A ESTRANHA MORTE DO DR. KELETI - Conto Clássico de Terror - Leo Peruta



A ESTRANHA MORTE DO DR. KELETI
Leo Peruta
(Sec. XX)

— Sinto muito, mas confesso que não me lembro do senhor. De resto, estou um pouco perturbado... quero dizer... surpreendido. Estava tão longe de encontrar um compatriota aqui! Na 5ª. Avenida é fácil dar com um a cada passo. Mas, neste subúrbio modesto... Diga-me: Chegou de Budapeste há muito tempo? Ah, não veio de Budapeste? Ah! Sim... de Kecsmet... Lembro-me perfeitamente... o Café Corso, o tio Jonas, a bela Aranka...

“Oh! Agora eu o reconheço. O senhor é o engenheiro Kovacs. Muito prazer em revê-lo. Sinceramente, muito prazer.

“Não tem outro compromisso? Então, venha almoçar comigo. Conheço um restaurante aqui perto. Modesto, mas com boa cozinha e discreto. Não se encontra ali senão gente do bairro. Só norte-americanos. Ninguém de Budapeste. Olhe, é aqui. Entre. Conhece o cardápio? Não? Então recomendo-lhe o consomé e o frango à moda da casa. É magnífico.

“Então vai passar pouco tempo aqui? É uma pena! Passou por Budapeste ao vir para cá? Esteve lá só quinze dias?... Muito bem... e encontrou alguém que lhe falasse em mim? Pouco me importa o que digam a meu respeito. Mas, enfim... sempre se tem curiosidade, vontade de saber...

“Podia algum imbecil lhe dizer que eu tive razões sérias para partir, assim, de repente... Mentira! Eu vim porque sempre tivera a intenção de me instalar em New York. Poderia volta, se quisesse. Não volto porque não quero. Sim, sim. Eu sei que chegaram a dizer que eu matei o Dr. Keleti. Não é verdade! E a prova é que eu parti e a polícia não me perseguiu. Nem podia me perseguir, porque o Dr. Keleti morreu, de repente, de uma síncope cardíaca... Foi o que os médicos atestaram. Que tenho eu com isso? É preciso ser maluco para dizer o contrário. Por que o disseram?... Porque o Dr. Keleti teve, de fato, uma morte estranha. Um homem moço, robusto, sadio, caiu fulminado... Eu vou lhe contar como foi. Vou-lhe contar para que não dê credito às bobagens que andaram dizendo... Que eu descobrira um veneno misterioso... que tinha poderes mágicos... Mentira! Tudo mentira... Eu não matei o Dr. Keleti. Quando muito, poder-se-ia dizer que eu o obriguei a deixar a vida. É muito diferente.

“E mesmo isso, se fiz, foi sem verdadeira intenção... sem saber o que estava fazendo... Quero dizer: sem consciência de que poderia fazê-lo.

“Conhece a história do mandarim?

“É um teste de honestidade. Dizem a uma pessoa: imagine se há, na China, lá no interior, um mandarim, que o senhor nunca viu, de cuja existência sequer tinha conhecimento. Esse mandarim é cem vezes milionário e fez de você o seu único herdeiro. Aqui está o botão elétrico. Será bastante que o aperte para que o mandarim morra e o senhor entre na posse de sua enorme fortuna. Que tentação, hein? Um gesto tão simples, um mandarim... que não se conhece e uma fortuna imensa.

“Mas nem esse gesto fiz. Não apertei botão nenhum... Eu sei... Dizem que eu tinha ódio do Dr. Keleti porque ele era primo de minha mulher e fora seu noivo, antes de ela me conhecer... Histórias! Por que havia de lhe conservar raiva? Não rompeu ela o noivado com ele para se casar comigo? E depois de casada não concordou comigo em romper com ele até as relações de simples cortesia? Nem o cumprimentávamos. Quê? Sim... É verdade. Eu me irritava quando o encontrava em bailes, concertos, teatros... É também possível que, percebendo minha irritação, ele insistisse maldosamente em ir aos lugares onde podia nos encontrar. E isso me exasperava ainda mais.

“Não bastasse o que aconteceu... Foi tudo por culpa da maldita curiosidade que sempre tive do que chamam ciências ocultas... Se você for à minha casa, verá que, embora pobre, eu tenho uma verdadeira biblioteca sobre esoterismo, faquirismo, magia... Um dia, falaram-me em uma sociedade de teosofia indiana, onde se observavam prodígios inconcebíveis. Mas era uma sociedade muito fechada... Levei dois meses para arranjar alguém que me apresentasse, me iniciasse, como diziam.

“Uma noite, pude, afinal, ser levado lá. Era uma casa isolada, no meio de um parque, num subúrbio de Buda. Fizeram-me entrar numa sala muito grande, com as paredes forradas de pano preto ornado com círculos, triângulos e cruzes suásticas, que eram ou pareciam de prata. Uma só lâmpada no teto e, à meia luz, umas cinquenta pessoas imóveis, em silêncio, sentadas ao longo das paredes. No meio da sala, havia uma mesa pequena também coberta com pano presto, um homem vestido com uma espécie de túnica e um indiano de meia idade, alto magro, seminu, sentado em uma cadeira de alto espaldar.

“Quando cheguei, os ‘trabalhos’ já tinham começado. A convite do homem vestido de branco, a quem chamavam o ‘professor’, um dos presentes — um oficial do exército — pediu uma coisa que me pareceu impossível: que o iogue lhe trouxesse uma carta que ele deixara sobre a escrivaninha, em seu gabinete de trabalho. O indiano começou a tremer, a tremer... a luz diminuiu... quase se extinguiu; depois cresceu de novo e todos vimos que havia um envelope sobre a mesa.

“Não sei se era mesmo a carta que estava no gabinete do oficial. Porém, este disse que era e houve um prolongado sussurro na sala.

“—Agora — disse o ‘professor’ — vamos começar as invocações.

“Foi ao fundo da sala, correu a cortina de uma espécie de guarita, igualmente de pano preto, fê-la voltear e passou a mão dentro dela, como fazem os prestidigitadores, quando querem convencer o público de que não há ali truque ou embuste. Então colocou-a ao lado do indiano. Feito isso, disse:

“—Há presente alguém que queira invocar um morto querido?

“Uma mulher, pouco adiante de mim, pronunciou um nome e o ‘professor’ disse gravemente:

“—Pense intensamente naquele que deseja ver.

“Tocou com uma varinha a cabeça do indiano e este estendeu os braços num gesto de impressionante rigidez.

Pouco depois, vimos uma coisa, como uma fumaça, mover-se dentro da guarita. Pouco a pouco, essa fumaça se juntou, tomou forma e vimos um homem modestamente vestido.

“A mulher desatou em prantos, o indiano deixou os braços caírem e a figura desapareceu.

O ‘professor’ deixou passarem alguns minutos para repouso do iogue. Depois, anunciou:

“—Não é preciso pronunciar o nome da pessoa invocada. É bastante pensá-lo com fé, com toda verdade concentrada no apelo mudo. Quem quer experimentar?

“Um homem ergueu um braço. O ‘professor’ ordenou:

“—Concentre-se.

“E houve um silêncio.

“Desta vez foi a figura de uma anciã com hábito de freira o que apareceu no cubículo de pano.

“Houve os murmúrios do costume, os minutos do repouso e quando o ‘professor’ repetiu o convite Há mais alguém que..., ergui bruscamente um braço e, contraindo a fronte, comecei a pensar com todas as energias de meu cérebro... no Dr. Keleti...

“Foi uma ideia maluca, que me veio de repente. Eu sabia, ou pelo menos acreditava saber que, naquela situação, só se podia invocar pessoa morta. Mas viera-me aquela ideia e eu insistia em pensar no Dr. Keleti com tal intensidade que recordava com maravilhosa nitidez suas feições, sua roupa, a irrepreensível casaca com que o vira pela última vez, dias antes, na ópera, a condecoração exótica que levava no pescoço, por cima da gravata, a bengala com castão de marfim... Ao mesmo tempo, olhava para o iogue que, parecendo presa de um ataque epiléptico, tão forte e rapidamente agitava os braços, movendo também a cabeça, com os olhos exorbitados, a boca deformada por um ríctus violento. Nas outras vezes, ele não se agitara assim, nem tão longamente.

“De repente, houve na assistência um aah! prolongado e, olhando para a guarita, vi o Dr. Keleti. Não vestido como eu estava pensando. Com uma calça larga, em mangas de camisa... Mas era ele, não podia haver dúvidas, com o bigodinho cortado à americana, os olhos muito azuis.

“Pus-me de pé num salto, gritando:

— Não é possível! Isso é uma burla. Uma palhaçada!

“A figura desapareceu e o indiano teve um sobressalto tão forte que atirou a cadeira ao chão e ele mesmo caiu, bracejando como um louco. Várias pessoas correram a acudi-lo, segurando-o, aplicando panos molhados em sua fronte, seus pulsos, enquanto o ‘professor’ se dirigia a mim, interpelando-me, irritado:

“—Está louco? Gritar assim, durante o transe do iogue! Podia matá-lo!

“— Mas isso é uma farsa, um embuste. Aquele homem não podia ser invocado nem aparecer aqui.

“—Porquê?

“—Por que não está morto.

"O ‘professor’ tomou um ar de comiseração para me dizer gravemente:

“— Perdão. Se apareceu aqui, está morto.

“— Não está! — gritei. —Ainda hoje um amigo meu o viu, às quatro horas da tarde, na rua, em perfeita saúde.

“—Mas morreu.

“—Não...

“—Se não tivesse morrido, o iogue não poderia trazê-lo aqui.

Saí, atordoado e inquieto. Seria possível? O Dr. Keleti não estava doente. Teria morrido depois das quatro horas da tarde? Entrei em um café e telefonei para a sua casa. A campainha tilintou longamente antes que um criado atendesse, com a voz perturbada.

“— O Dr. Keleti... — perguntei. —E como não obtivesse logo resposta, acrescentei: — Posso falar com ele?

“—Não, senhor — balbuciou o criado. — Mas se quer falar com o médico...

“Deixei cair o fone e saí cambaleando de emoção. Era então verdade? Fiquei tão aflito que, sem consciência do que fazia, fui à casa do Dr. Keleti. Havia lá tal confusão que ninguém me perguntou nada quando entrei e fui até seu gabinete, cheio de colegas e amigos.

“O Dr. Keleti estava morto. Vestido com uma calça branca, em mangas de camisa...

“Não hesitei... Corri para casa, contei à minha mulher o que se passara e preparamos rapidamente as malas para partir no primeiro trem. Mas, diga-me francamente: acredita que fui eu quem matou o Dr. Keleti?


Tradução de autor desconhecido.
Fonte: ”Eu Sei Tudo”, edição de junho de 1938.


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