A IMOBILIDADE - Conto Clássico de Morte e Mistério - Henri Barbusse
A
IMOBILIDADE
Henri
Barbusse
(1873
– 1935)
A
velha criada entrou esta manhã, como habitualmente, na casa de Michalon, e saiu
logo após como se fosse atirada à rua. Vi-a cair de joelhos no meio da rua do
povoado, com as faces alteradas e uma espécie de grito na garganta, que não
podia conter nem emitir.
Ah!
Não era sem razão que viera cair assim, ao largo, na rua, a velha e gorda
caseira, que tivemos de rodear para entrarmos. Do grande Michalon não se
distinguia, imediatamente, mais que as grandes pernas estendidas, saindo da
sombra acumulada embaixo da mesa, e as vastas solas dos sapatos dispostas
verticalmente sobre o ladrilho. É incrível até que ponto essas imensas solas,
"de pé" em terra, como dois postes, eram horripilantes de ver-se na
penumbra da sala!
Inclinamo-nos.
Pretendíamos ver embaixo da mesa, nesse terrível ninho de sombras. O corpo do
gigante estendia-se ali, negro como a terra sobre os ladrilhos untados de um
vermelho brilhante e fresco. O rosto? Estava oculto por um braço dobrado, cuja
mão se arrastava, molhada, sobre o assoalho.
Levantou-se
esse braço para descobrir o rosto.
—
Ainda não está rígido — disse alguém.
Na
verdade, o crime era recente, muito recente. Olhamos para a porta, lentamente,
obsedados pela confusa visão do assassino, esse homem espantoso! Imediatamente
voltamos os nossos olhos, ao mesmo tempo — porque estávamos unidos por uma
espécie de atração —, sobre o rosto, o rosto que, pouco a pouco, à medida que a
gente se acostumava à penumbra, aparecia a nossos pés.
Distinguimo-lo
mal. Ah! meus amigos, era porque não tinha mais forma!
Fora
dilacerado, achatado. Parecia deslocado e chato, a cara de um leão. Quando aproximamos
uma lanterna acesa, tudo brilhou. Não manifestava raiva, nem terror, nem angústia,
nada. Estava demasiado desfigurado para mostrar algo da agonia; não se sabia
que espécie de clamor ou de queixa continha a noite da sua boca. Afastamo-nos,
então, distanciando-nos da criatura tornada em monstro.
—E
o outro? — aventurou alguém.
O
outro? Estava ali, não havia dúvida, pois não se podia mover.
Com
efeito, percebemos logo, no canto habitual, sua cara pálida, pregada no
espaldar da cadeira, as mãos caindo sobre os braços da mesma. O paralítico! O
velho que vivia à custa de seu único parente o fim de uma existência passada em
outra parte, e que havia sido abatido pelo mal há um ano. Desde um ano,
totalmente inerte, vegetava, pregado em sua cadeira. O pouco de vida que lhe
restava era tenaz. Seu frágil alento permanecia fortemente agarrado a alguns
cantos de seu organismo, e um surdo tique-taque obstinado ritmava o deslizar de
sua respiração pela boca. Um reflexo azulado flutuava sobre seus olhos, e, de
tempo em tempo, um olhar parecia liquefazer-se em seu brando rosto esquálido. Via.
Talvez pensasse. Nada, porém, de mover um dedo sequer. Isso lhe era absolutamente
impossível! Era como um traje vazio nas mãos de uma criada.
—
Ah! — murmurei. — Ele viu. Ele sabe!
—
É verdade — disseram os outros, gesticulando.
Imaginem
o horror dessa morte perpetrada perto dele, que podia fazer a favor em defesa
do parente e benfeitor mais do que uma coisa, um objeto! E quem sabe se o
assassino teria visto esse meio morto sepultado fora da terra?...
Tais
eram as conclusões e conjecturas transtornadas que nos assaltavam a todos, pois
o povoado inteiro acudira sobre nossos passos.
Depois,
veio o juiz para a caça ao assassino. Não foi difícil encontrar o culpado. Não
tomara nenhuma precaução, deixando os indícios à vista. Era, sem dúvida, um
bruto. Tanto que, às duas da tarde, sem uma vacilação nas pesquisas, os
gendarmes o descobriram à beira de um bosque, e o prenderam. Trouxeram-no. Um
bruto, certamente, com seu dorso redondo, a cabeça eriçada de cabelos amarelos
e uma barba dura como cerdas de javali.
O
selvagem tentou grosseiramente simular a loucura com uma série de gestos
acompanhados de gritos inarticulados. Mas, acossado pelas provas, acabou baixando
a cabeçorra hirsuta, e calou-se. Quando lhe mostraram o porrete ensanguentado,
perdeu de todo a consciência e viram, de seus lábios trêmulos, a baba escorrer.
Entretanto, nada confessou. Tampouco consentiu em dizer, apesar das instâncias
da polícia, onde escondera o cofre de ferro que continha, como todos sabiam,
dinheiro.
Não importava. Nosso grande Michalon teria sido
do mesmo modo vingado se, no mesmo dia, uma presunção, depois duas, depois dez,
depois múltiplas provas não tivessem recaído sobre um cigano que passara pela
povoação na noite fatal, a uma hora que coincidia com as ilações do juiz sobre
o crime. Então? O outro era um verdadeiro idiota A opinião voltou-se a seu favor.
Mas as coisas se complicaram tanto e tão bem, que nunca se soube qual dos dois
era o culpado. Do cofre, nem sombra de indício.
Para
mim, essa incerteza a respeito do autor do crime entrou a perturbar-me
singularmente. Tomei o caso a peito, presa do desejo, depois da paixão, de
conhecer a verdade...
Entretanto,
nem minha boa vontade, nem minhas investigações pessoais deram resultado, e me
vi obrigado a resignar-me, tal como o juiz, a abandonar o misterioso problema.
Fi-lo com tão má sorte que minha saúde e até meu caráter se ressentiram...
Tornei-me
nervoso! Isso explica a imprudência que me induziu, alguns dias mais tarde, a
açoitar meu cavalo, o irritadiço Pierrô, com toda força, numa noite em que
voltava à casa de cabriolé. Noite que, para maior azar, apanhou um temporal
terrível, com trombas de água e relâmpagos aterradores.
O
que tinha de acontecer aconteceu, no último quilômetro, à vista das casas: Pierrô
tomou o freio nos dentes e disparou como louco. Rocei, aterrado, as paredes...
Saltar? De repente, um choque espantoso, seguido de um jorro de luz na treva.
Pareceu-me que houvera um desmoronamento e, antes de ser arremessado longe, vi!
Permaneci
no chão, espantado, aturdido... Não pelo arranco, nem pelo susto de haver
roçado pela morte. Era pelo que eu tinha visto! O choque do cabriolé escancarara
uma janela e, por essa chaga aberta, meus olhos tinham devassado um quarto...
Vi
um homem de pé, inclinado sobre um cofre guarnecido de ferro, no qual suas mãos
remexiam moedas de ouro. Vi, ao ruído da janela violentada, estremecer o dorso
largo desse homem, e sua mão adiantar-se para um porrete nodoso, que era meu
conhecido. Vi, sobretudo, sua cara pálida, na qual se estendiam os reflexos
amarelados do ouro. Sim, o sopro do furacão não apagou a lâmpada tão depressa
que não pudesse ter visto essa cara.
O
paralítico! Era o assassino! Era o estranho, o sobrenatural simulador, autor do
mais complicado e infernal dos crimes. Era o monstro cujo heroísmo e paciência
tinham desempenhado, durante um ano, dia a dia, imperturbavelmente, o papel
sinistro de uma coisa inerte! E, um instante aturdido por meus pensamentos,
fiquei imóvel, porque ali estava ele, ele, cuja imobilidade venceu e triunfou,
como a dos ídolos e como a da terra.
Fonte: “A Noite
Ilustrada”, edição de 7 de setembro de 1943.
Tradução de autor
desconhecido do séc. XX.
Ilustração de Jerônimo
Ribeiro.
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