O MENDIGO - Conto Cruel - Guy de Maupassant
O
MENDIGO
Guy
de Maupassant
(1850
- 1893)
Ele
conhecera dias mais felizes, apesar do estado de miséria e de doença em que ora
se encontrava.
Na
idade de quinze anos, ficara com as pernas esmagadas por uma carruagem, na
estrada real de Varville. Desde então mendigou, arrastando-se ao longo dos caminhos,
através dos pátios das quintas, balouçado nas muletas, que lhe tinham feito
levantar os ombros à altura das orelhas. A sua cabeça dir-se-ia enterrada entre
duas montanhas.
Enjeitado,
encontrado num fosso pelo cura de Billette, na véspera do dia de Finados, e
batizado, em razão disso, Nicolas Toussaint, educado por caridade, ficara
estranho a todo e qualquer grau de instrução, estropiado depois de ter bebido
alguns copos de aguardente oferecidos pelo padeiro da aldeia, para que ele
fizesse rir, não tardou em dar em vagabundo, e mais nada sabia fazer do que
estender a mão à caridade.
Outrora,
a baronesa d'Avray concedia-lhe, para dormir, uma espécie de nicho cheio de
palha, ao lado do galinheiro, na herdade que se ligava ao castelo. E ele ali
estava ao abrigo, certo de, nos dias de grande fome, encontrar sempre um pedaço
de pão e um copo de cidra na cozinha. Muitas vezes, recebia também alguns sous
atirados pela velha senhora do alto da sua escadaria ou das janelas do seu
quarto. Porém, ela morrera.
Nas
aldeias, não lhe davam nada: conheciam-no por demais; estavam fartos de o ver;
havia quarenta anos que o viam passear a deformidade de seu corpo andrajoso
sobre as suas duas patas de madeira.
Todavia,
ele não queria deixar aqueles sítios, porque não conhecia outra coisa sobre a
Terra a não ser aquele canto de país, aquelas três ou quatro aldeias onde
arrastara a sua vida miserável.
Marcara
fronteiras à sua mendicidade e não teria nunca passado os limites que se
acostumara a não ultrapassar.
Ignorava
se o mundo se estenderia ainda muito para além das árvores que sempre tinham
servido de limite à sua vida. Nem sequer o perguntava a si próprio. E quando os
camponeses, cansados de o encontrarem todos os dias à beira dos seus campos ou
ao longo dos seus fossos, lhe gritavam: — Porque não vais tu para as outras
aldeias, em lugar de andares sempre a muletar por aqui? —, ele não respondia, e
afastava-se, tomado de um medo vago pelo desconhecido, de um medo de pobre que
receia confusamente mil coisas, as novas caras, as injurias, os olhares de
desconfiança e suspeita das pessoas que o não conheciam, e os gendarmes que vão
dois a dois pelas estradas e que o faziam esconder, por instinto, nas moitas ou
por detrás das pedras.
Quando
os via de longe, reluzentes ao sol, encontrava de repente uma agilidade
singular, uma agilidade de monstro, para alcançar qualquer esconderijo. Saltava
nas muletas, e deixava-se cair à maneira de um trapo, rolando como uma bola,
tornando-se pequenino, invisível, acaçapado como uma lebre na sua loca,
confundindo os seus trapos ruços com a terra.
Ele
não tivera, no entanto, nada com eles. Mas aquilo estava-lhe na massa do
sangue, como se houvesse recebido aquele temor e aquela manha dos seus
ascendentes, que não conhecera.
Não
tinha refúgio, nem teto, nem cabana, nem abrigo. Dormia por toda a parte, quer
de verão quer de inverno, e introduzia-se nas granjas ou nos estábulos com uma
ligeireza notável. E raspava-se sempre antes que houvessem dado pela sua
presença. Conhecia os buracos para penetrar nas construções; e o manejar das
muletas havia-lhe dado aos braços um vigor tão surpreendente, que trepava só à
força de pulso até os celeiros de forragens, onde se conservava quatro ou cinco
dias sem bulir, quando havia recolhido no seu giro as provisões suficientes.
Vivia
como os animais dos bosques no meio dos homens, sem conhecer ninguém, sem amar
ninguém, não excitando aos camponeses mais que uma espécie de desprezo
indiferente e de hostilidade resignada. Tinham-lhe posto a alcunha do “Sino” porque
se balouçava, entre as suas duas muletas de pau, como um sino se balouça entre
os seus suportes.
Havia
dois dias que não comia. Ninguém já lhe dava nada. Por fim, nem já o queriam
ver. Os camponeses, dos seus portais, gritavam-lhe quando o viam chegar:
—
Vê lá se te queres pôr a andar, tonante! Ainda não há três dias que te dei um
bocado de pão!
E
ele girava sobre as suas estacas e dirigia-se à casa vizinha, onde o recebiam
da mesma maneira.
As
mulheres declaravam de porta para porta:
—
Mas é que a gente não pode dar de comer a este mandrião todo o ano.
Todavia,
o mandrião tinha necessidade de comer todos os dias.
Tinha
percorrido Saint-Hilaire, Varville e les Billettes, sem recolher um cêntimo nem
uma simples côdea. Só lhe restava uma esperança: era, Tournolles; mas era-lhe
preciso caminhar ainda duas léguas pela estrada real, e sentia-se cansado a
ponto de não poder arrastar-se mais, tendo o ventre tão vazio como a algibeira.
Apesar
de tudo, pôs-se em marcha.
Era
em dezembro, um vento frio percorria os campos, sibilava nos ramos nus; e as
nuvens galopavam através do céu baixo e sombrio, apressando-se não se sabe para
onde. O estropiado caminhava lentamente, deslocando os seus suportes um após
outro com penoso esforço, escorando-se na perna torcida que lhe restava,
terminada por
um
pé aleijado e calçado por um trapo.
De
tempos a tempos, sentava-se no fosso e descansava alguns minutos. A fome punha
uma grande mágoa na sua alma confusa e pesada. Ele só tinha uma ideia: “comer”,
mas não sabia por que meio.
Durante
três horas, penou na comprida estrada; depois, quando avistou as arvores da
aldeia, apressou os seus movimentos.
O
primeiro lavrador que encontrou e ao qual pediu esmola, respondeu-lhe:
—
Tu ainda por aqui? Velho marau! Então eu nunca me verei livre de ti?
E
o “Sino” afastou-se. De porta em porta, correram-no, recambiaram-no, sem lhe darem
nada. E ele continuava, apesar disso, o seu giro, paciente e obstinado. Não
recolheu um centavo.
Então
visitou as herdades, caminhando através das terras amolecidas pelas chuvas, por
tal forma extenuado que nem sequer podia levantar as muletas. Escorraçavam-no
de toda a parte. Era um desses dias frios e tristes em que os corações se
fecham, em que os espíritos se irritam, em que a alma está sombria, em que a
mão não se abre nem para dar nem para socorrer.
Quando
acabou de visitar todas as casas que conhecia, foi cair ao canto de uma vala,
ao longo do pátio do tio Chiquet. Despegou-se, como se dizia, para exprimir a
maneira por que se deixava cair de entre as muletas, que fazia escorregar por
debaixo dos braços. Ficou por largo tempo imóvel, torturado pela fome, mas era
muito bruto para que pudesse penetrar a sua insondável miséria.
Esperava
não se sabe o quê, naquela vaga esperança que existe constante em nós.
Esperava
no canto daquele pátio, sob o vento gelado, o auxílio misterioso que se espera
sempre do céu ou dos homens, sem que se saiba como, nem por quê, nem por quem
ele nos poderá chegar. Passava um bando de galinhas pretas, buscando a sua vida
na terra que alimenta todos os seres. A cada instante, picavam com uma bicada
um grão ou um inseto invisível, depois continuavam a sua busca lenta e segura.
O
“Sino” olhava para elas sem pensar em nada; depois veio-lhe, mais ao ventre que
propriamente à cabeça, mais à sensação que à ideia, que um daqueles animais
seria bom para comer assado no borralho de uns troncos secos. A suposição de
que ia cometer um furto nem de leve roçou pelo seu espírito. Pegou numa pedra
que se achava ao alcance da mão, e, como a tinha pontaria, matou redondamente,
atirando logo por terra a ave que estava mais próxima. O animal caíra de
flanco, remexendo as asas.
As
outras fugiram, balouçando-se nas suas patas delgadas, e o “Sino”, escalando
novamente as suas muletas, pôs-se em marcha para apanhar a sua caça, com
movimentos iguais aos das galinhas.
Ao
chegar perto do pequeno corpo preto, manchado de vermelho na cabeça, recebeu um
empurrão terrível pelas costas, que o fez cair das muletas e o fez rolar a dez
passos para a frente.
E
o tio Chiquet, exasperado, precipitando-se sobre o gatuno, encheu-o de
pancadas, batendo como um furioso, como bate um camponês roubado, com o punho e
com o joelho por todo o corpo do enfermo, que não podia defender-se.
As
pessoas da herdade chegaram por sua vez e puseram-se com o patrão a sovar o
mendigo. Depois, quando se cansaram de bater, agarraram-no, levaram-no e
fecharam-no na casa da lenha, enquanto iam à cata dos gendarmes.
“Sino”,
meio morto, sangrando e estourando de fome, ficou deitado no chão. Chegou a
tarde, veio a noite, depois a aurora, e ele sem comer.
Pelo
meio dia, os gendarmes apareceram e abriram a porta com precaução, esperando
uma resistência, porque o tio Chiquet dizia ter sido atacado pelo vadio e
ter-se defendido a grande custo.
O
cabo bradou:
—
Vamos! Leva arriba!
Mas
“Sino” não se podia mexer. Ainda tentou içar-se nos seus suportes, mas não o
conseguiu. Julgaram que era fingimento, que era manha, que era má vontade do
malfeitor, e os dois homens armados trataram-no asperamente, empunharam-no e
plantaram-no à força sobre as muletas.
O
medo apossara-se dele, aquele medo inato que os desgraçados têm das correias
militares, o medo da caça em presença do caçador, do rato diante do gato. E,
com esforços sobre-humanos, lá conseguiu pôr-se em pé.
— Marche! — disse o cabo.
Ele
marchou. Todo o pessoal da herdade o via partir. As mulheres mostravam-lhe o
punho; os homens chacoteavam-no, injuriavam-no: tinham-lhe dado fim! Estavam
livres.
Ele
afastou-se entre os dois guardas. Achou a energia desesperada que lhe era
necessária para se arrastar ainda até a noite, embrutecido, não sabendo nem
sequer o que lhe sucedia, assustado por demais para que pudesse compreender.
As
pessoas que o encontravam detinham-se para o ver passar, e os camponeses
murmuravam:
—
É algum ladrão!
Pela
noitinha, chegaram à comarca. Ele nunca tinha ido até ali. Não dava
verdadeiramente conta do que se passava nem do que lhe podia acontecer. Todas
aquelas casas novas o consternavam.
Não
pronunciou mais uma palavra, nada tendo a dizer, porque nada compreendia. Desde
muitos anos que não falava com ninguém, por isso quase perdera o uso da
linguagem; e o seu pensamento estava também muito confuso para poder formular
palavras. Encerraram-no na prisão da vila. Os gendarmes não pensaram em que ele
poderia ter vontade de comer, e deixaram-no até o outro dia.
Mas,
quando vieram para o interrogar, logo de manhãzinha, acharam-no morto, no chão.
Que
surpresa!
Tradução de autor desconhecido.
Fonte: “O Careta”, 1912, ed. nº 0196.
Imagem: Carlos Reis (1863 – 1940).
tadinho do mendigo! A humanidade é cruel.
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