LUZIA E AS SOMBRAS DE LUZ - Conto Fantástico - Adela Figueroa Panisse
LUZIA E AS SOMBRAS DE LUZ
Adela Figueroa Panisse
Luzia
andava sozinha pela rua estreita que conduzia até a casa do seu namorado.
Vinha
do trabalho e estava cansada. Hoje o chefe se tinha passado um monte com as
suas exigências. Queria que acabassem de coser todas as peças de roupa que
chegaram da casa central. Vinham já cortadas e as operárias só tinham que
enfiar a máquina polos carreiros que estavam pintados sobre as telas. Todas
iguais. Hoje foram de cor roxa. Saias e camisolas. Para uma marca internacional
que acabara por ser a mais vendida do Planeta. Diziam que os donos eram
galegos. O fundador era um dos bilionários mais ricos do mundo. No ranking da revista Forbes, ficara de
segundo ou terceiro, dependendo dos valores da bolsa.
E
ela, junto com mais cem mulheres apertadas na nave de trabalho, conseguia
ganhar apenas para pagar o aluguer e pouco mais. Isso depois de estar cosendo
durante uma jornada longa de quase dez horas. Cobravam por peça cosida. Este
dia conseguira fazer trezentas unidades. Todas iguais, todas roxas duma cor
quase violeta. Era um trabalho monótono, repetitivo e mal pagado. Mas era o
único que ela conseguira arranjar.
No fim da tarde os seus olhos estavam
vermelhos de tanto olhar para os tecidos e as mãos cansadas e quase entumecidas
de agarrar a prenda para a suster firme sob as agulhas da máquina. As costas
doíam-lhe de estar debruçada sobre a mesa de trabalho e seu pescoço estava
rígido e dorido. Tinha necessidade de respirar o ar livre, fora daquela
atmosfera viciada do atelier .
Escutou o riiing da campainha de saída com grande alivio. Saiu para o
descampado junto das outras operárias e foram todas até a paragem do ónibus que
as levaria até a vila. Cabeças baixas, ombros caídos e olhada vácua para o
infinito da noite do polígono industrial.
A porta maciça de alumínio fechou trás
delas com um som de morte metalizado. Luzia respirou fundo e deixou que seus
pulmões se enchessem de ar fresco e limpo (mais do que no interior da nave).
Era noite de luar . Dessas noites frias em
que o vento do norte faz fugir as nuvens. Desceu do coletivo depois de meia
hora de transporte e começou a caminhar para a casa do Manuel. O rio estava
perto e desde ele saia a humidade produzida polo aquecimento do sol do dia que
evaporara a água. Mas agora o frio condensava essa humidade que se estendia
pelas ruas como se fosse o bafo das xácias[1].
Seres
míticos, parecidos a mulheres, que habitam as águas continentais da Galiza.
Namoram aos homens e não gostam das moças. Nomeadamente das novas e bonitas
como Luzia. Assim o aprendera Luzia
escutando estórias desde o colo da sua avó.
E Luzia ia sozinha através da noite das
ruas e através de seus confusos pensamentos alastrando seu cansado corpo.
A névoa tinha-se pousado pouco e pouco
sobre as pedras da cidade e sobre as varandas das casas. Sentia em seu corpo
cansado a humidade do ambiente. Que cobria seu abrigo de quadros verdes e
grises por infinidade de pinguinhas de água.
Abraçou-se e esfregou os braços contra o
corpo para acorrentar o frio, mentres[2] seguia andando. Agora apurava
o passo, se calhar por se aquecer com o exercício, ou porque o medo lhe ia
ganhando na sua carreira.
Seus cabelos agitaram-se sem terem vento
que o justificasse e algo frio roçou sua cabeça.
Ela sacudiu-na mas, aquela mão , ou o
que quer que fosse, voltou a entrar por entre os caracóis da sua melena e
pousou-se-lhe sobre o coiro cabeludo. Com as suas mãos, tentou de esfregar a
cara e a cabeça, mexendo os cabelos com força. Porém, aquela friagem com dedos
próprios voltava a lhe invadir o crânio como se lhe quisesse congelar o
cérebro.
Voltou-se, mas nada viu. Continuou sua
marcha cheia de apreensão e começou a cantar baixinho como um intuito vão para
libertar-se da sensação medonha que a estava dominando. Mas com pouco êxito.
Diante
dela viu algo. Parecia uma sombra, uma sombra de luz. Não de luz brilhante, mas
ténue, suave que, ao se aproximar, voltava em transparente. Como translucida.
Transportava um farol[3] que se movia para um lado e
para outro.
Pronto,
junto desta foram aparecendo outra e outra até fazer um coro que a rodeava,
movimentando- se com ela no percurso da ruela. As sombras brancas portavam
faróis acessos que abanavam com seu movimento. Tentou fugir, mas não tinha para
onde. Num desespero berrou num fio de voz:
— Quem
és? Que é o que quereis?
A
voz de Luzia saía entrecortada e débil da sua boca.
Só
um murmúrio parecido ao do vento saiu, como única resposta, daquela comparsa
fantasmal. Sua avó Gilberta tinha-lhe falado da Santa Companha[4] quando era meninha. Do coro das
Estantigas. Almas em pena que vagueiam polos caminhos nas noites de névoa, para
ganhar algum caminhante que ousar olhar para elas. Deitam-lhe o ar da morte e
levam-no com elas a aguiar eternamente. Mas ela nunca tinha acreditado. Eram
contos de velhas…
A angustia começava a dominá-la e sentiu
como a rigidez lhe ia prendendo seu corpo. Primeiro foram suas pernas que se
negaram a avançar, fazendo mais lenta a sua marcha até acabar por pará-la
totalmente.
Suas mãos, que utilizara para esfregar a
cabeça havia um pouco, ficaram lentamente caídas ao longo do corpo, inermes os braços
e abandonados os ombros.
O terror frio e paralisante já a invadia
por completo.
Foi
nesse momento, com todas as suas defesas caídas, quando sentiu que algo tomava
suas mãos, com delicada frialdade e fazia que seus braços envolvessem uma
sombra branca e de contornos difusos.
Outra destas agarrou-na desde detrás
polo vão[5] e, com a mesma suavidade,
moveu suas coxas mentres uma música soava vinda de nenhum recanto.
Como em sonhos, notou virar seu corpo
que deu um giro para ser abraçada por outra daquelas figuras sinistras que a
faziam dançar num ritmo lento, suave e fácil, ao som duma música que ela não
podia identificar.
Outras figuras brancas foram-se
achegando a ela e envolvendo-a na sua luz ténue, no cenário da ruela perto da
casa de seu namorado.
Luzia
sentiu que o terror que tivera até aquele momento desaparecia passeninhamente[6], sendo substituído por uma
nova sensação que ela não reconhecia: uma mistura de ingravidade e passividade
que percebeu como gostosa, agradável.
Naquela semi-inconsciência que a
dominava, um prazer doce e tranquilo nascia-lhe nos dedos dos pés e subia-lhe
pelas pernas até suas zonas secretas que só tinha partilhado com o Manuel.
Inclusivamente “ali”, sentiu um bafo frio que invadia seu sexo, enquanto seus
braços eram sustidos a volta dum daqueles corpos etéreos e seu vão seguia-se
movendo guiado por umas mãos frias, mas acariciadoras que lhe marcavam o ritmo
a que não podia recusar-se.
Sentiu eriçar seus mamilos quando outro
daqueles espíritos roçou-lhos com suavidade fria. E o desejo seguiu a sua
excitação. Nestes momentos já não tinha nenhum domínio sobre seu corpo que se
abria e dançava voluptuosamente ao ritmo que as sombras lhe marcavam, desde os
pés até as coxas, as pernas e os braços.
Sua
cabeça, deitada para atrás, oferecia a cara e o pescoço ao abraço frio do coro
fantasmal, enquanto seu rosto mostrava uma aceno de êxtase total.
Toda ela estava a ser possuída por uma
companhia de ánimas[7], que ora gemiam ora cantavam, ou
gritavam com suavidade provocadora. A energia fria que irradiavam percorria-lhe
o corpo inteiro.
Ingrávida[8], deitada no ar da noite,
sentiu como as ondas do prazer percorriam seu corpo desde o seu interior até
toda a sua pele, para chegarem a seus lábios que exalaram suaves e rítmicos
gemidos.
Toda ela
vibrou, levitando ao ritmo daquela orgia macabra, enquanto as sombras vibravam
também com ela. E sacudiam seus faróis que bailavam também junto com todo o
coro, representando o ato final uma apoteose coral.
Ainda ficava nela o sentimento de prazer
e o relaxe começava a dominá-la, quando se encontrou batendo na porta do
Manuel.
— Meu amor,
estava a aguardar por ti com ansiedade mal dissimulada (O rapaz
estendeu seus braços para ela num aceno carinhoso.).Esta noite estás mais formosa que nunca! Diria-se que tens luz no
rosto.
Manuel abraçou a Luzia. Beijou-na com
paixão e, da boca dela, uma névoa suave e luminosa foi-se estendendo polo
quarto, envolvendo a Manuel e penetrando-lhe até o interior de seu corpo.
Ele
sentiu o frio invadir suas carnes e seu sangue, mas não hesitou e não largou a
mulher. Não podia evitar abraçá-la. Já não podia ceivar-se dela. Nem tampouco o
desejava.
Os dous amantes, fundidos um no outro,
não foram já senão luz e nevoeiro.
Juntos
partiram à procura doutros corpos com quem dançar o baile da Santa Companha, abalados no vento da morte.
— Luzia ! Luzia! — A voz cascada da
velha Gilberta soava entre as pingas de orvalho e a luz fria do luar:
Ai daqueles a quem lhes
dá o ar da Companha
ao saírem sós de noite por esses
caminhos fora!
A escritora galega Adela Figueroa Panisse nasceu em Lugo e vivieu em Pontevedra por mais de 26 anos. Lá,
desenvolveu a maior parte de sua atividade docente, como professora de
Biologia. Agora aposentada, e de volta a Lugo, escreve poesias, contos, obras
de teatro e de ficção em geral. Tambem se dedica a temas ecológios e
sociais. Trabalha como Voluntaria na
Organização Ecologista ADEGA e preside a
Fundação Eira, que custodia o patrimônio
cultural e natural da Galiza.
Obras:
Poesia: Vento
de Amor ao Mar, A Xanela Aberta, Memória de Pés Sem Sombra, além de
colaborações em diferentes obras coletivas.
Narrativa: Madeira
de Mulher, Atlantidae, Mulher d’Água
e numerosas colaborações em revistas literárias.
Teatro Infanto-juvenil: O Mistério da Escada Interior.
Contos para Crianças: O Rei da Floresta, Cloe a
Amiguinha das Flores.
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Nota do editor: Na Galiza fla-se o português: visete o Portal Galego da Língua:
[1] Na mitologia
luso-galego-leonesa, ente “do sexo feminino, espécie de sereia ou fada
aquática, que habitaria nas partes mais profundas dos rios” (Dicionário
Estraviz). O mesmo que Janas. No Brasil, temos a Iara, ou Mãe D’Água.
Excelente relato fantastico
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