INSTINTO MATERNAL - Conto de Terror - Fernando Miranda Junior
INSTINTO MATERNAL
(Fernando Miranda
Junior – Menção Honrosa no Concurso Literário Bram Stoker de Contos de Terror)
O barulho despertara o bebê. O pequeno, de sete meses, chorava como se entendesse o que acabara de ocorrer com seus
pais. Em outro cômodo da casa seus pais eram devorados por uma estranha
matilha.
Eles andavam sobre duas patas e suas patas dianteiras apesar de peludas e com enormes garras, possuíam aspecto quase
humano com seus polegares opositores.
A matilha era composta por cinco lobos
antropomórficos. Duas fêmeas, uma com pelos castanhos e outra
avermelhados, e três machos de pelos negros, um dos quais com quase dois
metros de altura, com uma mecha branca no peito. O lobo com a mecha se destacava entre
os demais, pois ele era o alfa da matilha. O aspecto humanoide dessas criaturas
foi responsável pelas lendas de lobisomens. Os seres humanos erroneamente
confundiram esses seres antigos, que nada haviam com sua árvore genealógica. Esses eram os
verdadeiros lobisomens, um ancestral evoluído de canídeos obrigados a se
esconderem dos hominídeos que sempre os perseguiram.
A fêmea de pelos castanho parecia
distraída em pensamentos, o que não fazia sentido, já que aquela espécie era só
instinto e crueldade. Ela observava a fêmea humana que segurava o braço
mutilado pela garra de um dos machos, algo no olhar daquela humana deturpava seu instinto
selvagem. Aquela expressão se assemelhava a algum medo diferente de todos que a
Pelos Castanhos já vira. Em seu íntimo sabia que a humana temia pela segurança de outra pessoa.
— Proteja meu bebê! — suplicou a humana
para a
criatura de pelos castanhos antes de morrer.
Mesmo sem compreender a liguagem, Pelos Castanhos sabia que a humana
queria sua ajuda. Enquanto o som de carne sendo dilacerada e ossos
estraçalhados imperava na casa, distraindo o resto da matilha, Pelos Castanhos
ouvia um som desconhecido a ela. O som impelia ela agir rapidamente. Pelos Castanhos farejou um humano, mas seu cheiro era diferente. O
odor exalado era meio parecido com o cheiro de filhote. A parte de seu cérebro
que possuia uma espécie de lógica racional dizia-lhe que deveria ser um filhote
humano.
Pelos
Castanhos seguiu o cheiro até um quarto. No quarto estava uma espécie de jaula
que ela nunca vira antes e dentro dela o pequeno filhote humano. O bebê parou
de chorar e ficou deitado no berço observando aquele estranho animal. Pelos
Castanhos observou o filhote, sentindo uma espécie de ternura. Era a primeira
vez que ela sentia isso por um filhote. 0s olhos do bebê estavam fixos nos
olhos de Pelos Castanhos. Por sorte o barulho que a matilha fizera ao atacar
seus pais apenas assustaram o bebê, mas não tirou seu sono. As pálpebras do
bebê foram se fechando lentamente, deixando Pelos Castanhos fascinada.
Pelos
Castanhos estava para sair do quarto e se juntar a matilha, quando viu que a
outra fêmea de Pelos Avermelhados a observava. Os olhos amarelos das duas
fêmeas estavam fixos uma na outra. Pelos Castanhos rosnou indicando que Pelos
Avermelhados não poderia fazer nada contra aquele pequeno humano. Mas o olhar
da outra fêmea brilhava com uma frieza cruel, indicando que ela iria devorar o
bebê. Em um ímpeto de fúria Pelos Avermelhados pulou de encontro ao berço,
sendo surpreendida no ar por um salto violento de Pelos Castanhos. Pelos
Avermelhados ergueu-se do chão mostrando suas presas de forma ameaçadora para
sua opoente, ergueu as garras e deu um golpe na Pelos Castanhos rasgando assim
parte da pele de seu peito.
O
bebê acordou assustado emitindo um choro estridente. O berro da criança tirou a
atenção de Pelos Avermelhados, tempo o suficiente para que a outra fêmea dar
uma mordida fatal na sua jugular. O sangue de Pelos Avermelhados jorrou como um
esguicho por todo o quarto, até que seus olhos ficaram embaçados e ela pereceu
pela falta de sangue. Pelos Castanhos estranhou a sensação que lhe corroia.
Sentia-se aliviada. Não entendia como poderia sentir alívio por salvar um
humano sacrificando sua irmã de matilha. Sua mente animalesca não conseguia
processar esse impulso em proteger o filhote humano. Ela sabia que o correto a
se fazer seria devorar aquele humano antes dele se tornar um problema.
Pelos
Castanhos estava consternada. Sentia que aquele filhote estava manipulando-a de
alguma forma. Caminhou em direção ao berço com ódio por aquele choro irritante.
Levantou a garra preparando para ceifar aquele pequeno humano, mas assim que o bebê
a viu o choro cessou se transformando em um sorriso. Abaixou a garra
lentamente. Outra preocupação surgiu em sua mente, restavam ainda os três
machos da matilha, e entre um deles estava o mais perogoso: o Alfa. Para piorar
a situação sabia que a Pelos Castanhos era fêmea do Beta, o segundo na
hierarquia da matilha. Precisava ocultar o filhote de humano. A parte racional
de Pelos Castanhos susssurrava em sua cabeça, dizia que aquele filhote humano
não sobreviveria sozinho. Então por quê não deixar a matilha devorá-lo? Mas seu
instinto uivava em seu cérebro pedindo para ela tirar o filhote dali e deixar
com algum humano.
Sua
mente vagou no tempo. Lembrou de seu pequeno filhote com o Ômega e dos olhos
frios daquele humano que disparou contra ele. Sentiu novamente aquela dor
incômoda sem ferimento. Se sua espécie tivesse consciência, ela estaria
arrependida de ter localizado aquele casal de humanos para a matilha, pois o
pequeno humano precisava de sua mãe. Diante de todos esses sentimentos que
pulsavam em seu cérebro, Pelos Castanhos decidiu que a vida daquele filhote de
humano era responsabilidade dela. Mas como agir, sendo apenas uma fêmea de
baixa hierarquia? Nem ela nem seu companheiro tinham direito a isso,
principalmente agora que matara principal fêmea.
Pelos
Castanhos se assustou ao ver seu companheiro parado ao seu lado. O macho Ômega
ficou parado farejando o corpo inerte da Pelos Avermelhados, constatou que ela
estava morta e olhou fixamente para sua companheira. Com um modo quase humano Pelos
Castanhos indicou o filhote humano. Ômega rosnou para a pequena criatura e
colocou o focinho próximo a ela para cheirá-lo. O bebê colocou seus dedinhos no
focinho gelado de Ômega e esboçou uma risadinha, típica dos bebês quando estão
felizes. De repente o Ômega entendera tudo o que ocorrera naquele local.
Deduziu que sua companheira matara a outra pra defender aquele humano
vulnerável. Mas isso não o enfureceu, ao contrário, ele soube na hora que o
filhote humano lembrava a fragilidade de seu falecido filhote. Mesmo sabendo
que aquele humano não seria aceito na matilha e que sua fêmea seria agora de
posse do Alfa por ter eliminado Pelos Avermelhados, ele só pensava que deveria
ajudar sua companheira a fugir dali com o filhote.
Pelos
Castanhos percebeu no olhar de Ômega sobre o que ele refletia. Mesmo sem
linguagem própria aquela espécie compreendia um ao outro pela expressão do
olhar. Outro sentimento novo aflorou em sua cabeça. Estava contente por seu
companheiro a compreender. Agora os dois eram não apenas companheiros dentro de
uma matilha, mas sim cúmplices naquela situação. Havia chegado o momento deles
agirem. Eles sabiam que tinham algum tempo para se prepararem, pois ainda
ouviam o barulho do banquete.
Pelos
Castanhos tirou a criança do berço com a mesma delicadeza que usava para caçar
uma presa. Ômega foi até o resto do bando, afim de observar os outros enquanto
sua companheira fugia. Alfa e Beta continuavam no seu ritual de desmembramento.
Para a matilha era crucial destruir os corpos o máximo possível, não só para
não correr risco de serem pegos, mas para saciar a ira que sentiam por nossa
espécie. Alfa, que estava com uma mão entre suas mandíbulas, virou-se ao ver
Ômega. A expressão no rosto de Alfa indagava sobre a localização das fêmeas da
matilha. Ômega fez um gesto que indicava que as fêmeas estariam procurando para
ver se haviam mais humanos por perto. Alfa resolveu voltar ao seu banquete.
Ômega
sabia que em breve iriam partir. Era costume da matilha levar partes da caça
aos que estavam na toca. Ômega precisava arquitetar um plano para dar tempo a Pelos
Castanhos. Preso em seue devaneios, Ômega não notara que Beta o observava de
maneira estranha. A desconfiança de Beta provinha de sua necessidade de
substituir Alfa na matilha, o que o infringia a agir como um bajulador. Para
matilha só haviam duas maneiras de se tornar um alta, pelo combate, ou sendo
indicado pelo líder antes de morrer. Beta não teria chances em um combate de
vida ou morte com Alfa, então decidiu ganhar o respeito do líder.
Alfa
fez um sinal que indicava que logo partiriam. Ômega retribui o sinal e se
prontificou a buscar as fêmeas, mas foi interceptado por Beta. As coisas
estavam saindo do controle. Ômega tentou insistir em ir buscá-las, mas Beta
rosnou de maneira persuasiva. Alfa para inibir um confronto na matilha indicou
que os dois deveriam ir rápido. Ômega sentiu medo pela primeira vez. Para
proteger sua companheira, Beta teria que morrer. Essa seria uma decisão
difícil. Caso Ômega matasse o Beta teria que eliminar o Alfa em seguida. A
morte dos dois iria desestruturar toda a matilha, isso se Ômega não fosse morto
por um deles. Ômega sabia que se morresse sua companheira e o filhote humano
seriam os próximos.
Assim
que entraram no quarto Beta viu o corpo de Pelos Avermelhados no chão. Abaixou
para farejar quem haveria agredido ela. Nesse exato momento Ômega movimentou
suas patas dianteiras expondo as garras. Em um golpe avassalador enfiou as
garras no pescoço de Beta. Com as garras dilacerando a carne sem muito esforço,
Ômega arrancou a cabeça de Beta. Uma torrente de sangue esguichou pelo corpo de
Ômega. Beta caira inerte sem vida com os olhos baços.
O
instinto primitivo de Alfa começou a suspeitar que algo estava errado. Decidiu
ir buscar o resto de sua matilha e sair logo daquele local. Ao chegar na porta
do quarto do bebê deparou-se com os dois corpos. Tendo visto que nem Ômega e
nem Pelos Cadtanhos estavam por perto emitiu um enorme uivo. Notou que não
haviam cheiros diferentes dos odores de sua matilha. Não conseguiu detectar a
presença de outra matilha e nem de outros humanos. Seu faro então notou um leve
odor de filhote humano. Odor que o fazia lembrar do sabor da tenra carne de um
jovem humano. Seu cérebro primitivo processou toda informação. Só uma coisa
poderia ter ocorrido naquele quarto: Pelos Castanhos estava protegendo o
filhote humano.
Do
lado de fora da casa, Ômega perseguia o cheiro de sua companheira quando ouviu
o uivo do Alfa. Todo seu pelo eriçou. Logo o Alfa o alcançaria e depois pegaria
sua companheira e o filhote humano. Ômega precisava impedir-lo. Ele podia ouvir
a aproximação de Alfa. Enfrentar o líder da matilha seria suicídio, mas daria
uma oportunidade para Pelos Castanhos fugir com o filhote humano. Ômega parou
de correr e uivou chamando Alfa para um desafio.
Alfa
alcançou Ômega. Os olhos do líder faiscavam com umz fúria incontrolável. Alfa
saltou sobre Ômega e deu-lhe uma patada tão forte que jogou o oponente contra
uma árvore. O impacto deixou Ômega meio atordoado. Ergueu-se cambaleando, mas
ponto para a briga. Alfa abriu a mandíbula e deu uma bocada na pata dianteira
esquerda de Ômega. A pressão da mandíbula arrancou um enorme pedaço de carne de
Ômega. A dor excruciante fez Ômega cair ao chão. Alfa aproveitando que o
oponente estava caído, posicionou-se em frente a ele. Sob quatro patas, Alfa se
preparou para morder a jugular de Ômega. Quando estava próximo de trucidar
Ômega, Alfa ficou imóvel e tombou de lado. Atrás dele, Pelos Castanhos segurava
o bebê em um braço e no outro um enorme pedaço da coluna vertebral de Alfa.
Ômega
olhou para a companheira agradecido. Observou que o ferimento em sua pata não
era letal. Iria sobreviver, mesmo não podendo jamais ficar sob as quatro patas
novamente. O filhote humano deu uma risadinha ao ver Ômega, que uivou
suavemente para o bebê. Pelos Castanhos jogou o pedaço de Alfa ao chão e ajudou
o companheiro a se levantar. Ambos sabiam que chegara a hora mais difícil. A
batalha contra a matilha não seria nada em comparação a batalha interna de
entregar o filhote para algum humano.
Não
longe dali havia uma pequena fazenda. Pelos Castanhos bateu violentamente na
porta da casa e deixou o filhote humano no chão. Ao longe, Ômega e Pelos
Castanhos observaram um casal de idosos abrirem a porta e levarem a criança.
Uma lágrima de satisfação escorreu pelos olhos de Pelos Castanhos. O filhote
humano agora teria uma oportunidade de crescer. Talvez algum dia aquele filhote
consiga unir as duas espécies, ou talvez ele se torne um caçador. Mas o que
importava mesmo para Pelos Castanhos era que ele tinha uma chance de criar seu
próprio destino.
Na
gruta onde se escondia o resto da matilha, todos estavam preocupados com a
demora do Alfa. De repente, Ômega e Pelos Castanhos entram segurando a cabeça
decepada de Alfa. A matilha ficou eufórica. Com a morte do líder, almejaram um
novo período de paz. Muitos haviam perecido caçando humanos com o Alfa. Toda
aquela vingança estava levando sua espécie quase a extinção. Toda matilha se
ajoelhou e uivou em homenagem a seus novos líderes. Aquela noite duas grandes
mudanças repercutiram na matilha: foi a primeira vez que um casal assumiu a
liderança da matilha, e nunca mais saíram para caçar humanos por prazer.
Aficionado por
literatura de horror, Fernando Miranda
Junior baseia seus contos no estilo de Stephen King e Clive Barker. Suas
histórias trazem personagens sobrenaturais já conhecidos e entidades novas.
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