TERRITÓRIO DE SANGUE - Conto de Terror - Davidson Abreu
TERRITÓRIO
DE SANGUE
(Davidson Abreu, classificado no Concurso
Literário Bram Stoker de Contos de Terror)
Ao final da década de 1880, em um
vilarejo próximo aos Montes Cárpatos, sua pequena população vivia em relativa
tranquilidade.
O principado da Transilvânia havia sido
abolido e o território anexado ao Império Austro-Húngaro. O descontentamento do
povo levou intelectuais a se manifestarem com o que ficou conhecido como o “Pronunciamento
de Blaj”, que apesar dos esforços, rendeu apenas perseguição aos seus
apoiadores.
A distância dos grandes centros e a
preocupação com a sobrevivência através do duro trabalho no campo deixavam
grande parte dos camponeses alheios às disputas políticas.
A segunda Revolução Industrial
multiplicava seus frutos pelo mundo ocidental, atingindo principalmente os maiores
portos e grandes cidades da Alemanha, Inglaterra e França, além dos Estados
Unidos da América, contudo, parecia não chegar à parte Oriental da Europa,
exceto por alguns avanços na malha ferroviária e ainda poucos pontos de
telégrafos.
Enquanto os maiores centros urbanos se
preparavam para substituição da iluminação a gás pela elétrica, a realidade
naquele povoado, assim como seus vizinhos apresentava-se diferente, mantinham
seus costumes como na Idade Média.
Ao anoitecer, da janela de sua casa, Ghena
Shelley, uma linda garotinha de cabelos negros e olhos amendoados, observava um
belo rapaz chegar ao vilarejo. Galopava um cavalo negro, bem vestido e com
elegância ao cavalgar. Não era nada estranha a chegada de um forasteiro. O
vilarejo fazia parte do caminho de viajantes, alguns ficavam por um tempo ou
retornavam após sua passagem.
Havia vaga na estalagem. O rapaz percebeu
certo medo no olhar dos aldeões, não da sua pessoa, talvez os ares noturnos não
fossem amistosos. Logo quando a noite atingiu sua plena escuridão, as janelas e
portas foram trancadas. Apenas os incautos se arriscavam a caminhar pelas ruas
ou pelo campo.
— Quanto tempo pretende ficar, rapaz? —disse
Hermann, proprietário da estalagem.
—Não tenho data. Até quanto render o
fruto de meu trabalho. Exerço meu ofício em cidades, aldeias e vilas das
proximidades, por isso precisarei sair antes do sol raiar, e retorno já com a
lua e as estrelas iluminando meu caminho.
— E eu posso saber qual é esse ofício e
o seu nome? — perguntou com a mesma desconfiança que inquiria quem vinha de
fora.
— Sou Miklos, servo do Império, e o
imperador precisa de olhos em seu reino, a fim de ver o desenvolvimento de seus
concidadãos. Como vivem e quais suas necessidades.
— Ou estar avisado de uma revolta? —
perguntou arqueando uma das sobrancelhas.
— Não há motivo para isso, meu bom
homem. O imperador é justo e quer apenas a prosperidade de seu reino.
O velho Hermann, como quase todos ali,
apesar do distanciamento, mantinha no coração o desejo do retorno da autonomia
do principado, contudo, não quis prolongar o assunto.
— Hunf!
— bufou. — Tenho um quarto nos fundos, por enquanto é o que tenho.
— Não há problema. Sou modesto e
excelente pagador, só peço uma coisa. Minhas viagens são extremamente
cansativas, não quero ser incomodado sob nenhum pretexto.
— Não será.
— Diga-me uma coisa. Ao chegar aqui, notei que
em algumas casas havia réstias de alho penduradas na janela ou crucifixos
pregados do lado de fora da porta, é algum costume local?
— Bobagem. Vai comer? — disse,
encerrando o assunto com uma pergunta.
—Não, obrigado. Apenas uma taça de
vinho.
Em povoados a chegada de alguém não
deixava de ser notícia, e para as moças sempre uma oportunidade de, quem sabe,
um romance que as levaria pra conhecer o mundo, até então restrito.
A pequena Ghena era ainda uma criança,
não nutria interesse por homens e não os atraía, fato que mudaria nos próximos
anos. No entanto, Cássia, com seus longos cabelos louros como ouro e olhos
azuis como o céu de verão, sentiu-se atraída por aquele jovem, que correspondeu
com um olhar sedutor, e logo encontraria razões para ouvir a voz da bela moça e
flertar.
Alguns dias passaram e a presença do
rapaz deixou de ser novidade. Os hábitos locais começaram a ser compreendidos
por ele.
A linda Cássia parecia estar acometida
de alguma enfermidade. Intensa e arredia, era comum vê-la pelo campo ou
dançando em algum festejo, contudo, nos últimos dias, estava reclusa. Seus pais
tentaram ocultar o que acontecia, porém deixou de ser possível após seu corpo
padecer.
A notícia de sua morte alvoroçou os
pacatos cidadãos, não pelo fato da bela jovem ter deixado a vida em tenra idade
e, sim, por seu estado. Abatida, magreza aparente, pálida como uma alma perdida,
e o que mais os deixou temerosos foram as marcas em seu pescoço. Após o
velório, um grupo de aldeões foi ao cadáver a fim de realizar um antigo e horripilante
ritual. O coração da recente finada foi varado por uma estaca de carvalho, sua
cabeça decapitada e a boca recheada com alho.
Miklos ficou atento aos acontecimentos,
e a noite resolveu permanecer na taverna e ouvir o relato dos acontecimentos
por quem se recuperava com vinho e cerveja dos acontecimentos.
— Fazia tempo que isso não acontecia.
Maldito assassino —disse um camponês.
- Há gerações aceitamos isso calados —
respondeu seu amigo.
— Posso pagar uma rodada para os
senhores? — perguntou Miklos.
Os homens entreolharam-se e acenaram
com a cabeça. Miklos pediu à moça que servisse uma garrafa de vinho.
— Suspeitam de quem cometeu essa
atrocidade?
— Não há suspeita, rapaz. Sabemos
exatamente — disse Anton, o enquanto bebia o vinho oferecido pelo forasteiro.
— Anton, é melhor não... — disse
Vermon, seu gordo amigo.
— Por quê? — interrompeu Anton. —Você
não realiza serviços para o Império? — apontou a caneca para Miklos. — Então
leve isso a quem deveria tomar providências.
— Sim, mas do que estão falando?
—
Da nobreza, que nunca fez nada por nós e leva nossas vidas. Daquele que vive no
castelo do despenhadeiro, teme a noite e tudo o que é sagrado, e ao cair das
trevas sai à caça de vida humana. Drácula! — disse Anton.
— Então é verdade...? - disse Miklos.
— Sim, mais real do que eu e você.
Fazia tempo que ele não atacava. Na verdade, nossa covardia ignorava muitas de
suas vítimas que eram geralmente viajantes descuidados, rameiras e outras
párias. O vampiro também parecia buscar suas presas em lugares distantes —disse
Anton.
— Realmente, se o que dizem for
verdade, é algo que eu não previa — concluiu Miklos.
— Sim é verdade, e deveria temer em
suas viagens. Leve alho no bolso e uma cruz no pescoço — disse Vermon.
Miklos agradeceu pela conversa e se
retirou, imaginando como seria um encontro com o temido Drácula, ainda que
tivesse dúvidas quanto a sua existência. Não longe dali, a infante Ghena estava
assustada, não se lembrava de ter visto algo semelhante acontecendo, ou era
muito criança na época da última morte, passando despercebido.
Alguns expressavam sua indignação,
cobravam atitudes de seus regentes e da igreja; entretanto, isso já havia
acontecido antes. Com o passar dos dias, mesmo que entristecidos, a indignação
se afastaria de seus corações, o medo de retaliação falaria mais alto e
retornariam aos seus afazeres.
Parecia que tudo voltara ao normal, até
que outra moça teve os mesmos sintomas de Cássia. A revolta pareceu gritar mais
alto, assim como o medo. Temiam que o Conde quisesse mais que sangue, talvez
estivesse à escolha de uma nova amante para acompanhá-lo em suas orgias de
sangue, isso era fato, visto a delicadeza da marca das presas no pescoço da
vítima, quase cirúrgica, sem dilaceramento.
O álcool no sangue potenciava a
coragem, estratégias de revolta e vingança eram planejadas, muitas das quais
desapareceriam com a chegada da ressaca. Miklos ouvia tudo com atenção, para
ele parecia ser importante observar as reações daqueles rústicos homens.
As noites pareciam mais longas, janelas
e portas foram reforçadas, até os poucos descrentes seguiam os antigos
ensinamentos. Sabiam em seu íntimo que, apesar dos esforços, seria difícil
evitar o antigo Lorde, caso assim ele tivesse empenho em sua caçada. Esperavam
ter saciado sua sede de sangue ou partido para outro vilarejo em busca de uma
amante, ainda que, na pior das hipóteses, outra bela mulher do vilarejo fosse atraída
para seus braços. Tudo era possível em tempos de terror. Apenas não aguardavam
o que viria a acontecer.
Algo inusitado ocorreu em uma noite
gélida. Gritos acordaram os moradores assustados. Em um poste, que ficava
próximo à porta da igreja, estava pendurado o formoso forasteiro do qual a
cidade vinha se acostumando. Havia um gancho que prendia a gola de seu casaco,
preso ao poste, que sustentava seu corpo acima do chão.
Seus braços estavam erguidos, abraçando
o poste por trás, sendo que os punhos estavam unidos devido a um cravo de
carvalho, endurecido pelo fogo, que varava seus pulsos, prendendo um ao outro. Duas
outras estacas foram cravadas em suas pernas, em um ponto exato entre seus
músculos, impedindo que ele as movimentasse. As estacas causavam dor e o
deixavam imobilizado.
Ao ver os moradores, tomados de uma
tímida coragem, saindo de suas casas e chegando perto, ele tentava em vão sair
dali. Suas feições estavam alteradas, não só pela dor, mas por alguma
metamorfose. Seus dentes caninos estavam salientes e afiados. O casaco foi
aberto na parte da frente, deixando o peito desnudo e mostrando que foi feito
uma marca com algo cortante em seu peito. Essa marca era a letra “D” do
alfabeto.
Não restavam dúvidas: Ele era o vampiro
que mordeu as belas moças e Drácula as vingou, deixando que os camponeses
terminassem o serviço.
A vingança não tinha nenhum apelo moral
ou heroico, e aquele povo sabia disso em seu íntimo. A questão resumia-se em
territorialidade. Drácula jamais deixaria outro vampiro se estabelecer em seus domínios.
Em geral, não nutria simpatia por outros de sua espécie, tolerava apenas os que
o serviam.
O rapaz tinha certo poder, contudo não se
equiparava ao dragão, mesmo em sua condição de desânimo perante sua casta
aristocrática decadente em seu próprio território.
Parecia que as ações do vampiro
forasteiro tinham sido bem orquestradas. Hospedou-se onde não havia resmas de
alho, ficava longe do crucifixo pendurado na parede da taberna, apresentava-se
simpático e discreto.
Agia de maneira inteligente. Quando
necessitava de sangue, sempre atacava algum solitário viajante que passava por
ali. O seguia até longe da vila e tinha o cuidado de esconder o corpo, ou
deixá-lo a mercê dos lobos.
Ao contrário do que pensam, um vampiro
não precisa se alimentar todas as noites. É claro que o sangue lhe proporcionava
um prazer embriagante, podendo até mesmo causar um frenesi como o de um tubarão
ao dar a primeira dentada e sentir o sabor do precioso líquido vermelho. Alguns
vampiros mais sensíveis reagiam como se fossem um dependente de ópio quando vislumbrava
sangue escorrendo. Desta forma, o rapaz poderia enganar a todos por muito tempo;
contudo, não conseguiu se ocultar de Drácula.
Seria apenas ousadia do vampiro húngaro
se estabelecer por ali ou imaginou que o Conde não se importaria? Após
transformar a moça em vampira, o que faria?
Perguntas que jamais seriam
respondidas.
Os cidadãos deram fim ao serviço iniciado
por Drácula, ignorando seus apelos e cravando uma estaca no coração do jovem
vampiro. O velho Hermann finalizou o ritual separando sua cabeça do corpo com
um certeiro golpe de machado.
Ghena assistiu a tudo da janela de sua
casa. Seu pai foi um dos mais atuantes em eliminar a criatura. Ela tinha idade
o suficiente para entender o que havia ocorrido. Porém, devido à sua ingenuidade,
manteve uma impressão de que a atitude de Drácula estava envolta de um heroísmo
vingador. Logo essa ilusão seria desfeita, após ficar ciente sobre outras ações
nada nobres do vampiro.
Esses e outros acontecimentos a
tornaram forte e fizeram crescer um ódio torrencial contra os sugadores de
sangue. Ainda assim, não poderia imaginar que, logo após a virada do século,
viria a enfrentar Drácula, junto ao ilustre professor Van Helsing e outros
guerreiros.
Davidson Abreu é autor de diversas obras, destacando-se o romance “A
Vingança de Drácula – A Ressurreição do Dragão, editado pela Madras. Mantém, na
internet, as seguintes páginas: davidsonabreu.blogspot.com
e combatetatico.blogspot.com.
Espero que aproveitem essa pequena pitada de terror gótico.
ResponderExcluirBelo conto. Me prendeu do inicio ao fim deixando um gostinho de "quero mais". Um excelente aperitivo para a "Vingança de Drácula". Livro que li e me fez ser fã das Obras deste escritor.
ResponderExcluirPronto, conseguiu deixar-me mais curiosa doque já estava ������ agora quero mais do que nunca ler a continuação, que acredito estará no livro. Parabéns pelo conto Davidson ����������������
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