que houvesse podido saber de qual das janelas fora atirado. Vinha, pois, entregar o documento. Depois de agradecer-lhe e despedi-lo, abri o embrulho, que continha um caderno e li:

“Junho, 15 — Quando estive no convento, depois que nos retirávamos para o dormitório, escrevia cada noite as minhas impressões do dia. Quero, durante estes poucos dias de reclusão forçada, a que fui condenada, consignar neste caderno as horas dolorosas que hei vivido.

Já transcorreram três dias de encerramento. Quando terminará esta prova? Bem sei que mereci um castigo, mas teria preferido ser espancada a não sofrer esta atroz expiação.

Não obstante, me submeto. Submeto-me a esta fantasia estranha que é o mais completo dos suplícios. “Ele”, sem dúvida, quer que eu cada dia sinta mais cruelmente a perda que ocasionei. É justo. Por acaso não sou responsável pela morte de meu filho? Não foi a minha fuga que indiretamente causou a morte do pequeno ser? Quando o abandonei para seguir um amor culpado, não me deveria deter à sua voz amada? Não obstante, com quanta miséria e vergonha tenho pago o erro de uma hora! Quisera poder olvidar esse passado execrando… Pelo menos, não seria dado à minha pena traçá-lo.

“Junho, 18 — As horas passam lentamente. Que horrível prisão nestas quatro paredes!

Pela claraboia do atelier, mal posso distinguir os pássaros que voam e as nuvens que passam… A enfermeira tem-me uma grande aversão. Está inteiramente dedicada ao seu patrão. Não me dirige a palavra. Quanto a ele, só me fala do menino.

“Julho, 8 — Faz dezessete dias que dura esta horrível comédia. Meu marido permanece impassível. Ontem, supliquei-lhe que pusesse termo à sua vingança, ao meu castigo. Não pareceu impressionado com as minhas lágrimas. Censurou-me mais duramente que nunca o ter sido mãe desumana. Não posso, no entanto, não sendo mais mãe, viver como se o fora! Quis rebelar-me, porém, vi nos seus olhos uma expressão tão estranha, que não me atrevi a desobedecer.


*

A partir deste fato não há nenhuma data estabelecida


*


“Não sei como vivo... Minhas forças se esgotam. O menino dorme ao meu lado, ou pelo menos é a hora em que dormia outrora e é necessário simular a tarefa de deitá-lo, de coser junto à sua cama, com a canção preferida, de abraçá-lo quando cerra os olhos. Ah! Esse beijo, que sensação lúgubre e dilacerante! Pobre filho! Estás no cemitério onde dormes para sempre, longe de tua mãezinha que te abandonou, amando-te, contudo!


*


“Por que voltei secretamente? Por que não comuniquei a alguém o meu regresso?... Meus pais, meus amigos ignoram a sorte que corro... Queria que meu marido fosse o primeiro a ver-me e perdoar-me... E eu mesma me entregarei ao meu verdugo! Sepultei-me viva. Como fugir, burlar a sua vigilância, a da enfermeira?


*


“Meu Deus! Tenho medo! Tenho agora a certeza de que estou em poder de um louco. Já não posso duvidar. Está persuadido de que seu filho ainda vive. Porém, ontem, o surpreendi julgando-se só com a enfermeira! Tomou o filho ao colo e falou-lhe com uma volubilidade e uma naturalidade desconcertantes! A enfermeira, por piedade, parecia favorecer o engano de seu amo! A ele é que deviam encerrar e, não obstante, sou eu a sua prisioneira! Estou à mercê da sua imaginação, associa-me ao seu delírio e me faz viver as suas alucinações. Quem virá em meu auxílio? Sinto que vou enlouquecer como ele.”


*


Deve ter decorrido muito tempo, como deixa supor a brusca alteração da letra.


*


“É necessário que isso acabe. O cadáver do menino exala um cheiro horrível. Não posso aproximar-me dele, fico nauseada. Não obstante, não se decompõe. Sem dúvida, ele encontrou um segredo para embalsamá-lo. Que horror!… Desde ontem, sinto trabalhar um operário em redor da casa… Se pudesse comunicar-me com ele! Jogar-lhe estes papéis… Ah! Venham depressa libertar-me! Amanhã talvez seja tarde!”


*


Seguiam em continuação um nome e um endereço. O nome que acabava de ler encheu-me de admiração. Era o de um escultor de grande talento, de gênio — diziam alguns —, mas cuja produção já há algum tempo havia desorientado o público. Ninguém ignorava que a mulher, muito mais jovem que ele, o abandonara recentemente, com grande escândalo, para seguir um pintor italiano.

O que me surpreendia, neste diário fragmentário, era a evidente contradição que havia entre a primeira parte e o final. A sequestrada se referia, no começo, a um filho cujo corpo descansava no cemitério e, depois, falava em um cadáver cuja promiscuidade lhe era imposta. Que teria sucedido nesse intervalo? Teria obtido a peso de ouro a violação da sepultura?

Porém, um fato me parecia manifesto: o sequestro daquela mulher; e meu dever impunha responder ao seu chamado.

Acompanhado por dois agentes, me dirigi ao lugar indicado. Era, efetivamente, numa rua deserta do bairro Vangirard. Pelas grades de um portão, distingui um pavilhão no meio de um pequeno parque. Uma enfermeira veio abrir com precaução. Perguntei se a senhora P. estava.

— A senhora do patrão — disse, rindo disfarçadamente — há algum tempo que se foi embora…

—Desculpe-me — observei. — Creio que voltou.

A mulher olhou-me com desconfiança.

—Se voltasse, o patrão a expulsaria. É uma desalmada que deixou o filho morrer!

E, como se dispusesse a fechar a porta, abri o sobretudo e mostrei-lhe a minha faixa de comissário de polícia.

—Em nome da lei, disse, permita-me a entrada.

A estas palavras, a enfermeira, alarmada, fez um movimento como para ir advertir ao amo. Os meus agentes se lançaram a ela e a imobilizaram.

Entrei no pavilhão. O andar térreo estava vazio. Subi ao andar onde estava o estúdio. Rumores de vozes me guiaram a uma porta na extremidade do corredor. Detive-me e ouvi:

—O menino está com fome e até agora te esqueceste de lhe dar o peito.

—Perdão! Suplico-te… Perdão!…

—Que fizeste, desgraçada! Deixaste de alimentar o teu filho.

—Mas, se está morto!…

—Está vivo, miserável!… E tens que fazer o que te digo, senão…

—Bom… Sim… —dizia a mulher. —Obedeço-te…

Houve um silêncio. Neste momento, bati à porta. Um homem de uns cinquenta anos, de alta estatura, ostentando a roseta da Legião de Honra, veio abri-la. Reconheci nele o célebre artista cuja fotografia me era familiar. Em uma extremidade, uma mulher, com o semblante transtornado, de uma magreza e palidez fantásticas, jazia abatida junto a um berço.

Como dera a conhecer o meu caráter e motivos da minha intervenção:

—Entre, senhor comissário — disse-me ele. —Estou em minha casa. Esta mulher é minha esposa sobre quem exerço a minha justiça; é uma mãe indigna, que abandonou o filho, e é responsável ela sua morte. Faço-a expiar o seu crime obrigando-a a consagrar-lhe toda a sua vida.

—Seu filho? Mas o senhor não disse que ele morreu?

— Morreu, sim; porém, eu o ressuscitei, porque sou um grande artista.

E levou-me ao pé da cama, cujas cortinas levantou. Ali, um menino, de dois anos mais ou menos, parecia dormir.

—Conservei os cabelos — prosseguiu, exaltando-se —, os dentes e as unhas. E guardei tudo isso que não é susceptível de decomposição: tudo quanto, depois da morte, conserva um resto de vida incorruptível. E coloquei nesta cera, que amassei com perfeita semelhança. Agora vive. Vive uma existência fictícia, atenuada, como se estivesse em letargo, porém vive; estou certo de que nos ouve. Algum dia, provavelmente despertará!

A mulher se tinha levantado e agarrou-me pelo braço.

—Não lhe faça caso, senhor comissário. O senhor sabe muito bem que se não ressuscitam os mortos. Só se devem enterrar, para que não corrompam o ar que respiramos. Livre-me deste cadáver em decomposição!

—Ouviu? —rugiu o marido. — Quer que o terrem vivo. É uma perdida!

Apanhei, então, o pequeno corpo de cera admiravelmente modelado e fi-lo em pedaços no assoalho. Ela deu um grito de terror e ocultou rosto nas mãos.

O homem soltou um rugido de dor e dirigiu a mim, ameaçando-me com um pesado martelo de escultor:

—Assassino! — proferiu. — Mataste o meu filho!.. Vais morrer!...

Auxiliado por um dos meus agentes, que acudiram aos gritos, lancei-me a ele e o desarmamos.

Hoje, está encerrado numa cela do hostal de Santa Ana, onde continua a embalar e acariciar uma criança imaginária, enquanto a mulher se acha em tratamento na Salpetriére.


Fonte: “Selecta”/RJ, edição de 14 de abril de 1923.


 

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