UM FANTASMA NA FITA - Conto de Terror - M.D. Junior
UM FANTASMA NA FITA
(M.D.
Junior – classificado no Concurso Literário Bram Stoker de Contos de
Terror)
Qual a relação entre um fantasma e uma
fita cassete? Nenhuma, eu acho. A garota parece pensar diferente, como sempre.
—
Fantasmas de verdade existem em um plano audível, não em um visível. Esse
negócio de espectros é tudo mais é apenas coisa da cabeça. — ela diz. — Você já
ouviu passos no escuro, deitado na cama, não ouviu?
—
Eu pensei que isso era a geladeira descongelando. — eu respondo. — Fantasmas
tem passos bem altos, hein?
Ainda
estamos vestindo o uniforme da escola. A escola acaba as seis horas da tarde e
o caminho toma cerca de meia hora. O céu é um tom laranja escuro. O sol se
esconde atrás de uma montanha distante, que repousa no horizonte como a costa
negra de uma grande besta adormecida. Nuvens de um cinzento incerto andam pelo
céu em um ritmo deliberado.
—
Você é hilário pra cacete, sabia? — ela diz, em tom seco. — Sagacidade e
inteligência de mãos dadas.
—
Eu tento fazer meu melhor. — respondo.
—
Claro que tenta.
Um
carro corre pela estrada a nossa frente, impulsionando uma torrente de ar sobre
nossos rostos. A garota murmura algo inteligível, irritada. A garota é a única
pessoa que eu admito dizer ser uma amiga próxima. Até mesmo se, algumas vezes,
ela me deixa mais irritado do que eu estaria com outros. Especialmente quando
ela se envolve em tangentes malucas como esta. Ainda assim, chega a ser um
pouco cativante esse costume dela, não sei dizer por que. As conversas, ao
menos, são interessantes.
Ela
vive do outro lado da rua. Faz uns três anos desde que ela se mudou para cá, da
cidade de Registro. Registro. Um nome bem estranho. É praticamente o centro
comercial da região, então é bem cheia. Bem mais desenvolvida do que a nossa
cidade, ao menos em termos de desenvolvimento urbano. Mas, mesmo assim, nossa
cidade é bem mais bonita. Registro é cinzenta e seca. Cajati tem bastante
cinza, especialmente no centro, mas sempre há um pouco de verde na distância, nas
montanhas e nas florestas, como a que envolve nosso bairro.
Bem,
quem é que está envolvendo em tangentes alheias agora?
—
Você consegue parar com isso se tentar também, não pode? — ela pergunta, em tom
brincalhão.
—
Consigo. — eu respondo.
Ela
observa a escuridão que cresce no horizonte e então fecha os olhos, pensando.
—
Ok — ela abre os olhos. — Um fantasma é um ser etéreo, que vive em um plano
alheio a percepção humana, invisível ao olho nu. Essa é a teoria mais
verdadeira, eu acho.
—
Sim — eu digo. — Bem verídico.
Ela
vira o rosto para mim, com um sorriso no canto dos lábios, um sorriso que não
condiz com a frieza de seu olhar.
—
Você não consegue parar mesmo, não é?
—
Eu já parei.
—
Não você não parou.
—
Sim, eu parei. Por favor, continue.
Ela
volta a olhar para o horizonte e então suspira. Outro carro passa a nossa
frente, jogando um grão de areia em seu olho.
—
Bem... — ela diz, esfregando os olhos. — Fantasmas, pelo menos nesse plano,
existem apenas em uma forma audível. Não é a mesma existência que repousa no
outro plano, mas é um clone viável, pode se dizer. Você está me entendendo?
—
Estou, de certa forma. — respondo. — Primeira vez que ouço essa teoria.
Ela sorri, irônica.
—
Sim, sim, eu gosto desse tipo de coisa também. Não me olhe com essa cara, você
sabe muito bem disso. — Eu dou um empurrão leve nela, a tirando do balanço. Ela
repete o gesto. — Eu só não tomo isso tudo como nada além de fantasia,
diferente de você. De qualquer maneira, de onde você tirou essa?
—
Um ensaio acerca do infinito por Philip Morrister. Não me lembro da editora.
—
Soa um pouco pretensioso.
—
E é. Mas tem uma boa teoria em meio a toda baboseira.
—
A credibilidade dessa teoria já se foi a muito tempo, você sabe.
—
Sim, já foi. Mas vamos tentar extrair algo, que tal?
O
céu se torna mais escuro. O laranja se dissipa em uma azul escuro. As nuvens se
tornam cinzentas.
—
De acordo com ele, o som audível é um código para as memórias e sentimentos de
um fantasma. Como um código hexadecimal para cor, esse tipo de coisa. Tentar
traduzir algo físico ou psicológico em termos exatos.
—
Como um código morse, de certa maneira.
—
Sim, de certa maneira. Então, em teoria, um fantasma pode residir em uma fita,
apenas por meio do som. Uma cópia de sua existência, ecoando pelo tempo.
—
Fitas cassetes são passado agora.
—
Mas ainda existem.
—
Porque fitas de qualquer maneira? Existem varias maneiras de “distribuir” som.
—
Ai é que está. — ela aponta para mim. — Um fantasma só pode ser contido em fita
magnética. Um CD pode ter riscos, por onde ele pode escapar e na distribuição
digital o arquivo pode ser facilmente acessado e modificado. Em uma fita
cassete, mesmo que a fita em si se rasgue, o som não pode se propagar em
fragmentos, como em um CD, por exemplo. Não é o único meio, mas é o mais
seguro.
—
Que livro é esse, meu pai?
—
Vamos lá, o King já escreveu coisas bem mais ridículas.
—
Mas ele nunca escreveu como se fossem verdade.
—
Você tem um ponto.
Já
não há mais sol no horizonte. A lua subiu é o horizonte já se tornou uma
escuridão intragável.
—
Eu acho melhor você já ir indo embora. — eu digo. — Você pode tentar me
convencer amanhã.
—
Tem razão. — ela se levanta. — Boa noite, retardado.
Ela
caminha até sua casa, olhando para o céu. Quando alcança o portão da garagem,
ela vira em minha direção e grita:
—
Diz ai. Por acaso você acreditou em mim? Em qualquer coisa?
Eu
emito uma curta risada.
—
Acreditei. — respondo. — Mas não totalmente.
—
Bom o bastante, eu acho. — ela diz, rindo.
Ele
abre o portão e entra em sua casa. Eu faço o mesmo.
São três horas da manhã. A hora
sobrenatural, alguns dizem. A única coisa estranha é o estalo do congelador,
como passos no escuro.
A
luz do luar entra pela porta aberta. Luz esbranquiçada, refletida pela
superfície lisa do guarda roupa na parede oposta a cama. Um pequeno circulo
branco, me observando. Não realmente observando. Só parece que está.
Eu
me levanto e me sento na cama. Os cantos do quarto são como pacotes de luz
negra. Boa símile, hein? Quem sabe um pouco pretensiosa. Os cantos estão apenas
escuros, só isso. Meus olhos se acostumam a escuridão e então posso ver que,
realmente, é apenas um canto. Estranho. Me sinto um pouco desapontado, por
algum motivo.
Olho
para o velho estéreo na estante. A fita que pertencia ao meu finado pai está
junto dele. Uma fita de plástico transparente. Um pouco de cola raspada onde
deveria estar o rotulo, mas nada além disso. Tomo a fita em mãos e a elevo até
a luz do luar. Perscruto por algo em meio a sua extensão, mas nada mais. Após
seu suicídio, deixou uma caixa cheia dessas para mim. Já faz alguns anos. Quem
sabe quatro ou cinco, não sei mais dizer. A garota olhou para ela aquele dia e
começou a falar aquele monte de coisa. Nem chegou a me perguntar sobre a fita
em si. Quem sabe ela soubesse do que se tratava e tentou mudar de assunto. Quem
sabe.
Tem algo nessa fita que me atrai. Não seu
proprietário. Só sua mera existência. Eu me sinto nostálgico, de certa maneira,
ao olhar para essa fita.
Ligo
o estéreo na tomada e insiro a fita. O LCD azul se acende. Carregando, ele diz.
Três pontos em um ciclo eterno, surgindo e ressurgindo.
Tudo
se torna escuro.
Eu vejo, através da janela de meu
quarto, um poste de luz. A luz é de um amarelo intenso. Atrás de minha cabeça,
na parede, um retângulo amarelo. Luz em uma forma bidimensional. Um ventilador
no canto, em velocidade média, refresca o quarto. Todo o caminho para direita e
depois de volta para a esquerda. A TV na estante onde está o estéreo está
desligada. Em sua superfície, um reflexo do mundo envolto em escuridão. Não
posso ver nem a mim nem ao quarto na escuridão. Apenas a luz. Sempre a luz.
Eu
olho para a floresta na distância e digo para mim mesmo:
—
Eu deveria estar ali, não deveria?
Sim,
eu deveria. Uma torre de comunicação, uma luz vermelha piscando em seu topo, me
convidando. Tem algo bom aqui, você pergunta? Sim, tem, responde a luz
vermelha. Seu pai já a encontrou. Você pode encontrar também. O piscar é um
pouco estranho. Sem ritmo. Seria morse?
-.
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Não
tenha medo do infinito. A frase ecoa pela minha mente. Eu escuto, quieto, cada
palavra, cada nuance. Um tanto quanto complexa essa frase, na verdade.
Eu
me levanto da cama e, no escuro, caminho até a porta da frente. Quando saio, o
telefone ao lado do sofá toca. Três toques, um segundo, três toques. Eu fecho a
porta, ignorando a chamada. Eu sei quem esta ligando e a natureza de sua
chamada só pelo eco do toque. Ecoa longe demais. É um aviso. Eu não preciso de
avisos.
Três
toques curtos, três longos, três curtos.
SOS.
Em
pé na rua, olho para o céu. Nenhuma estrela hoje. Apenas escuridão. Uma parede
entre nós e a galáxia, uma parede impenetrável.
Eu
subo o morro ao lado da rua onde moro e viro a esquerda na terceira interseção.
Todas as casas com luzes apagadas. Ninguém a vista.
Uma
cerca de madeira. O portão está fechado com uma corrente enferrujada. Olho ao
meu redor. Uma pá encravada na terra, ao lado de uma cruz minúscula de tabuas
de madeira. Algum tipo de cova para cachorro? Não sei dizer. Parece grande
demais. Eu pego a pá e uso a ponta para quebrar a corrente. Ela cai ao chão com
um baque surdo. Eu jogo a pá no chão e abro o portão. A madeira estrala. Eu
entro na floresta, fechando o portão atrás de mim.
Não
há luz alguma por aqui. Sinto o aroma de folhas e frutas podres, um aroma doce,
mas nauseante. Arvores altas me cercam. Folhas caindo de suas copas, pousando
ao meu redor. Uma brisa tênue corre por aqui. Eu caminho em direção a torre,
para a esquerda. Com cada passo, o solo da floresta lamenta. Eu ouço cigarras e
corujas, de direções desconhecidas. Figuras negras correndo na distância. A lua
já não é mais visível.
Alcanço
a torre. A estrutura se estende até o céu, me provocando. Com cada lufada de
ar, o aço chora. A escada leva diretamente ao topo. Começo a subir. Não preciso
falar para mim mesmo “não olhe para baixo”. Me sinto confortável aqui.
Depois
de algum progresso, olho para a escuridão no horizonte. Alguma coisa parece
estar fazendo o mesmo. Me olhando do horizonte. Posso sentir um olhar. Mas,
ocasionalmente, sentimentos podem ser falsos. Eu continuo escalando.
Esse
é o nosso legado, filho, diz aquele que me observa. Sinto que é ele em meus
ouvidos. Me assegurando de nossa ligação, de nosso vinculo. Quando vivo,
escarneci dele. Tive culpa em sua morte. Mas agora, com a fita, posso falar
novamente com ele.
Longe,
o telefone continua tocando.
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Transição.
Que tipo? Um fade-out? Um wipe-para-esquerda? Em um sentido físico, existe
muito mais tipos, mais o que quer dizer em um sentido simbólico?
Nada,
diz a luz no topo da escada. Eu alcanço o topo e toco a lâmpada vermelha. É
quente. Como um abraço fraternal. Ela apenas pisca agora. Não tem mais nada
para dizer. Ao longe, posso ver minha casa. Bastante progresso em uma única
noite. Mais do que eu fiz em uma vida. A casa da garota também é visível. Queria
que ela estivesse aqui. Para poder saber que sua teoria estava certa.
Não
precisa, diz a luz vermelha, em uma última mensagem. Você vai estar eternizado
na consciência dela, da mesma maneira que eu estou nas sua.
Entendi.
Não tenho com o que me preocupar.
Eu
subo na grade e então pulo. Em meio a queda, além do vento, o mundo está
quieto. Na distância, o telefone me manda uma última mensagem:
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Uma
pena, realmente. Mas de uma maneira ou de outra, você encontrou uma
oportunidade válida para isso, não encontrou? Sim, encontrei pai. Obrigado pela
oportunidade de redenção.
Eu
caio no chão e quebro um braço, mas não morro.
Acordo em um hospital. Tubos me
asseguram um último resquício de vida. Não posso ver nada senão o branco da
lâmpada acima de minha cabeça. Percebo que não foi dessa vez. Acompanho os meus
batimentos cardíacos no aparelho ao meu lado. O que eles tem para dizer para
mim?
Ah,
sim. Muito obrigado.
Pelo
jeito, aquilo que quero já vem. Obrigado, novamente, pela oportunidade.
Fantasmas
realmente podem residir em fitas. Igual a mesma que ainda ressoa em meu quarto,
para toda a eternidade. Minha mãe já ouviu e a garota também. Todos nós temos
uma oportunidade, graças ao meu falecido pai. Você não precisa convencer mais,
minha amiga. Quando ouvir, vai saber que eu acreditei.
Inspirado por grandes obras do terror psicológico e realismo
mágico, M.D. Junior procura mesclar
o cotidiano com o fantástico e o aterrorizante por meio de uma atmosfera
surreal e alheia, transcrevendo não sonhos, mas sim histórias que são sonhos, que
decorrem a vista do próprio leitor. Inspirado pelo fantástico de Haruki
Murakami e pelo terror psicológico de grandes diretores como Kyoshi Kurosawa,
Hideo Nakata e Takashi Miike, procura trazer a suas histórias um viés
nostálgico e melancólico, como uma memória perdida que ressurge em meio a um
sonho.
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