NOTURNO - Conto de Horror - Pedro Albeirice
NOTURNO
(Pedro
Albeirice – Menção Honrosa no Concurso Literário Bram Stoker de Contos de
Terror)
Os pneus deslizam macio sobre o asfalto
frio da madrugada. Após o serão no escritório, solidão e, agora, a avenida em
silêncio. Aqui e ali um cachorro esfomeado saqueia sacos de lixo. Cíntia dirige
do escritório para casa, onde o solitário quarto a aguarda.
Enquanto
pressiona suavemente o pedal, ela observa a avenida vazia de carros, vazia de
gente, vazia de vida. Como de rotina, na oitava esquina, vira à direita. Duas
quadras depois, o semáforo vermelho, que ela viola rotineiramente. Chuva fina.
Passa o fast food, a letra amarela se
destaca na noite. Vira, então, à direita e faz quatro quadras, um gato branco
se destaca na grama da mansão. Então ele aparece, carro anos noventa, preto,
mas conservado, silencioso, seguindo-a na solidão da madrugada. Ainda sem
susto, ela diminui a marcha, testando a situação. Ele também reduz.
Instintivamente acelera, ele faz o mesmo. A casa está longe, um calafrio lhe
percorre o corpo. Vira à direita, ele faz o mesmo. Mais duas quadras nervosas,
e então, instintivamente vira à esquerda. Agora, desconhece o caminho. Estou apenas nervosa, não pode ser, é
coincidência. Não é. Tenta manter o sangue frio, cruza uma rua, mais outra,
mais outra e ele atrás. Já não sabe para onde está indo, já passa de oitenta
por hora, e ele atrás. Então, aposta tudo noutra guinada à esquerda, e eis que
surge o beco. Não há o que fazer, não tem voltar. Abre a porta e, num
desespero, corre para o muro. Que quer de
mim?, as palmas das mãos, tentando afastá-lo num instintivo ato. Ensaio um não balbuciante... fim de rua, fim de linha, o muro alto. E ele vem a jaqueta
jeans, a calça apertada, o rosto suado. Se
ficar quietinha, não passa nada. E ela, não,
por favor, não... ele aperta firme seus braços e a empurra contra a parede
de tijolos e pressiona seu corpo contra o seu, o cheiro de perfume barato
pesteando o ar. Ela perde a fala, dedos sujos agora sobem sob o vestido,
buscando, trêmulos, seu sexo, que é tocado, por baixo...
Um grito de pavor e ela sentada na
cama, a testa pingando, a camisola colada à pele de tanto suor... o silêncio do
quarto é cortado, apenas, por uma sirene distante. No relógio de parede,
exatamente quatro horas. Outra vez esse sonho, esse pesadelo recorrente, a cada
duas, três semanas, o sol a encontrando de olhos firmes colados ao vidro da
janela.
Novos dias passando, o sono demorado, o
medo do sonho a impedindo de dormir. Pesadelos
são problemas adormecidos, a amiga diz, e ela repete consigo, problemas adormecidos, adormecidos, cidos...
Ela, então, dorme em relativa paz por
vários dias, parece que não vai acontecer
mais. Porém, quando menos espera, a avenida, o semáforo violado, a letra M
do fast food, a perseguição, primeiro
lenta, depois sôfrega. E o beco, a jaqueta, o perfume barato pesteando o ar, os
dedos nojentos em seu sexo. Desta vez, quando o dia a encontra os olhos
esbugalhados na janela, ouve o murmúrio isto
tem que acabar...
Nesta manhã, ela não vai ao trabalho.
Volta da cidade às dez da manhã. No guarda roupa, bem fundo, escondida entre
velhas lingeries, o revólver dorme,
inerte. Toma-o entre as mãos e acaricia, agora, o cano, o cabo de madrepérola,
passa os dedos suavemente no gatilho. Na cômoda, a caixa de balas comprada
ilegalmente. Isto tem que acabar, vai ter
que acabar.
Trabalha pela tarde e, às dezoito
horas, o escritório inteiro vai para casa. As salas ficam vazias, as luzes se
apagam e ela senta no carpete, num canto de parede, os olhos fixos na noite que
cai bem escura, ameaçando chuva.
Ali no seu cantinho, ela observa o
relógio redondo do escritório. O ponteiro pequeno marca o número oito, o número
nove, o número dez... não sente sono. Está determinada e nunca se sentiu tão
fria. Faltando vinte para as quatro da manhã, ela desce o elevador, na garagem
do prédio o seu carro solitário a espera. Aciona o controle remoto e sai pela
avenida silenciosa, a chuva fina, apenas alguns cachorros saqueando uma ou
outra lixeira. Pressiona, ainda uma vez, suavemente o pedal do acelerador. Após
oito esquinas, vira à direita e, duas quadras depois, o semáforo vermelho é
desrespeitado. A letra “M” do fast food
parece ainda mais cintilante na noite escura. Vira à direita e, após quatro
quadras, o gato branco faz contraste com a grama da mansão. Olha o retrovisor,
não vem qualquer carro... mais três segundos e ele aparece com o carro anos
noventa, mas silencioso e a segue. Diminui a marcha, engole em seco. Ele reduz,
também. Em seguida, acelera, no que é imitada por ele. Vira à direita, e pelo
retrovisor o vê fazer o mesmo. E vira à esquerda, o velocímetro passando da
marca dos oitenta. Então dá outra guinada forte à esquerda e ali está o beco.
Não tem voltar.
Corre, então, para o muro, mas dessa vez
segura um volume diferente sob a jaqueta. Ele a alcança e pressiona, ela finge
resistir, as mãos nojentas dele sobem pela coxa, passam por baixo da lingerie, ela reúne todo sangue frio
possível, os dedos tocando seu sexo...
Ouve-se, então, o barulho seco da arma
e o baque forte do corpo masculino cai formando uma poça de sangue. Os lábios
da jovem apenas balbuciam Morre, seu
verme!
Logo e seguida, o carro desliza
suavemente sobre o asfalto, na madrugada fria da metrópole.
PEDRO ALBEIRICE da Rocha (Volta Redonda, RJ, 1960) escreve ensaios, contos e poemas.
Dentre suas obras, destacam-se “Morte no Atlântico Sul” (novela juvenil), “Joia
Líquida” (poesia) e os ensaísticos “Comentando a Tradução Literária”, “Mulher,
os Rumos da Liberdade” e “Literatura Infantojuvenil Brasileña Traducida al
Español”. Atua profissionalmente na área acadêmica. Atualmente, leciona na
Universidade Federal de Santa Catarina, em Joinville, num contrato de
colaboração técnica com a Universidade Federal do Tocantins. Dedica-se ao
ensino de Comunicação e Expressão e Tradução. Suas pesquisas se voltam à
tradução literária, também assunto dos projetos de extensão que coordena.
Incursiona, ainda, na temática de Literatura e Mulher. Albeirice é doutor em
Teoria da Literatura, tendo já realizado pesquisas, atuado como docente e
ministrado workshops em diversos países, como Malta, Irlanda, Canadá, Letônia,
Lituânia, Argentina e Paraguai.
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