A MISSA DAS SOMBRAS - Conto Clássico Fantástico - Anatole France
A
MISSA DAS SOMBRAS
Anatole
France
(1844
– 1924)
Eis
que o que o sacristão da igreja de Santa Eulália, em Neuville-d'Anmont, me
contou debaixo da marquise do Cavalo-Branco, numa bela noite de verão, bebendo
uma garrafa de velho vinho à saúde de um morto muito abastado que ele havia
enterrado honrosamente naquela manhã mesma, sob um tecido cheio de belas
lágrimas de prata.
—
Meu finado e pobre pai (quem fala é o sacristão) foi, em vida, coveiro. Era de
humor agradável, e isso sem dúvida decorria de sua profissão, porque se tem
reparado que as pessoas que trabalham nos cemitérios possuem espírito jovial. A
morte não os atemoriza absolutamente: jamais se preocupam com ela. Eu, que lhe
estou falando, senhor, penetro num cemitério, à noite, tão serenamente quanto
no caramanchão do Cavalo-Branco. E se, por acaso, encontro um espectro, não me
inquieto absolutamente com isso, porque reflito que ele pode perfeitamente ir
cuidar de seus negócios, da mesma forma que eu dos meus. Conheço os hábitos dos
mortos e seu caráter. Sei a tal respeito coisas que os próprios sacerdotes
ignoram. E o senhor ficaria surpreso se lhe contasse tudo o que tenho visto.
Mas nem todas as verdades são próprias para serem contadas, e meu pai — que,
todavia, gostava de narrar histórias — não revelou a vigésima parte do que
sabia. Em compensação, repetia muitas vezes as mesmas narrativas e, ao que eu
saiba, relatou bem umas cem vezes a aventura de Catarina Fontaine.
Catarina
Fontaine era uma velha senhorita que ele se lembrava de ter visto em criança.
Não me surpreenderia se ainda houvesse na região até uns três anciões que ainda
se recordem de ter ouvido falar a seu respeito, porque ela era muito conhecida
e considerada, embora pobre. Morava na esquina da rua das Freiras, na
torrezinha que o senhor ainda pode ver, e que depende de um velho palacete,
meio arruinado, que dá para o jardim das Ursulinas. Há nessa torrezinha figuras
e inscrições meio apagadas. O falecido pároco de Santa Eulália, Levasseur,
dizia aí estar escrito em latim que o
amor é mais forte que a morte. O que se refere — acrescentava — ao amor
divino.
Catarina
Fontaine vivia sozinha nessa pequena habitação. Fazia rendas. O senhor sabe que
as rendas de nossa região eram, antigamente, muito afamadas. Não se conheciam
parentes ou amigos seus. Dizia-se que amara, aos dezoito anos, o jovem
cavaleiro d'Aumont-Cléry, com quem noivara secretamente. Mas as pessoas de bem
não queriam acreditar absolutamente nisso e diziam tratar-se de uma história
que fora imaginada porque Catarina Fontaine lembrava mais uma senhora que uma
operária, conservava sob seus cabelos brancos os vestígios de uma grande
beleza, possuía um ar triste e que se lhe podia ver na mão um desses anéis em
que o ourives colocou duas mãozinhas unidas, e que era costume outrora os
noivos trocarem. O senhor saberá, daqui a pouco, o que isso significava.
Catarina
Fontaine vivia santamente. Frequentava as igrejas e, todas as manhãs, qualquer
fosse o tempo, ia ouvir a missa de seis horas em Santa Eulália.
Ora,
uma noite de dezembro, quando ela estava deitada em seu pequeno quarto, foi
despertada pelo toque dos sinos. Certa de estarem eles anunciando a primeira
missa, a piedosa senhora vestiu-se e desceu à rua, onde a noite era tão fechada
que não se viam absolutamente as casas e que claridade alguma era perceptível
no céu negro. E reinava tamanho silêncio nessas trevas — nem mesmo um cão
ladrava ao longe — que a pessoa se sentia completamente separada do mundo dos
vivos. Mas Catarina Foutaine — que conhecia cada uma das pedras onde pisava, e
que podia ir à igreja de olhos fechados — alcançou sem dificuldade a esquina da
rua das Freiras com a rua da Paróquia, no ponto onde se ergue a casa de madeira
que exibe uma árvore de Jessé esculpida numa volumosa trave. Tendo alcançado
esse local, ela viu que as portas da igreja estavam abertas e que deixavam sair
uma grande claridade de círios. Continuou a caminhar e, tendo entrado,
encontrou-se numa grande reunião que enchia a igreja. Ela, porém, não
reconhecia nenhum dos presentes, e estava surpresa ao ver todas aquelas pessoas
trajadas de veludo e de brocado, com plumas no chapéu e trazendo espada, à
maneira dos tempos de outrora. Havia senhores que seguravam bengalas de castão
de ouro e damas com toucados de rendas presos com um pente em diadema.
Cavaleiros de S. Luís davam a mão a essas senhoras, que escondiam atrás do
leque um rosto pintado, do qual só era visível a têmpora empoada e um sinal no
canto dos olhos. E todos iam colocar-se em seu lugar sem o menor ruído, e não
se ouviam, enquanto andavam, nem o som dos passos no lajedo, nem o roçar dos
tecidos. As naves laterais enchiam-se de multidão de jovens artesãos, de casaco
pardo, calções de fustão e meias azuis, que seguravam pela cintura moças
lindíssimas, rosadas, que conservavam os olhos baixos. E, junto às pias de água
benta, camponesas de saia vermelha e corpinho de atar, sentavam-se no chão com
a tranquilidade dos animais domésticos, enquanto uns mocetões, de pé atrás
delas, arregalavam os olhos rodando o chapéu nos dedos. E todas aquelas
fisionomias silenciosas pareciam imobilizadas para sempre, no mesmo pensamento,
suave e triste. Ajoelhada em seu lugar costumeiro, Catarina Fontaine viu o sacerdote
caminhar para o altar, precedido por dois acólitos. Não reconheceu nem o
sacerdote, nem os ajudantes. Começou a missa. Era uma silenciosa missa na qual
não se ouvia absolutamente o som dos lábios que se agitavam, nem o rumor da
sineta agitada inutilmente. Catarina Fontaine sentia-se sob o olhar e sob a
influência de seu misterioso vizinho e, tendo olhado sem quase volver a cabeça,
reconheceu o jovem cavaleiro d'Aumont-Clery, que a havia amado e que morrera
fazia quarenta e cinco anos. Reconheceu-o por um sinalzinho que ele possuía sob
a orelha esquerda e, principalmente, pelo sombreado dos longos cílios negros em
seu rosto. Vestia o traje de caça, vermelho, com alamares dourados, que ele
usava no dia em que, tendo-a encontrado no bosque de S. Leonardo, pedira-lhe de
beber e roubara-lhe um beijo. Conservava a sua mocidade e seu bom aspecto. Seu
sorriso ainda mostrava uma dentadura de jovem lobo. Catarina disse-lhe
baixinho:
—
Senhor, vós que fostes meu amigo e a quem dei outrora o que uma jovem possui de
mais precioso, Deus vos tenha em sua graça! Possa Ele me inspirar, finalmente,
o pesar pelo pecado que cometi convosco; porque é verdade que, de cabelos
brancos e próxima da morte, não me arrependo de vos ter amado. Mas, finado
amigo, meu belo senhor, dizei-me quem são essas pessoas trajadas à maneira
antiga, que estão assistindo aqui a esta silenciosa missa.
O
cavaleiro d'Aumont-Clery respondeu com uma voz mais débil que um sopro e, não
obstante, mais clara que o cristal:
—
Catarina, esses homens e essas mulheres são almas do purgatório que ofenderam a
Deus, pecando a nosso exemplo, pelo amor das criaturas, mas que nem por isso
estão desligadas de Deus, porque seu pecado foi, a exemplo do nosso, sem
maldade. Enquanto, separadas daquele que amavam sobre a terra, elas se
purificam do fogo lustral do purgatório, padecem as dores da ausência, e para
eles esse sofrimento é o mais cruel. São tão infelizes que um anjo do céu se
apieda de seu martírio de amor. Com o consentimento de Deus, ele reúne, todos
os anos, durante uma hora da noite, o amigo à amiga em sua igreja paroquial,
onde lhes é permitido assistir à missa das sombras, segurando-se pela mão. Esta
é a verdade. Se me foi permitido ver-te aqui, antes de tua morte, Catarina, tal
coisa não se realizou sem a permissão de Deus.
E
Catarina Fontaine lhe respondeu:
—
Bem desejaria morrer para voltar a ser formosa como nos dias, meu finado
senhor, em que te dava de beber na floresta.
Enquanto
falavam assim, baixinho, um cônego muito idoso recolhia as esmolas e apresentava
uma grande salva de cobre aos presentes, que aí deixavam cair sucessivamente
moedas antigas, há muito tempo fora de circulação: escudos de seis libras,
florins, ducados e ducadões, jacobos, nobres com a rosa, e as moedas caíam em
silêncio. Quando a salva de cobre lhe foi apresentada, o cavaleiro depositou um
luís que não fez mais ruído que as outras moedas de ouro ou de prata.
Depois,
o velho cônego parou em frente a Catarina Fontaine, que procurou em seu bolso,
sem nele encontrar um real. Então, não desejando recusar sua dádiva, tirou do
dedo o anel que o cavaleiro lhe dera na véspera de sua morte e atirou-o na
concha de cobre. O anel de ouro, ao cair, ressoou como pesado badalo de sino e,
ao ruído atroador que ele fez, o cavaleiro, o cônego, oficiante, os acólitos,
as damas, os demais cavaleiros, toda a assistência desapareceu. Os círios se
apagaram e Catarina Fontaine ficou sozinha nas trevas.
Tendo
concluído assim a sua narrativa, o sacristão bebeu um grande copo de vinho,
ficou um instante a meditar e depois prosseguiu nestes termos:
—
Contei-lhe esta história exatamente como a ouvi muitas vezes de meu pai e creio
que é verdadeira porque corresponde a tudo o que tenho observado das maneiras e
dos costumes peculiares aos defuntos.
Convivi
muito com os mortos desde minha infância e sei que eles costumam voltar a seus
amores.
É
por isso que os mortos avarentos vagam, à noite, nas proximidades dos tesouros
que eles esconderam durante sua vida. Montam boa guarda à volta de seu ouro. Mas
os cuidados que eles tomam, longe de lhes servirem, prejudicam-nos, e não é
raro descobrir-se dinheiro enterrado na terra, pesquisando-se o sítio
frequentado por um fantasma. Da mesma forma, os finados maridos vêm atormentar,
à noite, suas mulheres casadas em segundas núpcias, e eu poderia indicar muitos
que vigiaram melhor suas esposas depois de mortos do que o haviam feito em
vida.
Esses
são dignos de censura, porque, em boa justiça, os defuntos não deveriam ser
ciumentos. Mas lhe estou contando o que tenho observado. Por isso é que se deve
ter cuidado quando se desposa uma viúva. Aliás, a história que lhe relatei tem
sua comprovação no seguinte fato: na manhã seguinte a essa noite
extraordinária, Catarina Fontaine foi encontrada morta em seu quarto. E o suíço
de Santa Eulália encontrou, na salva de cobre que servia para o peditório, um
anel de ouro com duas mãos juntas. Aliás, não sou homem que conte histórias
para fazer rir. E se pedíssemos outra garrafa de vinho?...
Fonte: Jornal de
Notícias, edição de 31 de outubro de 1948.
Tradução de autor
desconhecido do século XX
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