LÁZARO - Conto Clássico de Horror - Conto Fantástico - Leonid Andreiev
LÁZARO
Leonid
Andreiev
(1871
– 1919)
Quando
Lázaro se reergueu do túmulo, após três dias e três noites passados no
misterioso reino da morte, ninguém notou, a princípio, certas particularidades
que mais tarde iriam tornar terrível o seu nome. Alegremente, acorreram a
saudar o redivivo parentes, amigos, vizinhos e mesmo alguns habitantes de
longínquas cidades e aldeias. Certo, havia algo de estranho em sua fisionomia,
palavras, gestos: isto, porém, era explicado pela estada no túmulo... Mas o
gênio de Lázaro e todas as características de sua personalidade estavam
mudados, do mesmo modo que o aspecto físico. Outrora, a sua alegria serena e
doce havia atraído a simpatia do Mestre; agora, pouco falava e jamais ria. No
entanto, felizes por terem recuperado o irmão querido, Marta e Maria coisa
alguma de anormal nele notavam.
Mas
eis que um dia, em meio de um dos muitos repastos festivos oferecidos pelas
duas irmãs, alguém se lembrou de perguntar:
— Por que não nos contas, Lázaro, o que Lá
viste? — e todos aguardaram ansiosos a resposta.
Mas
Lázaro nada disse e o amigo insistiu:
—
Não falas? É tão horrível assim?
—
Um pesado silêncio se fez na sala. Mortalmente pálido, os lábios e as mãos
arroxeados, aquele que três dias antes ressuscitara dentre os mortos fitava os
convivas. Lá fora, era azul o céu, brilhava radioso o sol e as fontes cantavam;
mas, para aquele que conhecera as sombras do sepulcro, nada mais representavam
o sol, o cantar das fontes, nem o azul do céu. Mais uma vez o conviva insistiu:
—
Vamos, Lázaro, porque não contas o que viste do outro Lado? — E no mesmo
instante aquele que interrogava e todos os outros mudaram de aspecto; seus
rostos tornaram-se brancos quais sudários; emudeceram, fitando-se atônitos. Os
músicos, que tocavam alegremente a um canto da sala, tomaram também um aspecto cadavérico
e seus instrumentos puseram-se a emitir fúnebres sons. Pouco a pouco,
retiraram-se os convidados. Ia caindo a tarde. Chegou a noite e de súbito, aos
olhos de alguns parentes e amigos que haviam permanecido em casa de Marta e
Maria, a figura de Lázaro revestiu-se de esplendor. Pôs-se de pé, gritou:
—
Horrível!... Horrível!
Por
fim, todos se foram. As duas irmãs afastaram-se também, movidas por um medo
bizarro. Abandonado pelos seus — que tanto se tinham alegrado com o seu
regresso —, Lázaro teria sucumbido à fome se alguns vizinhos não se tivessem
apiedado dele, mandando-lhe alimentos pelas crianças: estas não lhe receavam o
sinistro aspecto. Passava o tempo e a casa, da qual ninguém mais cuidava, ia
tombando em ruínas. Sentado no jardim, agora invadido pelo mato, mal coberto
pelos andrajos do traje festivo que não mais tirara, Lázaro, o morto-vivo, ali
permanecia imóvel, silencioso, horas e horas. E aqueles que assim o viam
pensavam:
—
Tão intenso foi o frio, tão medonha a treva do sepulcro, que nem a luz pôde
mais alegrá-lo, nem o sol aquecê-lo!
Outras
vezes, Lázaro ia caminhar pelo deserto, sempre na direção do sol, qual fantasma
perdido; e ninguém sabia o que ele ia lá fazer.
Um
dia, alguns habitantes de um povoado distante, atraídos pelas estranhas coisas
narradas acerca do irmão de Marta e Maria, resolveram procurá-lo. O seu aspecto
havia mudado e o redivivo não se mostrava tão apavorante. No entanto, depois da
conversa que tiveram com ele, aqueles curiosos retornaram ao povoado levando
nos olhos a loucura. Outros visitantes acorreram e todos, jovens e velhos,
voltaram com uma nova expressão nos rostos. Aquela sombra que Lázaro trazia em
si apoderava-se de quantos dele se aproximavam. Ninguém, porém, repetia as
palavras que ele poderia ter dito...
Naquele
tempo, vivia em Roma um célebre escultor chamado Aurelius. Suas obras eram de
rara beleza. No entanto, o artista nunca se mostrava satisfeito, e dizia
sempre:
—Ainda
não pude apanhar o calor da lua nem o fulgor do sol. Não existe alma no meu
mármore, não há vida nos meus belos bronzes.
Quando
lhe chegaram aos ouvidos os estranhos rumores acerca de Lázaro, o escultor
decidiu ir à Judéia afim de ver o homem miraculoso que se reerguera dentre os
mortos. Amava a vida e pensou fazê-la de novo amar pelo ressuscitado.
Achava-se
o irmão de Marta e Maria sentado à porta da casa abandonada quando o rico
romano, seguido por um escravo, dele aproximou-se, chamando:
—
Lázaro!
O
interpelado fitou em silêncio aquele estrangeiro formoso e magnificamente
trajado, que prosseguiu:
—
Não és belo realmente, mas não tenho medo de ti, como os demais. Permitis que
aqui permaneça esta noite?
—
Não tenho cama.
— Ficarei sentado; acenderemos a luz.
— Não tenho luz.
— Conversaremos nas trevas como dois amigos.
Deves ter vinho.
—
Não tenho vinho.
Riu-se
o romano:
—
Compreendo agora Porque és tão sombrio e porque não aprecias a tua segunda
vida.
Com
um gesto, afastou o criado:
—
Agora estamos sós — prosseguiu — e deves tratar bem o teu hóspede, Lázaro.
Estiveste, pois, três dias no túmulo? Mas por que usas estes farrapos que devem
ter sido outrora vestes de noivado? És noivo?...
O
sol desaparecera no céu e a noite tudo envolvia. Em tom mais baixo, o artista
continuou:
—
No escuro pareces maior, Lázaro. Gostaria que tivéssemos um pouquinho de luz...
estou com frio... Estás olhando para mim? Sim, sinto que me estás olhando. E
agora sorris.
Silenciosa
pairava a noite sobre a terra. Com voz um pouco trêmula, o escultor prosseguiu:
—
Sabes? Sou um grande artista. Dou vida ao frio mármore e lanço ao fogo o
poderoso bronze, a fim de trabalhar nele. Por que me tocas com tua mão gelada?
—Vem
— disse Lázaro. — És o meu hóspede.
E
penetraram na casa.
Na
manhã seguinte, o escravo veio à procura do amo. Encontrou-o sentado ao lado da
Lázaro e clamou num soluço:
—
Senhor, o que te sucedeu?!...
No
mesmo dia Aurelius voltou para Roma. Não falava e parecia buscar alguma coisa.
Em casa, amigos e parentes estranharam-lhe o aspecto, mas ele limitou-se dizer:
—
Achei! E logo se pôs a trabalhar, não permitindo que pessoa alguma se
aproximasse do atelier. Mas, uma manhã, chamou os amigos e disse:
—
Vejam o que eu criei.
E,
vendo a obra, os amigos sentiram uma grande tristeza. Era um monstro que não
possuía nenhuma forma humana, representando — sentia-se — alguma coisa que não
era possível precisar. Na base da estátua, como que posta ali ao acaso, via-se,
maravilhosamente talhada, uma borboleta de asas transparentes, prestes, dir-se-ia,
a voar.
—Porque
colocaste aqui esta maravilhosa borboleta, Aurelius? — indagou alguém.
—
Ignoro — respondeu o artista.
Então
um amigo disse:
— Esta obra é horrível, meu caro. Deves
destruí-la.
E,
tomando do martelo, despedaçou o monstro, deixando apenas, intacta, a
borboleta.
A
partir daquele dia, o escultor nada mais criou. Quando alguém lhe falava em
arte, em beleza, apenas respondia:
—
Tudo isto é mentira.
Em
seu jardim, sem que ninguém o visse, passava longas horas a embriagar-se de
sol. Brancas e vermelhas borboletas voavam-lhe em torno, junto a uma cisterna
de mármore onde se via um sátiro...
E
um dia, pelo grande Aurelius, foi Lázaro chamado a Roma. Vestiram-lhe suntuosas
vestes de noivado. E, assim, à espera de misteriosa noiva, devia ele permanecer,
até que viesse a morte. Em triunfo, ao som de trombetas, foi conduzido. Mas, à
sua passagem, as estradas permaneceram desertas. A seguir, foi embarcado no
mais triste dos navios que jamais cruzou o azul Mediterrâneo. Muita gente
estava a bordo, mas o navio guardava um funéreo silêncio e as próprias ondas
calavam o seu marulhar. Lázaro permanecia mudo, de todos afastado, sentado ao
sol. Mais pareciam sombras os viajantes, e se um temporal houvesse caído
durante a travessia, nenhum deles faria, decerto, o menor esforço para salvar a
vida. Mudos, imóveis, passavam horas contemplando o abismo do oceano. Mas o próprio
abismo parecia vazio...
Grande
rumor despertou na Cidade Eterna a chegada daquele que ressurgira dentre os
mortos. Qual fantasma vivo, foi levado de um lado para outro. Um homem que
adorava o vinho chegou-se a ele, gritando:
—Bebe, Lázaro, bebe! Em Roma tudo é alegria!
Mas,
encontrando o olhar do irmão de Marta, o amante do vinho para sempre
entristeceu e, embora nunca mais bebesse, vivia embriagado por sonhos
terríveis.
Um
par de jovens namorados aproximou-se do recém-chegado e o mancebo assim falou:
—
Vê como somos felizes. Não há nada mais forte do que o amor!
Lázaro
olhou para eles... O jovem par continuou enamorado, mas aquele radioso amor
tornou-se mais fúnebre do que os ciprestes dos cemitérios.
Um
orgulhoso sábio foi ter com Lázaro e assim falou:
—Conheço
todas as mais terríveis coisas que me possas dizer!
E
poucos minutos depois, o sábio realizava que o conhecimento do horrível não é o
horrível, e que a vista da morte não é a morte. E sentiu que, aos olhas do
Infinito, sabedoria e loucura são a mesma coisa, porque o Infinito (o Absoluto)
não as conhece. Sacudindo a cabeça, gemeu:
—
Não posso pensar!
Em
vista de todas essas coisas, começou-se a dizer que perigoso seria levar o
ressuscitado à presença do imperador. Augusto nada quis ouvir e ordenou que lhe
conduzissem Lázaro. Foi decidido, então, que se mudasse à custa de pinturas e
arranjos artísticos o fúnebre aspecto daquele homem. Indiferente, submeteu-se
ele àquela transformação. Apenas não ousaram mudar-lhe as vestes de noivado,
nem tampouco puderam mudar-lhe os olhos. Aqueles olhos escuros onde havia
escrita a medonha palavra: Lá...
Lázaro
nem pareceu notar a magnificência dos apartamentos reais. Por toda parte, via
sempre, imutavelmente, o deserto. César preparava-se para receber o estranho
visitante. Cônscio de sua coragem e de seu poder, decidiu que havia de vê-lo a
sós. E, quando ele entrou, disse:
—
Não fites teus olhos nos meus, Lázaro. Disseram-me que a tua cabeça se
assemelha à da Medusa, que tudo transforma em pedra. Eu, porém, quero olhar-te.
Examinou
o recém-chegado e o seu traje festivo. Sorriu:
—
Não é terrível a tua aparência; conversemos agora.
Sentou-se
Augusto e indagou:
—
Por que não me saudaste ao entrar?
—
Não julguei que fosse necessário.
—
És cristão?
—
Não.
—
Estimo — tornou César. — Não gosto dos cristãos. Mas quem és?
Com
algum esforço, Lázaro respondeu:
—
Eu era um morto.
—
Assim ouvi dizer. Mas quem és agora?
Com
maior esforço ainda, o interrogado repetiu:
—
Eu era um morto.
—
Ouve, estrangeiro — fez o Imperador impaciente. — Meu império é de vivos e não
de mortos, és demais aqui. Não sei quem és, nem o que viste Lá. Mas, se mentes,
odeio as tuas mentiras, e, se dizes a verdade, odeio a tua verdade. Em meu
coração sinto a vida; em minhas mãos, o poder. Não sentes o palpitar da
existência?
E,
estendendo os braços, Augusto clamou:
—
Bendita sejas tu, divina Vida!
E
como Lázaro permanecesse silencioso, prosseguiu:
—
Tua verdade assemelha-se a uma espada nas mãos de um noturno assassino e eu te
condeno à morte por seres um assassino. Mas, primeiro, quero olhar em teus
olhos. Não sou covarde como aqueles que te receiam. Fita-me, Lázaro!
A
princípio, pensou Augusto que um amigo o fitasse, tão doces, tão atraentes eram
aqueles olhos. Não revelavam horror: apenas descanso. Neles, o Infinito se
refletia com a ternura de uma amante, com a meiguice de uma mãe. Depois, pareceu
que tudo se tornava frio...
—
Olha-me ainda, Lázaro!
E
foi como se o tempo cessasse, como se as coisas atingissem ao fim.
O
trono de Augusto, recentemente erguido, tombou em pedaços. Roma caiu silenciosa
em ruínas. Uma outra cidade ergueu-se, mas só o vazio nela reinava. O negro
invólucro do Infinito tudo envolveu.
—Chega!
— ordenou o imperador.
O
seu tom, porém, era indiferente. Com os olhos turvos, disse ainda:
— Tu me matas, Lázaro!
Estas
palavras de desespero foram a sua salvação. Pensou no povo cujo destino tinha
nas mãos e uma angústia invadiu-lhe a alma. Via toda aquela gente transformada
em sombras perdidas no Infinito e sentia por todas aquelas pobres sombras uma
grande ternura. E, assim, entre a vida e a morte, pouco a pouco voltou à
existência para encontrar, em seus sofrimentos e alegrias, um refúgio contra as
trevas, o vácuo, o pavor do Infinito.
—Agora,
não me matarás, Lázaro, mas eu te matarei. Vai.
Veio
a noite e o divino Augusto banqueteou-se alegremente. Mas, por vezes, seus
braços quedavam-se imóveis e seu olhar fazia-se sombrio. Um gélido horror
percorria-lhe o corpo. E, no dia seguinte, por ordem do imperador, os olhos de
Lázaro foram queimados e ele foi mandado de volta para a sua cidade natal. Nem
mesmo o César ousara matá-lo.
Lázaro
voltou para o deserto que o recebeu na ardência do sol. De novo sentou-se no
sítio habitual, erguendo para o céu as pupilas mortas. Ninguém se aproximava
daquele lugar; ninguém junto ao cego passava.
E,
num fim de tarde, quando o sol desaparecia entre nuvens de fogo, na direção do
astro que se sumia, Lázaro, tropeçando entre as pedras, os braços em cruz,
pôs-se a caminho. Nunca mais voltou. Assim terminou a segunda vida daquele que,
durante três dias, repousara num túmulo; daquele que, por milagre, se reerguera
do mistério da morte.
Tradução de autor
desconhecido do séc. XX.
Fonte: Almanaque
Correio da Manhã, 1943.
Ilustração: Henry
Ossawa Tanner (1859 – 1937).
Infelizmente essa versão do conto não está completa...
ResponderExcluirAqui você pode notar uma versão completa.
http://elespejogotico.blogspot.com/2015/03/lazaro-leonidas-andreiev-el-dia-que.html
Ela existe também no livro "Maravilhas do Conto Bíblico" em português.
Um abraçø
Muito grato pelo comentário, Lucas.
ResponderExcluirÉ verdade. Trata-se de uma versão condensada, publicada orignariamente no "Almanaque Correio da Manhã" em 1943.
Abraços.
Paulo
Muito obrigado pela dica, Milton. Valeu!
ResponderExcluirAbraços.
Paulo
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