A NOVA CATACUMBA - Conto Clássico de Horror - Arthur Conan Doyle
A NOVA CATACUMBA
Conan
Doyle
(1859 - 1930)
(1859 - 1930)
—Vamos,
Burger! — disse Kennedy. — Quero crer que você confia plenamente
em mim!
Os dois famosos estudiosos de antiguidades romanas
estavam sentados no confortável aposento de Kennedy, que dava para o Corso.
A noite estava fria e ambos tinham puxado as
cadeiras para junto de um desses incômodos aquecedores italianos, cujas irradiações
abafam em vez de aquecer.
Lá fora, sob as cintilantes estrelas do inverno,
estendia-se a Roma moderna: a longa fila dupla das lâmpadas elétricas, os cafés
brilhantemente iluminados, o desfile dos carros e a densa multidão nos
passeios.
Mas, dentro do suntuoso aposento do jovem arqueólogo
inglês, só se encontravam objetos e recordações da antiga Roma.
Velhos frisos rachados e gastos pelo tempo estavam pendurados
nas paredes e antigos bustos pardos de senadores e soldados, de figura áspera e
cruel, achavam-se dispostos pelos cantos.
Na mesa do centro, entre um sem-número de
inscrições, fragmentos e ornamentos, estava a famosa reconstituição feita por
Kennedy das Termas de Caracala, que excitou tanto interesse e admiração quando
exibida em Berlim. Ânforas pendiam do teto e, sobre um rico tapete vermelho da
Turquia, espalhavam-se uma porção de curiosidades diversas.
Não havia, entre elas, uma só que não fosse da mais
inatacável autenticidade e da mais preciosa raridade, pois Kennedy, apesar de mal
ter passado os trinta anos de idade, tinha já uma reputação europeia em matéria
arqueológica e possuía, além disso, uma grande fortuna, algo que se torna uma
fatal destruidora das energias de um estudioso, ou, ao contrário, se a vocação
é decidida, lhe oferece uma vantagem enorme em sua carreira para a glória.
O capricho e o prazer haviam afastado frequentemente
Kennedy de seus estudos, mas o seu espirito lúcido era capaz de longos e
concentrados esforços, que acabavam com agudas reações ao langor sensual.
Seu rosto — de fronte ampla e clara, de nariz agressivo
e de boca um tanto larga e sensual — era uma indicação da mistura da força e da
fraqueza de seu temperamento.
O seu companheiro Julius Burger era um tipo muito
diferente.
Nascido de uma curiosa mestiçagem — pai alemão e mãe italiana —, tinha as
robustas qualidades do Norte combinadas, de um modo bizarro, com a sutil
graciosidade do Sul.
Olhos de azul teutônico iluminavam-lhe o rosto curtido
de sol, e acima deles abria-se uma testa
quadrada, orlada por uma maciça franja de cabelos de um louro pálido. O queixo
escanhoado era forte e proeminente.
O seu camarada tinha notado, muitas vezes, o quanto
ele lembrava aqueles velhos bustos romanos, que emergiam da sombra dos cantos
do quarto. Pressentia-se a sutileza do italiano sob a sua constituição forte de
germano, mas o seu sorriso era tão leal e seus olhos tão francos que a gente
era levada a considerar isso apenas como um traço atávico, sem projeção real sobre
o seu caráter.
Era da mesma idade de Kennedy e tinha igual
reputação, mas a sua vida e os seus estudos haviam sido muito mais árduos.
Chegara a Roma, havia 12 anos, como um pobre estudante,
e tinha vivido sempre, desde então, de uma pequena bolsa para pesquisas que a Universidade
de Bonn lhe havia concedido
Penosamente, lentamente, com extraordinária tenacidade
e singular disposição de espírito, subira, um a um, os degraus da fama, até se
tornar membro da Academia de Berlim, e havia toda a razão de crer que seria,
dentro em pouco, elevado a catedrático da maior das Universidades alemãs. Mas,
se na ciência comum se tinha elevado ao mesmo nível que o rico e brilhante
inglês, em tudo mais, que não fosse da natureza do seu trabalho, ele ficava muito
abaixo deste.
Nunca encontrara, em seus estudos, uma folga para
cultivar a vida social, e se, alguma vez, a sua face se iluminava com vida e
alma, era justamente quando falava de assuntos relacionados a seus estudos.
Fora disso, era silencioso e embaraçado, convencido de
que eram muito limitados os seus conhecimentos em outros assuntos e inapto para
essas banalidades que constituem o refúgio convencional daqueles que não têm
pensamentos a exprimir.
No entanto, há alguns anos, uma camaradagem, que
parecia pouco a pouco mudar-se em amizade sólida, existia entre esses dois tão
diversos êmulos.
O fundamento e a origem disso estavam em que, em
seus estudos respectivos, cada um era o único dos moços de então que tinha
bastante erudição e bastante entusiasmo para apreciar com justiça o outro.
Os seus interesses comuns e as suas pesquisas os
haviam aproximado e ambos se sentiam atraídos pelos seus conhecimentos
recíprocos.
Uma outra razão juntou-se, pouco a pouco, a estas.
Kennedy tinha-se interessado pela franqueza e pela
simplicidade de Burger, enquanto este se sentia fascinado pelo brilho e pela
vivacidade que tinham feito de Kennedy um favorito da sociedade romana.
E digo "tinham” porque, nesse momento, o jovem
inglês estava um pouco comprometido.
Um caso de amor — cujos detalhes nunca se conheceram
inteiramente — havia indicado, de sua parte, dureza de coração e
insensibilidade que chocaram muitos dos seus amigos.
Mas, nas rodas de artistas e de estudantes que ele
de preferência frequentava, o código de honra não era muito rígido nesses
assuntos de amor e, se bem que algumas cabeças se tivessem voltado e alguns
ombros se tivessem levantado ao ser contada a fuga de dois amantes e a volta de
um só, o sentimento geral era provavelmente apenas de curiosidade e, talvez,
mais de inveja do que de reprovação.
— Olhe, Burger — disse Kennedy, cravando o olhar na
fisionomia plácida do companheiro —, eu desejaria que você depositasse toda a
confiança em mim.
E, enquanto falava, apontava com a mão um tapete estendido
sobre o assoalho. Sobre o tapete estava um desses cumpridos e baixos cestos de
frutas feitos de vime e usados na Campânia, cheio de objetos diferentes: telas
com inscrições meio apagadas, mosaicos quebrados, papiros rasgados, ornamentos
de metal oxidado, que aos leigos pareceriam ter vindo em linha reta da lata do
um varredor de rua, mas que um especialista reconheceria imediatamente como
únicos em seu gênero.
A pilha dessas
velharias e trapos, encerrados no cesto do vime, constituía exatamente um desses
anéis que faltam à cadeia do desenvolvimento social e que são de tanto interesse
para os eruditos.
Fora o alemão que os trouxera e os olhos do inglês,
ao contemplá-los, faiscavam de cobiça.
—Eu não quero me aproveitar do seu achado precioso,
mas gostaria imensamente de ouvi-lo a respeito — continuou ele, enquanto
Burger, muito deliberadamente, acendia um charuto. — É, evidentemente, uma
descoberta da máxima importância. Essas inscrições vão causar sensação em toda
a Europa.
— De cada uma dessas que eu trouxe existem milhões
lá de onde as tirei —disse o alemão. — Há tanto que uma dúzia de sábios poderia
gastar no estudo delas uma existência inteira e adquirir com isso uma reputação
tão sólida quanto o castelo de Santo Ângelo.
Kennedy ficou pensativo, com a fronte enrugada,
cofiando distraidamente o seu longo bigode louro.
— Você se traiu, Burger — disse por fim. —As suas
palavras só podem indicar uma coisa: você descobriu uma nova catacumba.
— Eu não tinha dúvida que você, examinando esses
objetos, chegaria a essa conclusão.
— De fato, eles levavam a essa opinião, e as suas últimas
palavras dão-me a certeza disso. Não há, exceto uma catacumba, lugar que possa
encerrar uma coleção tão vasta de relíquias como esta a que você acaba de se
referir.
— Com efeito, quanto a isso não há dúvida: sim, acabo
de descobrir uma catacumba.
— Onde?
— Nisto está o meu segredo, meu caro Kennedy.
Basta-lhe saber que está de tal modo situada que não há uma probabilidade sobre
mil de que alguém mais possa dar com ela. A sua data é diversa da de todas as
outras conhecidas e ela foi consagrada a ser a sepultura dos cristãos de alta
hierarquia, de modo que os seus destroços e as suas relíquias são inteiramente
diferentes das que anteriormente se têm visto. Se eu não conhecesse a sua
erudição e a sua energia, meu amigo, não hesitaria em confiar-lhe, sob a
condição de absoluto segredo, mais alguma coisa a respeito dela. Mas acho
preferível fazer o meu relatório sobre o caso antes de me expor a um tão
formidável competidor.
Kennedy amava os seus estudos arqueológicos com um
amor que era antes uma loucura, um amor que o absorvia inteiramente no meio de
todas as distrações que assaltam um homem novo, sadio e rico.
Ele tinha ambição, é certo. Mas essa mesma ambição
era secundária diante do simples prazer abstrato e do interesse por tudo que
concernia à vida antiga e à história da Cidade Eterna.
Ardia já por poder ver este novo mundo subterrâneo
descoberto pelo seu companheiro.
— Olhe, Burger — disse ele gravemente. — Asseguro
que você pode ter absoluta confiança em mim neste assunto. Nada me levaria a
escrever uma linha sequer sobre qualquer coisa que eu visse sem ter antes
permissão sua. Compreendo muito bem os seus sentimentos, que julgo muito
naturais. Mas você, na verdade, nada tem que recear de minha parte. Por outro
lado, se você não me disser nada, eu poderei fazer uma pesquisa sistemática e,
com certeza, acabarei por descobrir a catacumba. Neste caso, poderia, está bem
visto, fazer dela o uso que me aprouvesse, uma vez que eu não teria nenhuma
obrigação para com você.
Burger sorriu, acompanhando as espirais de fumaça do
seu charuto.
— Tenho notado, amigo Kennedy, que, quando preciso
de informações sobre um caso qualquer, você nem sempre está pronto a me
fornecer.
— Quando foi que você me perguntou alguma coisa que
eu não lhe tivesse dito? Lembre-se, por exemplo, que lhe dei o material para o
seu relatório sobre o templo das Vestais.
— Ah, sim! Mas isto não era coisa de muita
importância. Se, porventura, eu lhe interrogasse sobre algumas coisas íntimas,
você seria capaz de me responder? Faço ideia. Esta nova catacumba é para mim
uma coisa muito intima, e eu desejaria em troca alguma prova da mesma
confiança.
— Não posso saber a que ponto você chegar — disse o
inglês —, mas, se você se propõe a responder as minhas perguntas sobre a
catacumba, desde que eu responda a quaisquer perguntas que você me faça, asseguro-lhe
que assim farei.
—Bem — disse Burger, estendendo-se voluptuosamente
na cadeira e soltando uma baforada azul do seu charuto —, conte-me as suas
relações com Miss Mary Saunderson.
Kennedy saltou da cadeira e cravou sobre o
impassível companheiro um olhar colérico.
— Que diabo quer você?! —gritou. — Que espécie de
pergunta é essa?! Pode ser que você a faça por brincadeira, mas olhe que é de
muito mau gosto!
— Não, não é por brincadeira — disse Burger, com
simplicidade. — Estou de fato muito interessado pelas minúcias do seu caso de
amor. Eu pouco sei acerca do mundo, das mulheres, da vida social e desse gênero
de coisas. E um tal incidente exerce sobre mim a fascinação do desconhecido. Eu
o conheço e conheci-a de vista. E tinha mesmo chegado a falar com ela uma duas
vezes. Portanto, estimaria muito ouvir dos seus próprios lábios o que foi que
aconteceu entre vocês dois.
— Não lhe direi nem uma só palavra.
— Perfeitamente. Isto foi apenas uma fantasia da
minha parte para ver se você confiaria um segredo com a mesma facilidade com
que esperava que eu lhe contasse o segredo da nova catacumba. Você não quis e
eu não esperava outra coisa de sua parte. Mas por que haveria de esperar outra
atitude de minha parte em relação a você? Na torre de São João batem 10 horas.
É tempo de voltar para casa.
— Ainda não. E espere um instante — disse Kennedy.
—É realmente um capricho ridículo seu o de querer conhecer uma velha intriga de
amor extinta há vários meses. Você sabe perfeitamente que é comum considerar
como o maior covarde e vilão todo o homem que, depois de beijar uma mulher, vai,
em seguida, contar o que fez.
— Certamente — disse o alemão, retomando o seu cesto
de curiosidades. — Quando ele conta alguma coisa que diz respeito a uma jovem
anteriormente desconhecida deve ser assim. Mas, no caso, como você deve saber,
a aventura foi pública e tornou-se o assunto de conversas em Roma, de modo que
você não causará nenhum mal a Miss Mary
Saunderson conversando comigo sobre esse caso. Mas, enfim, respeito os seus
escrúpulos. Boa noite, Kennedy!
— Espere um instante, Burger — disse Kennedy,
tomando-o pelo braço. — Estou fascinado por esses objetos da catacumba e não
posso renunciar tão facilmente. Pergunte-me alguma coisa mais em troca da sua
confidencia... alguma coisa... de menos excêntrico desta vez.
— Não, não. Você recusou e está acabado — respondeu
Burger, com o cesto no braço. — Não há dúvida que você está no seu direito não
respondendo e não há dúvida que eu também estou no meu. E assim sendo, meu caro
Kennedy, boa noite.
O inglês olhou Burger atravessar o aposento. Mas,
quando o viu colocar a mão na maçaneta da porta, saltou para ele com o ar de um
homem que não tem remédio senão se mostrar condescendente.
— Espere, meu amigo — disse. — Você me parece muito
ridículo, mas, afinal, se é esta a sua condição, suponho que a ela me devo
submeter. Aborrece-me falar dessa moça, mas, uma vez que todos em Roma conhecem
o caso, não creio que lhe possa dizer alguma coisa que você já não saiba. Que é
que você quer saber?
O alemão aproximou-se do aquecedor e, pousando no
chão o seu cesto, sentou-se de novo.
— Pode dar-me um outro charuto? — disse. — Muito
obrigado. Nunca fumo quando trabalho. Mas aprecio mais uma conversa quando
estou sob a influência do fumo. Agora, em relação àquela moça, com quem você
teve essa pequena aventura, o que é feito dela?
— Está na casa da família.
— Sim, com efeito, na Inglaterra?
— Sim.
— Em que lugar da Inglaterra? Em Londres?
—Não. Em Twickenham.
— Desculpe a minha curiosidade, meu caro Kennedy,
mas pode atribuí-la à minha ignorância do mundo. Sem dúvida, é uma coisa comum
persuadir uma moça a andar com uma pessoa três ou mais semanas e em seguida
entregá-la à sua família em... como é que se chama o lugar?
— Twickenham.
— Perfeitamente. Em Twickenham. Más há alguma coisa
tão fora da minha própria experiência que não posso imaginar como você se houve
em relação a isso. Por exemplo: se você tivesse amado essa moça, o seu amor
dificilmente poderia desaparecer em três semanas, e, assim, presumo que você
jamais poderia tê-la amado. Mas, se você não a amou, por que fez esse grande escândalo,
que a você mesmo prejudicou e a ela arruinou a reputação?
Kennedy olhou tristemente para os olhos de fogo do
aquecedor.
— Este é, não há dúvida, um modo lógico de
considerar o caso — disse ele. — Amor é uma grande palavra e representa uma série
de tonalidades diferentes do sentimento. Ela me agradava, e você, que diz que a
viu, deve saber o quanto era encantadora às vezes. Mas enfim, examinando bem o
caso, sou levado a admitir que nunca lhe tive verdadeiro amor.
— Então, para que fazer o que você fez?
— A natureza da aventura me atraía extraordinariamente.
— Quê! Você é assim tão ávido de aventuras?
— Onde
estaria, sem elas, a variedade da vida? Foi por um acaso que comecei a prestar atenção
à pessoa dela. Tenho caçado muita caça boa em minha vida, mas não há caçada que
mais me tente que a de uma mulher bonita. Atraía-me, também, o fato de que, sendo
ela dama de companhia de Lady
Emily Rood, era quase impossível abordá-la. Porém, mais que todos esses
obstáculos, fascinava-me um outro, que soube dos seus próprios lábios, desde
que nos conhecemos: ela era noiva.
— Mein Gott[1]
De quem?!
— Nunca me disse o nome.
— Creio que ninguém conhece este pormenor. Então,
segundo você, isso tornava mais tentadora a aventura?
— Decerto, era um estimulante a mais. Não acha?
— Eu entendo tão pouco dessas coisas...
— Meu caro, lembre-se de que a maçã roubada à árvore
do vizinho é sempre mais saborosa que a colhida no próprio pomar. Demais, eu
percebi que ela só inclinava para mim.
—Como?! Desde o começo?
—Ah, não! Foram
precisos três meses de pertinaz investida. Mas, por fim, consegui. Ela
compreendeu que a minha separação judicial de minha mulher impedia-me de casar,
mas entregou-se a mim do mesmo modo, e passamos ambos uma temporada deliciosa
enquanto as coisas duraram.
— E o outro, o noivo?
Kennedy levantou os ombros.
— Neste mundo, a vitória é dos mais capazes. Se ele
fosse mais agradável, ela não o teria abandonado. Mas, mudemos de assunto, meu
caro, pois já estou farto deste.
— Ainda uma coisa, apenas. Como é que em três
semanas você se aborreceu dela?
— De um lado e de outro, o ardor foi diminuindo, sabe?
Ela não queria, por nada deste mundo, voltar a viver em Roma, onde era
conhecida. Ora, Roma me é necessária e eu já estava aborrecido de me achar fora
de meus estudos. Já aí estava uma causa evidente de separação. Além disso, o
pai dela foi ao nosso encalço em um hotel de Londres. Houve aí uma cena terrível
e a nossa situação tornou-se tão desagradável que — embora a princípio muito me
tenha custado — dei graças a Deus, mais tarde, de me ver livre. Conto que você
não repita a ninguém o que lhe disse.
— Meu caro Kennedy, não me poderia passar pela ideia
o desejo de o repetir. Tudo que você me contou interessa-me muito, porque
serviu para mostrar o seu modo de encarar as coisas, inteiramente diverso do
meu. Conheço tão pouco a vida... Agora você precisa saber alguma coisa da minha
nova catacumba. Não vale a pena dizer-lhe onde fica, porque nunca a
encontraria. O melhor é eu conduzi-lo até lá.
— Será magnífico.
— Quando quer ir?
— Quanto antes, melhor. Estou impaciente por vê-la.
— Bem, a noite está esplêndida, embora um pouco
fria. Podemos partir daqui a uma hora. Precisamos ter todo o cuidado para que não nos percebam. Se alguém nos visse
caminhando juntos, suspeitaria logo de alguma coisa.
— Quanto mais cautela, melhor — disse Kennedy. — É
longe?
— Algumas milhas.
— Pode-se ir a pé?
— Muito facilmente.
— É melhor assim, decerto. As suspeitas de um
cocheiro podiam ser levantadas se ele
nos deixasse em algum lugar solitário altas horas da noite.
— Exatamente. Acho melhor encontrarmo-nos à meia-noite
em ponto na porta da Via Ápia. Vou à minha casa buscar fósforos, lanternas e
outros objetos necessários.
— Muito bem, Burger. É muita bondade sua fazer-me
participar desse segredo, e eu prometo que nada revelarei sobre ele antes de você
publicar o seu relatório. Até logo! À meia-noite, estarei na porta.
*
O ar frio e leve
enchia-se do repique musical dos sinos daquela cidade
de campanários quando Burger, embrulhado em um sobretudo italiano e com uma lanterna
na mão, dirigiu-se para o lugar combinado.
Kennedy saiu da escuridão ao seu encontro.
— Você é tão ardoroso no trabalho quanto no amor — disse-lhe
o alemão, rindo.
— É verdade. Estou à sua espera há cerca de meia
hora.
— Creio que você não disse a ninguém para onde
vamos.
— Eu não sou tão insensato! Por Deus, estou gelado
até os ossos. Vamos depressa, Burger, para nos aquecermos com a marcha.
As suas passadas ressoavam pesadas e rápidas sobre a
pedra desigual do passeio da velha estrada, que foi, outrora, a mais famosa do
mundo.
Um ou dois camponeses regressando da taverna e
algumas carroças de legumes e cereais em caminho para Roma foi tudo quanto
encontraram.
Voltearam adiante os túmulos enormes avultando na
treva de um lado o de outro, até chegarem à altura das catacumbas de São
Calisto e aparecer-lhes em frente, batido da Lua, o grande monumento circular
de Cecília Metela[2].
Então, Burger parou com a mão na cintura.
— As suas pernas são mais compridas que as minhas e
você está mais acostumado do que eu a caminhar — disse ele, rindo. — Penso que
é por aqui o lugar em que temos de virar. Sim, é aqui mesmo, no canto da
calçada. Agora o caminho é muito estreito e é melhor que eu vá adiante, e que
você me acompanhe.
Ele havia acendido a lanterna. Guiados pela luz,
podiam seguir uma trilha estreita e sinuosa que serpeava pelos pântanos da
Campânia. O grande aqueduto da velha Roma jazia como uma monstruosa lagarta
estendida sobre a planície enluarada. O caminho levava-os para baixo de um dos
grandes arcos do aqueduto e eles passaram o montão de destroços que assinam a
antiga arena.
Por fim, Burger parou diante de um estábulo
abandonado e tirou do bolso uma chave.
— Quero crer — disse Kennedy— que a sua catacumba
não é dentro de uma casa...
— Mas a entrada dela é. E é isto justamente que nos
preserva de que alguém mais possa descobri-la.
— O dono do estábulo sabe de alguma coisa?
— Ele? Não. Ele achou um ou dois objetos e eu,
vendo-os, tive, desde logo, a convicção de que a sua casa devia ter sido
construída à entrada de uma catacumba. Aluguei, pois, o estábulo e procedi, eu
mesmo, às escavações. Entre e feche a porta.
Era uma construção comprida e vazia, tendo apenas ao
longo de uma das paredes as manjedouras dos animais.
Burger pousou no chão a lanterna e colocou em volta
o seu sobretudo, de modo a vedar a luz para todos os lados, exceto um.
— Podia — disse — dar na vista se alguém notasse luz
neste lugar solitário. Agora, ajude-me a levantar essas tábuas.
O assoalho estava despregado nos cantos e os dois arqueólogos
levantaram-no tábua a tábua, encostando-as à parede. Por baixo dele, havia uma
abertura quadrada e uma escada de degraus de pedra denegrida que se prolongava
para as entranhas da terra.
— Tome, cuidado! — gritou Burger, ao ver Kennedy
que, impaciente, se apressava em descer. — É uma verdadeira toca de coelho isto
aí embaixo. Se você perdesse o caminho, haveria cem probabilidades contra uma
de torná-lo a encontrar. Espere que eu leve a luz.
— Como é que você encontra o caminho, se é tão
complicado assim?
— A princípio, perdi-me mais de uma vez, mas, pouco
a pouco, aprendi a andar por aí. Há um certo sistema para isso. Mas, se um
homem se perder nessa escuridão, é impossível achar saída. Quando quero avançar
muito para o interior da catacumba, vou desenrolando por trás um novelo de
barbante. Para se certificar de quanto é difícil andar aqui, basta ver que
antes de você andar cem jardas, cada uma destas passagens se divide e subdivide
uma dúzia de vezes pelo menos.
Já haviam descido uns vinte pés abaixo do nível do
solo e achavam-se em uma sala quadrada talhada a pedra. A lanterna iluminava
vivamente o chão e frouxamente para cima as paredes fendidas e escuras. Viam-se
em todas as direções os buracos negros das passagens que irradiavam deste
centro comum.
— Siga-me bem de perto, meu amigo — disse Burger. — Não
perca tempo com essas coisas do caminho, pois o lugar para onde vamos tem tudo isso
e até mais.
Ele desceu por um dos corredores e o inglês seguiu
rente aos seus calcanhares. De instante a instante, o caminho se bifurcava, mas
Burger estava evidentemente acompanhando sinais só dele conhecidos, pois nem
uma vez sequer parou ou hesitou. Ao longo das paredes, embrulhados e hirtos,
jaziam os cristãos da antiga Roma. A luz amarela dançava macabramente sobre a
figura engelhada das múmias e resplandecia sobre as caveiras arredondadas e nos
ossos dos braços compridos e brancos, cruzados sobre os peitos descarnados.
À medida que passava, Kennedy olhava atentamente
para as inscrições, os vasos funerários, os retratos, as roupas, os utensílios,
que permaneciam ainda tais como as mãos
piedosas os haviam deixado tantos séculos antes.
Nesse rápido relancear de olhos de passagem, Kennedy
se persuadira de que aquela era a mais antiga e a mais rica das catacumbas, e
que continha uma quantidade de relíquias romanas como nunca havia antes caído
sob a vista de algum arqueólogo.
— Que seria, se a luz acabasse? — perguntou,
enquanto avançavam.
—
Eu trouxe uma vela a mais e uma caixa de fósforos no bolso. E você, Kennedy,
tem fósforos?
—
Não. E não seria nada mau que me desse alguns.
—
Ora, não é preciso. Basta que não nos separemos.
—
Ainda falta muito? Creio que já andamos, talvez, bem um quarto de milha.
—
Mais que isso. Esta catacumba parece não ter limites. Pelo menos, eu ainda não encontrei
o fim. É um lugar perigoso e acho melhor que eu empregue o rolo de barbante.
Dizendo
isto, amarrou uma extremidade do cordel a uma ponta ressaltante de rocha e,
segurando o novelo, desenrolava-o à proporção que avançava.
Kennedy
notou o quanto era necessária esta precaução, porque as passagens se tornavam
cada vez mais emaranhadas e tortuosas, como uma perfeita rede de corredores
entrecortados.
Mas
todos eles desembocavam em uma ampla sala circular, tendo a um lado um pedestal
quadrado de tufo encimado por uma pedra de mármore.
—
Por Deus! — gritou Kennedy, em êxtase, quando Burger balançou a lanterna à altura
do mármore. —É um altar cristão, provavelmente o primeiro que existiu. Aqui está,
neste canto, entalhada na pedra, a pequena cruz de consagração. Não há dúvida
que esta galeria circular servia de capela.
—
Precisamente —disse Burger. — Se eu tivesse mais tempo, mostraria todos os
corpos que estão sepultados nesses nichos das paredes e que são dos primeiros
papas e bispos da Igreja, com as suas mitras, báculos e paramentos pontifícios.
Vá ver aquele que ali está e examine-o bem.
Kennedy
cruzou a sala e parou junto a uma cabeça medonha enterrada frouxamente em uma
mitra mofada.
—
É extremamente interessante —disse ele e a sua voz rolou pela abóbada da sala.
— No meu conceito, esta catacumba é única. Traga a lanterna, Burger. Quero
vê-los todos.
Mas
o alemão havia-se afastado e conservava-se no meio do círculo amarelo de luz
projetado pela lanterna, do outro lado da sala.
—
Sabe você — perguntou —, quantos desvios tortuosos há entre esta sala e as escadas
de saída? Cerca de dois mil. Era um dos meios de proteção adotados pelos cristãos.
Há duas mil probabilidades contra uma para um homem sair daqui, mesmo tendo uma
luz. Mas se estiver no escuro, torna-se, evidentemente, muito mais difícil.
—
Com certeza.
—
E a escuridão tem, aqui, alguma coisa de apavorante. Já fiz uma vez a
experiência. Vamos experimentar de novo.
Soprou
a lanterna e, repentinamente, foi como se mãos invisíveis apertassem fortemente
os olhos de Kennedy. Nunca ele imaginou que pudesse haver uma escuridão tão
completa. Parecia oprimi-lo e sufocá-lo. Ao andar, encontrou um sólido
obstáculo, contra o qual o seu corpo se encolheu completamente.
Estendeu
as mãos para empurrá-lo.
—Chega,
Burger!— disse ele. — Acenda outra vez a luz!
Mas
o companheiro começou a rir. E, na galeria circular, a sua gargalhada parecia
vir de toda a parte ao mesmo tempo.
—
Parece que você está incomodado, amigo Kennedy.
—
Vamos, homem, acenda a lanterna — respondeu Kennedy, impacientemente.
—
É curioso, Kennedy, mas não posso saber pelo som a direção em que você está. E
você distingue onde eu estou?
—
Não. Parece estar de todos os lados.
—
Se não fosse esse barbante que tenho na mão, eu não teria a mínima noção do
caminho a tomar.
—
Decerto. Mas ande com isso, homem: acenda a luz e acabe com essa brincadeira.
—
Olhe, Kennedy, há duas coisas que eu sei que você é louco por elas. Uma, é uma
aventura; a outra, é um obstáculo a vencer. A aventura será você encontrar a
saída desta catacumba. O obstáculo será, de um lado, a escuridão e, do outro,
as duas mil trilhas tortuosas que tornam um pouco difícil achar o caminho. Mas,
não seja precipitado, porque há tempo de sobra, e quando você descansar um pouco
aqui ou ali, apraz-me acreditar que você estará pensando em Miss Mary Saundersen e examinando se
procedeu bem com ela.
—
Homem do inferno, que quer você dizer? — uivou Kennedy e começou a rodar, às
apalpadelas, em pequenos círculos, espancando com as mãos a escuridão compacta.
—
Adeus — disse uma voz de mofa, já a alguma distância. —Não sou de opinião,
Kennedy, apesar da sua explicação, que você tenha andado direito com ela. Só
uma coisa você mostrou ignorar e esta eu vou lhe dizer: Miss Mary Saunderson era noiva de um pobre e deselegante estudioso
chamado... Julius Burger.
Ouviu-se
um rugido em alguma parte, o som vago de um pé batendo sobre pedra, e o
silencio caiu logo sobre essa velha capela cristã — um silencio estagnante e
pesado, que se fechou em torno de Kennedy e que o envolveu como a água a um
homem que se afoga.
*
Uns
dois meses depois apareceu nos principais órgãos da imprensa
europeia a seguinte notícia:
"Uma
das mais interessantes descobertas dos últimos tempos é a da nova catacumba em
Roma, situada a alguma distância dos bem conhecidos subterrâneos de São
Calixto. A descoberta dessa importante catacumba, que é excessivamente rica das
mais curiosas preciosidades da vida cristã primitiva, é devida à energia e sagacidade
do Dr. Julius Burger, o jovem especialista alemão, que está rapidamente
conquistando o primeiro lugar entre as autoridades da arqueologia de Roma.
Apesar
de ser ele o primeiro a dar a conhecer a sua descoberta, parece que um menos
afortunado explorador precedeu o Dr. Burger.
Alguns
meses antes, o Dr. Kennedy, o conhecido arqueólogo inglês, desapareceu
inopinadamente da sua residência no Corso, tendo-se conjecturado que isso se
prendia a um recente escândalo de amor, que o levara a abandonar Roma. Parece,
agora, no entanto, que ele foi vítima do seu ardoroso amor pela arqueologia,
ciência em que ocupava um posto distinto entre os seus colegas.
Seu
corpo foi encontrado no centro da catacumba, e ficou provado, pelo estado dos
seus pés e dos seus sapatos, que ele andou dias e dias pelos sinuosos
corredores que tornam esses subterrâneos tão perigosos para os exploradores. O
infortunado moço tinha-se internado pela catacumba com inexplicável imprudência,
tão longe quanto possível, sem levar consigo fósforos e velas, de modo que o
seu triste destino foi o resultado da sua própria temeridade.
O
que torna o caso ainda mais doloroso é que o Dr. Julius Burger era íntimo amigo
do falecido.
A
sua alegria pela extraordinária descoberta, que teve a felicidade de fazer,
foi, em grande parte, desfeita pela sorte terrível do seu camarada e colega de
estudos”.
Fonte: “O Paiz” (RJ), edições de 4 e 5 de março de 1909; tradução de autor desconhecido.
Fonte: “O Paiz” (RJ), edições de 4 e 5 de março de 1909; tradução de autor desconhecido.
[1] Em alemão, no
original: “Meu Deus!”.
[2]
Mausoléu situado
na Via Ápia, Roma, construído para abrigar Cecília Matela, filha de Quinto
Cecílio Mateclo Créstico, cônsul romano do séc. I.
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