MATER DOLOROSA - Conto de Horror - Paulo Soriano
MATER DOLOROSA
Paulo Soriano
Paulo Soriano
Para Pop
“...
e esta vida
embora
não sendo minha
é possível”
Aldo de Lima
I
A
súbita dor fora tão intensa, tão brutal, que Maria se viu acordada no meio da
noite, dobrada sobre o próprio corpo, uma das mãos mergulhada no ventre que
ardia em fogo, a outra em riste, como garras, agitando a escuridão.
Cambaleou
até a janela, mergulhando a cabeça desgrenhada na noite alta, procurando ar.
Mas a boca — tão aberta quanto os olhos vesgos — aspirou apenas o vácuo.
Então
tossiu, como se expulsasse demônios do peito, para depois sorver, aliviada, a
podridão que exalava da noite morna.
Ainda
se refazia quando a criança chorou.
Maria
içou, com esforço sobre-humano, a menina que jazia, inquieta, no caixote de
maçã, oferecendo-lhe o seio murcho.
A
criança pareceu confortada ao simples contato com a teta, que se abria em tiras
de carne viva. Mas, quando sugou apenas um filete de sangue aquoso, desatou num
choro redobrado, uma frustração e um protesto tão profundos que as paredes do
barraco tremeram de compaixão. A mãe contorceu-se de dor, a chama do estômago
subiu aos seios e ganhou garganta. Maria tossiu novamente, respirou a noite
podre, e depois chorou baixinho. A criança protestava em seu colo, agitando
pernas e braços, uivando para a noite como um animal faminto e feroz.
*
João
Sabino mergulhou no ventre da coisa. Venceu, devagar, as ruelas toscas que eram
o intestino do Alto da Peste. Àquela hora, já não mais se viam os pivetinhos,
com seus ventres enormes pululando de vermes, correndo de um lado para o outro,
brincando picula no esgoto a céu aberto. Nem se viam as mulheres com lata d’água
na cabeça, rebolando as ancas flácidas enquanto ganhavam morro acima. A noite
grassava, e os homens se reuniam em segurança para uma rodada de cachaça e um
bom carteado.
No
coração do Alto da Peste, o único prédio de alvenaria, mas sem reboco, com tijolos
carcomidos pelos musgos, deitava as suas luzes elétricas sobre os copos de
cachaça e a mesa de bilhar.
João
Sabino foi ao balcão, pegou um copinho e aboletou-se numa mesa, onde Zé Galo e
Rabicó batiam velhíssimas pedras de dominó.
Rabicó
misturou as pedras com as suas mãos pretas e enormes. Quando as levantou, os
jogadores caíram sobre as pedras como galinhas disputando milho.
— O serviço foi uma porra — disse Zé Galo, com
o cigarro apertado nos dentes, enquanto João Sabino conferia as pedras que
acabara de escolher. Tinha o olhar desolado. Zé galo saiu com uma carroça de
sena. Parecia satisfeito. Rabicó limitou-se a servir.
— Eu toco — grunhiu João Sabino, ainda fazendo
careta por causa da cana que entrara mal, acompanhando com a pedra o ritmo da
música que esvaía do velho pulmão de uma radiola de fichas.
—
Foi uma porra mesmo! Imagine que os danado dos pastor alemão não comero a bola.
Não teve jeito de comer. Tá vendo que eu não ia me arriscar por causa de uma TV
a cores? Toco também.
Rabicó
cuspiu a cachaça antes de anunciar a batida, com um estalo vigoroso. Virou-se
para Zé Galo:
—
Tu é pé-de-chinelo, otário. E medroso. Não dá pr’estas coisas. Faz como o João,
se especializa.
Alguém
embaralhou as pedras. Meditabundo, Zé Galo respondeu de mansinho, olhando
apenas para a sua quina-e-quadra:
—
Na especialidade de João Sabino, eu não entro. Não nasci para pegar no pesado,
nem para ter patrão. Meu negócio é ser autômuno.
—
É autônomo — corrigiu João Sabino, que estudara no Mobral, e bem sabia que ser
autônomo, para a vida que o Galo vivia, significava deitar a mão no que é
alheio.
Zé
Galo mexeu-se nervosamente na cadeira, quase deixou as pedras caírem, mas não
ficou por baixo. Sabia muito bem o ponto fraco de todos com quem jogava, quer
no jogo mesmo, quer na vida. Mas quando o respondeu, o fez pausadamente.
—
Eu não como da palavra bonita. Nem tu também. E quem come tua mulher não é tu,
otário. Diz se a galega não tem cicatriz de ponta de cigarro bem no morro da
xereca?
Rabicó,
um homem gordo e preto, e com filariose na perna esquerda, caiu num sorriso
brutal. Engasgou-se, a face avermelhou-se até onde podia. Cuspiu no chão e
esvaziou o seu quartinho de cachaça.
Os
olhos azuis de João Sabino injetaram-se de ódio e cachaça. E o ódio era maior
que a vergonha. Levantou-se num ímpeto, derrubando a mesa. Empunhou o gargalo
da garrafa de cachaça que lhe caíra quase aos pés, e muito ao alcance das mãos.
As extremidades pontiagudas tremeluziram.
Zé
Galo saltou para trás, desembainhando a peixeira. Mas Rabicó, com os seus
punhos de aço, acertou-o quase no queixo. O larápio franzino, ágil e manhoso,
perdera a faca na queda, mas ganhou o beco em carreira desabalada.
—
Não quero confusão em meu bar! — Gritou Rabicó para a rua, arrastando a perna
inchada, enquanto o Galo descia a ladeira como um foguete. — E você, Sabino, já
tá muito bêbado. Arriba para casa que eu quero fechar.
—
Me dá mais um quartinho pro corno aqui ... Pro corno aqui...
—
Que corno que nada. Nada de quartinho.
—
Só uma lapada.
—
Foi tu mesmo que dissesses, noite dessas, que apagou o cigarro no negócio de
tua mulher faz anos. O negão só quer te perturbar. Não caia nessa, visse?
—
Não interessa. Eu não disse nada. Ladrão filho da puta!
João
Sabino engoliu, de gute-gute, a pinga que o gordo servira a contragosto. Depois
pagou e saiu para o ódio, para a vergonha, para a noite imunda.
E
para o destino inexorável.
*
Na
noite que beirava a madrugada, a criança loura e esquálida dormia sobre ventre
dolorido da mãe.
A
mulher, saudosa dos bons e difíceis dias do Sertão, quando o seu homem ainda
era bom, contemplou a filha sob a luz rubra que escorria do candeeiro de lata e
voltou a chorar, enquanto depositava a criança no berço — um gradil de maçã
forrado de trapos — e cantava baixinho, comovida, os lábios colados nos ouvidos
da pequerrucha:
“Dorme
Mariana
Dorme,
dorme, meu amor
Painho
foi pra roça
E
ainda não voltou ...”
II
Maria
cochilava quando ouviu os pontapés na porta do barraco. Era ele que voltava,
bêbado de novo, destilando ódio e cachaça.
A
dor de Maria recrudesceu. Quase vomitou, expondo o medo para fora.
Quando
Maria abriu a porta, levou um pontapé no estômago, à guisa de boa-noite.
Curvou-se sobre o corpo e rolou no chão de barro batido. Golfou um sangue feio
e pegajoso, mas que a fez respirar e expulsar um suspiro curto, que sabia a
fragilidade do alívio.
—
Tu trepou com Zé Galo, sua vadia de uma molesta — foi o que disse.
A
mulher gemia de dor, chorava de medo e protestava por Mariana, e isso mais
irritava, mais ainda excitava o marido. Antes de levar outro pontapé, agora nas
costas, que estalaram, Maria balbuciou:
—
Trepei não. Trepei não, João.
—
Bota comida que eu tô com fome — gritou João Sabino, aplicando um safanão no
ouvido da esposa.
Maria
se levantou, curvada para frente, a dor voltando a envolver sua garganta, como
uma tenaz. Voltou com um prato pronto e os olhos muito assustados, prenhes de
dor.
—
João — disse com a voz humilde —, vamos voltar para Ouricuri. Meu leite secou,
é de hoje que eu te digo. Não tem leite para a criança.
—
É culpa tua se não tem leite.
Quando
deu a última garfada, João parecia mais calmo. Quando bebia — e ultimamente bebia
todos os dias —, costumava dar com a língua nos dentes. Diziam os mais sóbrios
que se gabava das malvadezas que fazia. A história da cicatriz era troça de Zé
Galo, certamente. Mas ainda tinha as suas dúvidas. Homem que é homem sempre
duvida. Ao se levantar da mesa, meteu o cotovelo no estômago de Maria:
—
Se vire para arranjar leite para a putinha, que eu já gastei tudo de cachaça.
Resmungando,
deitou no colchão sujo e puído, que servia de cama de casal. Adormeceu
imediatamente.
Lá
fora, a Lua fedia nas águas infectas do Capibaribe.
*
João
Sabino despertou de chofre. Ainda estava bêbado, mas a boca amargava e a cabeça
latejava como se fora uma grande pústula. Bradou para que a mulher desse jeito
na boca da putinha, que não parava de berrar e ele queria dormir para acordar
cedo e ir trabalhar. Maria levantou, tomou a criança nos braços e ensaiou um
acalanto que não dobrou a primeira estrofe.
—
Já não basta esta miséria de menina e tu ainda canta! Cala a boca e faz esta
peste dormir, visse?
—
Você tá doido, João? Não vê que a menina está com fome? Já não te disse que meu
leite secou? Desde ontem eu não peço para tu comprar o leite em pó?
—
Cala a boca, porra! Eu não já disse que quero dormir?
João
cobriu a cabeça com uns trapos que teimavam em ser um lençol. E esperou,
impaciente, que a criança calasse. Mas ela insistia em gritar, e gritar tão
forte quanto forte era a sua fome, tão alto quanto os seus pequenos pulmões
permitiam que gritasse.
A
mãe fazia psiu, agitava ainda mais rapidamente a criança em seu colo dolorido.
Mas a fome da criança era vigorosa, crescia a cada minuto, tornava-se
gigantesca como a impaciência do pai.
—
Cê vai ver se essa putinha agora não cala — cuspiu João para si próprio, os
punhos retesados, a voz tremendo de raiva e indignação.
João
se levantou. Cambaleando, foi ao quintal. E quando voltou empunhava uma foice
enferrujada.
João delirava.
Maria,
acuada como um animal, apertou Mariana contra o seio. Correu, mas foi agarrada
pelos cabelos. Caiu de costas. O marido avançou, ficou de quatro sobre o vente
da mulher e a espancou com uma fúria alucinada. Mas, a cada pancada que saía da
destra retesada, mais ainda a mulher comprimia a criança contra o peito. Uma
golfada de sangue escorreu do nariz fraturado de Maria, que, num reflexo
fatídico, levou a mão ao rosto. Depois se arrependeu. O gesto facilitou o
trabalho de João. O Homem arrancou a criança do braço de Maria, jogando a
menina no chão de barro batido, como se fora um fardo inútil. A criança, por um
longo momento, parou de chorar. João arquejava. Afrouxou a mão que empunhava a
foice, certo da vitória. O problema parecia finalmente resolvido. Mas Mariana,
para o desespero da mãe, e ensandecimento do pai, recrudesceu no choro. Agora
berrava de fome e de dor. João pensou na última cartada.
A
foice deslizou.
João
ergueu a criança com ambas as mãos. E apertou, com seus dedos vigorosos, até
ouvir o estalido de costelas quebrando. A criança arregalou os olhos, e desatou
a uivar como um filhote de cachorro ferido.
A
mãe arremessou contra o homem, cingindo-o por trás, à altura do peito,
mergulhando as unhas afiadas. Num ímpeto, gemendo de dor, João Sabino largou a
criança e investiu contra a cabeça da mulher com um punho cerrado. Neste
momento, lembrou-se — com um prazer quase sensual — do dia em que, numa aposta,
entre os colegas do canteiro de obras, enfiara um prego no compensado com o
dorso da mão fechada. João sorriu ao ouvir o barulho oco que a pancada fazia.
Depois chutou a mulher, antes mesmos que ela atingisse o chão.
—
Vamos ver se eu não durmo agora! — Foi o que disse João, enquanto tateava o
chão escuro, até encontrar a foice. E ergueu o ferro recurvo, à altura da nuca,
baixando violentamente, decepando a mão da menina. A foice voltou a descer,
indignada, pois errara o alvo. Mas agora, com a satisfação de quem se redime
vitorioso de um deslize inconsequente, o golpe presto atingiu a putinha na
barriga, partindo-a ao meio. Antes que o ódio arrefecesse, o chão de terra
batida precipitou-se, empapou-se do sangue que agora escorria do pescoço da
criança, logo em seguida ao golpe certeiro, que fez a cabecinha rolar, parando
com os olhos vítreos mirando para o lado, onde estava a mãe. Maria,
semiacordada, encolhida de tantas e tantas dores, viu a foice subir e descer
freneticamente. Aos poucos, as mãos de João Sabino vergaram-se ao peso do
cansaço. Quando parou, o homem estava exausto.
—
Chora agora, descarada — disse a coisa, ao se afastar.
*
Maria
ergueu a cabecinha decepada contra a luz do candeeiro. Os olhinhos azuis, muito
abertos, haviam, decerto, congelado a imagem do pai, quando a foice descia
sobre o pescoço. Os lábios, porém, pareciam sorrir.
A
mãe beijou os lábios da filha, envolveu a cabecinha no colo, juntou alguns
trapos para aquecê-la, e a ninou, vagarosamente (como se só a cabeça bastasse),
sussurrando-lhe aos ouvidos o acalanto interrompido:
“...Dorme,
dorme, meu amor
Painho
foi pra roça
E
ainda não voltou...”
E
o Recife adormecia, ficava a sonhar, ao som da triste melodia ...
III
Depois
de arrebatar, dos braços de Maria, a cabecinha que o amor maternal acalentava,
João recolheu os pedacinhos da putinha, e os enterrou no quintal, junto à
bananeira, cujos frutos douravam, foscamente, à luz opaca da Lua.
Mas
não os sepultou de todo. No chão, semioculta na escuridade, uma mãozinha
esboçava o apodrecer. A mãozinha da putinha Mariana.
João
voltou para cama, para dormir, finalmente, o sono dos justos.
IV
Quando
o Sol da manhã incidiu sobre o barraco, e o calor insuportável do telhado de
zinco arrancou o Homem da cama, Maria já trouxera a marmita, pousando-a sobre a
mesa puída. Não havia ódio, desespero. Havia mistério em seu olhar. E na
marmita também. Mariana estava morta. Mas, mesmo assim, a menina saberia o que
fazer.
João
ainda não sabia, ao certo, o que fizera. A roupa tingida do sangue coagulado
pouco ajudou para aliviar a memória, recolhida em algum lugar na cabeça, que
lhe doía e latejava como um grande abcesso. Apenas quando saiu ao quintal, para
tomar um merecido banho, foi que ele percebeu, ao pé da bananeira que
frutificava, um montículo inchado no chão. Parecia uma barriga grávida de feto
morto, insinuando-se das entranhas da terra. Maria, cheia de mistérios, o ouviu
comentar:
—Ah!
Matei a putinha.
V
A
hora do rancho era a mais esperada. João preparara argamassa a manhã inteira,
ouvindo a ladainha do pedreiro mal-humorado, enquanto bebericava a cachaça, às
escondidas, para afugentar a ressaca que não queria ceder.
Os
colegas de pá e esquadro avolumaram-se num patamar voltado para o nascente, sob
a sombra. Alguns traziam marmitas, outros se contentavam em roer um sanduíche
de pão dormido, com a carne mui gentilmente cedida por um camarada mais
abastado.
João
foi o último a chegar. Os mais esfomeados chegaram-se junto a ele, que, como
sempre, fazia suspense e ria, antes de abrir a marmita.
E
João Sabino abriu a marmita. Para a sua desgraça, abriu a marmita. Amaldiçoou a
putinha. Xingou a mulher. E maldisse o pão nosso de cada dia.
Porque,
acima do arroz e do feijão, pousada sobre a farinha de mandioca, alguma coisa,
algo lânguido, cianótico, parecia se agitar aos olhos de João Sabino, mais
eloquente que um choro esfomeado.
Pedreiros,
ajudantes e carpinteiros recuaram de pavor.
Sobre
a farinha de mandioca, estrategicamente posta no lugar onde deveria estar a
carne seca, com o polegar afundado no feijão, e o indicador revirado para cima,
em riste para João, reluzia, azulada, uma mãozinha delatora.
A
mãozinha da putinha Mariana.
Nota:
“Mater Dolorosa”, o segundo conto escrito pelo autor, foi uma das narrativas
laureadas no “Prêmio Asabeça”, edição de 2007.
O que o inspirou escrevê-lo, em meados da década de 90, foi uma notícia
de jornal. Subjacente, estava a leitura recente de “Meninos da Areia”, de Jorge
Amado, itabunense como ele.
Ilustração: Jean-Léon
Gérôme (1824 - 1904).
Esse conto cumpre com maestria o seu papel! Mexe e remexe meus sentimentos cada vez que o leio. Literariamente eu o amo! A linguagem, a ambientação, os personagens, o clima pesado, os estereótipos, a paisagem, tudo tão perfeitamente colocado, encaixado. Traz uma familiaridade e estranheza que me desconcerta. Há outros que gosto muito, muito mesmo, mas MATER DOLOROSA é definitivamente o meu preferido; e MEU!
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