MONSTROS NO JARDIM - Conto Fantástico - Ulysses Rocha Filho



MONSTROS NO JARDIM
(Ulysses Rocha Filho – Classificado no Concurso Literário Bram Stoker de Contos de Terror)

1

-Meu avô, meu pai... Meu vôpai... Meu pai foi meu avô especial.

Ele já morreu, deixo bem claro. E está em minha mochila. Mas está do meu lado, nunca me deixou. Desde que nasci, meu pai foi meu avô-pai. Isso já se perdeu nas noites do tempo mas busco, nas minhas lembranças, a idealização do pai que nunca me deram.

Meu avô, grande Pai, é o melhor que há nesta minha vida medíocre. Medíocre e nada especial. Nenhuma outra referência de homem terei, tive ou tenho que me satisfaça.

Nas fotos, é ele quem aparece ao lado de minha mãe, de minha avó e de minha irmã mais velha. Nas fotos, ele que me segura a mãozinha minha dentro de sua grande mão. Percebo que não me olha nos olhos mas o sorriso me engole. Minha mãe o abraça, minha vó enfia o braço no braço de meu avô e ele me carrega em formato de cadeirinha. Todas as fotos: ele e eu, meu avô e eu.

Quem me deu a primeira bicicleta (foram tantas!), foi ele. Meu primeiro carrinho deve ter sido ele, também. Nem me lembrava desse fato: chegou com uma bicicleta - de segunda mão, é verdade -, colocou as rodinhas, me montou nela e me soltou ladeira abaixo. Tudo com muito zelo e cuidado. Ainda assim, machuquei muito em muitos tombos. Outras magrelas vieram, outros acertos e aprendi, depois dos 13 anos, a andar de bicicleta com a minha namorada.

Quem me levou na escola, nos primeiros dias foi o meu avô-heroi. Chorava tanto, segundo me contaram depois, que a funcionária teve que levá-lo para a secretaria. Acho que meu avô deu mais trabalho para a minha escola do que eu.

- Esse garoto é especial. Cuidem bem dele, ele não pode ficar longe da gente...

Quem me ensinou a roubar mexerica do vizinho, a falar palavrão e a urinar em pé (desobedecendo às regras de minha avó), a limpar a bunda, a vestir roupa sozinho... Quem foi, senão ele?

Agora, ele morreu e passou a me acompanhar em todos os lugares que estou e vou. Foi desde sempre, assim. Parece que foi num dia desses. Em todos os lugares, lá está ele.


2


Certo dia, minha mãe me levou ao banco. Enquanto a vez dela não chegava, a senha era um número imenso, vovô me explicou o porquê de o banco ser tão rico e a gente depender tanto das coisas das agências bancárias:

- Se a gente boicotar esses sanguessugas, eles iriam falir. Só estão nessa empáfia, nesse jogo de senhas e nessas filas intermináveis porque a gente alimenta esse poderio.... Vamos boicotá-los?

- Mas como isso é possível, vô? A sua aposentadoria é daqui, minha mãe recebe no outro banco, a vovó paga as contas todas no banco... Tudo é débito em conta!

- Balela, Neto. É só tirar o dinheiro daqui e levar pra casa. Assunte a partir de hoje... Na minha época, precisavam da gente, serviam até cafezinho... Hoje, estão de barriga e cofres cheios... Acabou a água, separaram a gente dos caixas, mandam a gente ficar lá fora, se virar nos autoatendimentos... a gente nem é convidado a passar por aquela porta giratória mais... Assunte!

- Vou observar, vô... Vou assuntar...

Minha mãe chega, pega a minha mãos e saímos os três. Vai me puxando pela agência, subindo e descendo as escadas, passando pela porta giratória, pelos guardas e acaba saindo daquela agência bancária. Meu avô passeia pelas pessoas muito facilmente mas, sempre, está do meu lado. Às vezes, parece flutuar de tão rápido e as pessoas, todas muito entediadas, nem dão pela presença daquele velho fanfalão, não!, farranfão... fanfajão...

- Anda logo, Neto. Anda que tenho que te levar pra escola, ainda...


3


A professora inventou que meu avô deveria se sentar lá no fundo da sala e, não, ao meu lado. Na verdade, ele podia me dar cola e ela sacou logo, logo. Vovô não gostou mas obedeceu. Ela sempre faz o que eu penso. Sentou-se bem atrás de mim. Naquela carteira ninguém tocava. Era minha propriedade... Na missa e na escola, a gente se separava. O banco dele, de verdade, era o lá do fundão.

O padre sempre implicou com ele. Desde quando tinha vida. Agora, depois de sua morte, mais ainda. Sabe, por quê?

- Ideologia política, Neto. São pensamentos muito tacanhos. A igreja nunca me entendeu...

- Mas eles não são tolerantes?

- De fachada, Neto. Nunca gostei de igreja que imprime o medo nas pessoas. Pedagogia do medo não leva ninguém à salvação. No culto, uma coisa; em casa, soltam-se os demônios.

- Sempre foi assim, vô?

- Assunte a partir de hoje... Assunte!


4


No Dia de Finados, ele sumia. Era o único dia que meu avô me abandonava e não adiantava eu cobrar sua presença, reclamar para minha mãe (“cadê meu avô que sumiu outra vez?) ou tentar sonhar com ele... Não aparecia mesmo!

Quando no dia 03 de novembro, todo fanfarrão, vinha me abraçar e me levar pra escola ou me acordar para brincar, tentava descobrir a verdade:

- Vô, onde esteve ontem o dia todo? Até a mamãe sentiu a sua falta.

- Fiquei passeando. Voando por aí...

- Mas nãopodia, pelos menos, voltar para ir, com a gente, lá no cemitério?

- Mas eu estava lá. Quando vocês rezaram a missa – você sabe que não gosto de sermões e, muito menos, de missas de Dia de Finados – então, quando vocês estavam lá no meu túmulo, depois da missa, estive por lá. Até flertei com uma senhorinha...


- Que roupa eu vestia, então?
- ... querendo me testar, Neto? Regata, calção azul e tênis da marca americana, com meia azul... Sua mochila ficou no carro, não foi?

- Verdade! Mas por que não se aproximou da gente? Vovó chorou tanto...

- Deixei ela chorar bastante...  Ela já riu demais de mim, né? Sua vó me fez sofrer muito em vida. Você que não se lembra, era pequenino. Mas ela foi uma patroa para mim. Era seu empregado. Só fazia quando e o que ela queria. Muito carola. Era mais mulher do padre ou do pastor do que de mim... Merece chorar um pouquinho, nem que seja para que os outros veja o quanto ela ainda sofre a minha perda, pelo velho aqui... Assunte, meu neto! Assunte mais essa lição.

- Meu tio Valdo quer abrir uma poupança, no banco, pra mim...

- Pede pra ele te dar um bezerro e guardar lá na Fazenda Facho de Lua... Banco, não, já falamos sobre isso.


5


Numa noite, fiquei com medo de fantasma lá na fazenda. Foi por causa dos medos que minha avó me passava e dos causos que meu tio Valdo fazia questão de falar para os meus primos. Mas foi tanto o medo, que consegui pegar na mão do fantasma e o prendi na minha mochila de escola.

- Para de passar medo nos primos.


- Você não tem medo de meus dentes e dos olhos de fogo?
- Assunte, seu fantasma.... Quem enxerga meu avô, vai ter medo desse corpo todo sangrando e dos seus olhos lacrimejando no meio dessas lágrimas?

Nessas horas, meus primos já estavam longe. O homem fantasma se deixava sentar no primeiro lugar que lhe ocorria. Daí, conseguia pegar na mão fria dele e a gente ficava amigo. E ele, ele ficava mais bonito que antes.


6


Levei para a escola, a contragosto de meu avô, e deixei lá no meio da turma. Foi uma gritaria só. Todos ficaram de cabelo em pé. Quem mais sofria, era os que tinham mais medo. Mas eu não tinha medo do meu amigo. A Professora me deu uma advertência e o diretor me chamou pra conversar:

- Que deu nessa cabeça de vento em trazer fantasma pra sala de aula, Senhor Neto?!

- Cabeça de vento?

- Sim, a sua. Não tem nada aí dentro, não? Nunca teve.... Escola é para estudar, rapazinho!

- Foi só uma brincadeira. Meu avô diz que todos têm direito à educação...
- Seu avô sempre foi um fanfarrão...

-Não, senhor. Ele até ralhou comigo. Disse que ia me dar mal trazendo o fantasma pra sala de aula... Ele é um homem muito direito. Não é fasfalão, não...

- Fanfarrão!

E, de forma, nervosa:

- Que mais vai inventar?

- Meu avô não está gostando de sua gritaria...

E, de forma, cândida:

- Imagine: esse fantasma foi visto desde a hora em que você pisou na sala de aula. As meninas o encontraram no sanitário delas... As merendeiras salgaram o lanche por causa dele. A vice-diretora saiu carregada pelo SAMU... Mas isso não pode ficar assim. Sua professora disse que não o quer mais naquela sala. Já aturou todos os seus caprichos.

- Nem eu... Ela me castiga muito...

- Por isso, antes que sua mãe chegue, já vou lhe avisando: você vai para a outra turma, da mesma série que a sua... Vai sair da sala azul hoje mesmo. Ponha-se longe de minha presença... Já!

- E meus amigos?

- A coordenadora educacional disse que você não é sociável. Que não se enturma com os coleguinhas... Não tem importância: em qualquer lugar está bom para você. Entendeu?

- Estou assuntando o senhor...

- Entendeu, Neto? Vai para a sala verde.


- Verde?
- É isso que vou dizer pra sua mãe.

- E o fantasma que eu trouxe na mochila? Ele deve estar solto por aí, em alguma sala... Ou será que algum colega o levou para casa?

- Nem o zelador sabe. Você sai daqui e vai procurar... Não posso mais gastar tempo com suas histórias... Pode sair e procurar o seu... o seu amigo!

- Me devolve a mochila?

- Pegue-a você mesmo. Está ali, naquele sofá.

Até então, meu avô permanecia calado. Só me aconselhando o que dizer. Cada resposta que dei, foi assoprada por ele. Mas falei do meu jeito e da minha maneira. Pegava remendos de sua fala e verbalizava.

Sabia, desde que meu avô morreu, que não devia levar a ferro e fogo tudo o que ele dizia. Nem da forma que ele falava. Como sempre afirmava a minha avó, mulher do meu avô, ele era um “anarquista”, um homem sem travas na língua.

- Esse homem, quando morrer, não vai ter ninguém no seu velório. Só cria inimizades com seu jeito contestador. E o pior: é anarquista. Um homem que quer o mundo de outro jeito, Neto. Não tem lei, nem forma de governo. Ninguém pode mandar nele. Nem a morte.


7


Quando arranjei a minha primeira namorada, meu avô ficou com ciúmes. Não queria ver, nem pintada de ouro, a garota. Queria, o tempo todo, brincar comigo e me fazer ficar, somente, na companhia dele.

Minha mãe ficou feliz, na medida do possível, mas até falava que meu avô deveria dar um tempo, que o momento era meu e da minha namorada:

- Seu avô tem que ser mais liberal, Neto. A vida é sua...

- Mas ele quer que eu fique aqui no quarto...

- Não, Neto. Sua amiga está lá na sala. Vamos todos lanchar e sair para o shopping. O seu lugar é lá...

- Mas é aqui que está o computador, o vídeo game...

- Mas é lá que você vai namorar...

- Meu avô não quer descer com a gente.

         - Vamos que ele vai. Se você ficar aqui, ele fica; se for para a sala, ele vai.... E tudo fica bem...

- Vai ser sempre assim?

- Só se as coisas mudaram. Por enquanto, é assim, sim...


8


Com a terceira namorada, na fase adulta, sem a minha mãe, tudo ficou melhor. Conseguia beijar, tranquilamente, a namorada onde e como quisesse. Mas meu avô sempre dizia para fechar os olhos. Se eu fechasse os olhos, meu avô desaparecia. E tudo ficava bem...

Minha avó chorava dias e dias. Sentia muita falta de minha mãe.

- Ela não volta mais, Neto. Foi com Deus...

- O padre me falou...

- Deve estar com seu avô... Deve aparecer, também, para você.... Todos os dias, né?

- Oh, vovó, nunca mais vi a mamãe. Nem na minha mochila...

- Mas e seu avô? Não está sempre do seu lado?

- Está ali na cama... Rindo da senhora...

- Eu sei... Mas, Neto, quando ele, o seu avô, está do seu lado, sua mãe também está, não é?

- Nunca mais vi a mamãe, vovó... Desde que ela suicidou...

- Ela não suicidou...

- Vovô que me falou isso agora...

- Velho caduco... Não sabe de nada! Anarquista... Esquece desse seu avô, pai dos seus sonhos....

-Vôpai?

- ... e dos seus pesadelos, também.

E me deitando na cama, colocando a coberta em cima de meu corpo e ajeitando o meu travesseiro e me servindo um copo de leite e me deixando sem falar mais nada....

- Durma! Dê sossego para quem quer viver, Neto!

- Agora posso namorar em paz aqui no quarto... Minha mãe não pega no meu pé...

- Namora com sinceridade.... E me conta tudo o que acontece, está bem? Agora, durma! Me dá um pouco de sossego porque mereço descansar um pouco nessa vida, não acha?!

- Tá, vó... Me beija que vou dormir... Beijo de despedida!

E aconteceu o primeiro beijo que aquela senhora me deu. Antes, apenas carinhos esparsos. A amargura daquela velha senhora, por um instante, foi colocada nos olhos de um túmulo qualquer, e depositou um beijo redentor em minhas bochechas. Não contente, meio canhestra, me beijou na testa, chorou e saiu do quarto.

9


Acordei em outro mundo. Tudo era muito diferente daquele que estava acostumado. Consegui me levantar, com muita dificuldade, de minha cama. Esfreguei os olhos duas vezes seguidas mas tudo continuava embaçado, com grande neblina. Não enxergava direitinho nenhuma luz. Mas tudo estava tão claro... Não me lembro de ter aberto a porta. Mas fui caminhando por um jardim muito extenso. Todo cheio de flores. Todo feliz.

Fui assuntando cada formiga que me cumprimentava. Seguia o seu trieiro até chegar ao buraco onde principiava o formigueiro delas. Não podia segui-las mais. Nem deveria voltar porque estava sem nada às minhas costas. Se tentava girar, não via o passado. Não enxergava mais o verde nem as flores por onde passei.

Ergui o quanto pude os olhos para avistar o que era o destino mas não vislumbrava nada. Não via o que estava além do meu raio de visão. Fui me desesperando. Como não podia ver mais nada?

- Vô!!

Parecia que estava saindo de casa, tentando atravessar o nosso jardim e tomar a rua. Ou melhor: acordei na fazenda, desci a varanda, as escadas, passei pelo pomar e estou no campo. Não sei, não sei!

- Vô!!! Vôpai...

Ninguém me vê ou eu que não enxergo mais as pessoas? Será que dormi demais e não vou acordar mais desse sonho? Minha única saída, se houver alguma, é ir, como diria o meu avô, assuntar tudo que está em minha volta. Talvez, descubra mais esse segredo...



Ulysses Rocha Filho possui Doutorado em Letras e Linguística - área de concentração: Estudos Literários, pela Universidade Federal de Goiás. Atualmente, é Professor Adjunto da Universidade Federal de Goiás - Campus Catalão, desenvolvendo os projetos de pesquisa: A figura do professor na literatura brasileira - primeiros momentos e Figurações contemporâneas do envelhecimento e da velhice em representações literárias. É pesquisador do Grupo de Pesquisas CNPq L.I.M.E.S. – Literatura, Imaginário, Marginalidade, Estética e Sociedade. Publicou os livros Fios Desencapados (2009), Contos Desbotados (Mosaico) (2010), Deslindamentos – Memórias de um Garatuja (2012) e os ebooks Destelhamentos (2012) e Contos & Conta-gotas (2012) (livrosebooks. com.br). Em 2010 e 2011, em regime de coautoria, publicou dois livros para vestibulandos da UFG e da UEG (Editora Kelps/Leart). Em 2014, publicou o livro Travessias literárias olhares sobre cultura e identidade, pela Editora Ifitec/América.


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