A MAGIA DO MEDO - Conto Clássico de Terror - Edgar Wallace



A MAGIA DO MEDO
Edgar Wallace
 (1875 – 1932)
Tradução de Alfredo Ferreira
 (1865 – 1942)


Houve um subsecretário de Estado para negócio exterior que subira das camadas de políticos subalternos pela força da personalidade e eloquência dos muitos discursos pronunciados em público.

Nickerson Haben se casara com rica viúva, que muito providencialmente morreu no momento da crise de seu negócio, e quando os amigos dela começavam a murmurar sobre a ação de divórcio em andamento. Foi um caso muito prosaico de operação de apendicite que não correu bem. Para grande espanto do maior cirurgião inglês, e num período no qual ela deveria estar fora de perigo, sofreu um colapso e morreu. À vista do quê, os amigos simpatizantes do subsecretário Haben acharam uma desculpa para o mandar aos territórios do rio, o vasto sertão governado por comissário Sanders, um capitão hauçá e um jovem tenente cujo nome era Tibbetts, mas que era invariavelmente chamado Bones.

O ministério achou que a mudança seria benéfica ao desolado homem, que parecia inconsolável, apesar da imensa fortuna que a esposa deixara, posto que o novo testamento no qual nada lhe deixaria não chegou a ser assinado.

Assim, seguiu viagem aos territórios no primeiro vapor, e como aquele homem magro e pálido tinha um vislumbre de bom-senso (a falecida esposa dissera muitas vezes isso às amigas mais íntimas), não avisou os funcionários do grande rio de que os honraria com uma visita. Senhor Haben era desses que preparam armadilha para os auxiliares desonestos, e suspeitava que o chofer estava de combinação com o garagista para o roubar. E da mesma forma pensou que, chegando sem avisar, poderia descobrir certas irregularidades que seriam encobertas se a chegada fosse largamente anunciada.

Contudo, sua chegada furtiva não produziu escândalo, se bem que, caso Sanders do Rio tivesse o dom da previsão, bem poderia levar Agasaka, a mulher chimbiri, e a esconder na profundeza de sua floresta natal.

Agasaka estava intimamente ligada à vida de senhor Nickerson Haben, embora ele nem sonhasse isso. Senhor Haben era vestido pelo melhor alfaiate de Savile Row. Agasaka não usava outra roupa além da tanga de erva seca pendente da bela cintura.

Uma moça alta, muito esbelta e de olhos muito graves, nenhum amor por qualquer homem, tendo um grande amor por algo mais que o homem. Terrivelmente versada, também, nas artes de fantasma e diabo. De costas estreitas, seios miúdos, adorada pelas crianças, tão forte e hábil no braço que podia atirar uma lança além da marca de lançamento de qualquer rapaz. Assim era Agasaka, a mulher chimbiri, filha de N’kman’kimi, o falecido feiticeiro da aldeia.

Era velha para uma virgem. Tendo dezessete anos, fora cortejada por homens a sua própria maneira. Agasaka era afável com todos, mas não favorecia algum. Vivia com o irmão, M’suru, o caçador, e as mulheres dele a odiavam porque nunca dizia uma mentira e era franca ao irmão mais velho no que dizia respeito aos numerosos amantes que elas tinham. Bateriam nela, se não fosse por saberem a força de seu braço direito. O que as mãos não ousavam, as línguas eram menos precavidas, mas nenhum murmúrio pegava. Poucos homens seriam tão simples de espírito para admitir que outros eram bem-sucedidos onde eles próprios falharam.

Vivera durante muitos anos com o pai na profundeza da floresta, no lugar onde morava M’shimba M’shimba, o terrível e perigoso diabo que arranca árvore com uma mão enquanto a boca sopra o fogo líquido. Ali também habitavam outros seres poderosos: N’guro, o cachorro sem cabeça, e Chikalaka-m’bofunga, o comedor de lua. Na realidade todos, menos o lagarto-de-fogo, cujos olhos semeavam a morte, que está em todos os lugares e em nenhum. M’kema lhe ensinara os mistérios da vida e do princípio da vida, e a terra onde a vida é semeada. Conhecia os homens em sua ignorância e força. M’kema lhe ensinara a maneira de ser mais encantadora que todas as outras mulheres. A magia transmitida de boca a boca, que já era velha quando se colocaram as primeiras pedras dos alicerces das pirâmides.

Os homens tinham medo dela. Até Obors, o curandeiro, a evitava. Porque era essa a mais estranha magia dela: tinha o poder de fazer surgir diante dos olhos dos homens o que eles menos desejariam ver.

Uma vez, um chefete a seguira pé ante pé no atalho do rio, onde a erva chega à altura do queixo, porque tinha certas intenções. E, no momento e no lugar azados, se deixara ver, deixando cair as lanças na relva, e a segurou nos braços de maneira que, forte como ela era, não pudesse fugir. Ele disse:

— Agasaka, na floresta tenho uma cabana que nunca ouviu a voz de uma mulher.

Continuou nesse tom. E então, por sobre o ombro sedoso dela, viu três leopardos pretos caminhando lado a lado no estreito atalho em sua direção, de cabeças baixa e olhos luzindo de fome.

Num instante a soltou e correu a suas lanças. Quando se voltou de novo, leopardos e mulher desapareceram.

Aliki, o caçador da aldeia, nada temia e nada receava porque estava familiarizado com todas as magias e muitas vezes caminhava na floresta, acompanhado dos espíritos. Numa noite, vislumbrou uma visão no fogo: um grande lagarto vermelho que piscava as pesadas pálpebras. Aliki viu sua família em círculo, procurando, a sangue-frio, uma vítima. Calichi, o lagarto-de-fogo, é o mais benevolente dos demônios e aceitará um substituto do homem ou da mulher a quem, com seus olhos vermelhos e pestanejantes, deu o terrível aviso de morte.

Aliki viu suas três esposas e seu pai, e um tio que jornadeara muitos dias numa expedição de caça. E nenhum, salvo a esposa mais moça, era adequado o bastante ao fim que tinha em vista. Calichi é um diabo exigente. Nada que não seja o melhor e o mais bonito lhe agrada. Além do grupo sentado em volta do fogo vermelho, comendo da grande panela no meio das brasas, havia outros grupos. A rua da aldeia de Chimbiri-Isisi corre da floresta ao rio e é uma larga avenida marginada de cabana. Diante de cada cabana, ardia uma fogueira e em volta de cada fogueira estavam reunidos os homens e mulheres da cabana.

Caíra a noite. Sobre as grandes seringueiras o céu estava constelado. Estrelas brilhantes tremeluziam e piscavam como Calichi, porém mais rapidamente.

Aliki viu as estrelas e esfregou as palmas das mãos na poeira para chamar a boa sorte. Naquele momento, entrou em seu raio de visão a segunda esposa de seu vizinho, uma mulher alta, de dezoito anos, ninfa esculpida em mogno, de costas direitas e flexíveis, nua na linha da cintura da tanga de erva seca. E Aliki sabia que encontrara um substituto em condição, e disse o nome dela em voz baixa, procurando o olhar do lagarto. À vista do quê, o animal se desvaneceu e desapareceu, e Aliki ficou sabendo que o deus do fogo aprovara sua escolha.

Mais tarde, nessa noite, quando Loka, a esposa do caçador M’suru, desceu ao rio a fim de buscar água para necessidade da primeira esposa, Aliki a interceptou:

— Não há alguém tão lindo como tu, Loka, porque tens as pernas dum leão e a garganta duma jovem corça.

Enumerou outras perfeições físicas e Loka riu e escutou. Brigara naquele dia com a primeira esposa do marido, e ele batera nela. Estava extraordinariamente predisposta ao galanteio e ansiosa por aventura.

— Não tens esposa, Aliki? — ela perguntou, contente. — Pois darei a ti Agasaka, a irmã de meu marido, que é muito linda e nunca tocou no ombro dum homem.

Dizia por despeito, porque odiava Agasaka, e é um costume das mulheres louvar a estranhos as qualidades das cunhadas a quem odeiam.

— Quanto a Agasaka... e às esposas... — Fez um gesto de desprezo. — Não há esposa como tu, nem na cabana do velho rei, além das montanhas que são o fim do mundo.

Loka riu de novo e disse, com voz profunda e melodiosa:

— Agora sei que estás doido, como M’suru disse. Também que vês coisas estranhas, que não existem. Não só M’suru mas todos os homens dizem que tens a doença de mongo.

Era verdade que Aliki era doente e sentia dores mortíferas na cabeça. Via coisas além de lagarto. Disse:

— M’suru é um velho idiota. Tenho um ju-ju que me dá olhos para ver maravilha. Venhas comigo à floresta, Loka, e te ensinarei magia e te darei o amor que um velho não pode dar.

Ela pousou a bilha, a escondendo num tufo de erva-de-elefante perto da margem do rio, e caminhou atrás dele à floresta. Ali ele a matou, acendeu uma fogueira e viu o lagarto, que parecia satisfeito. Aliki se lavou no rio e voltou a sua cabana, para dormir.

Quando acordou, na manhã, sentiu pena de ter matado Loka, porque, de todas as mulheres no mundo, fora a mais bela a seus olhos. A aldeia estava meio deserta, porque a bilha de Loka fora encontrada e os caçadores entraram na floresta a procurando. Acharam-na, mas ninguém a vira caminhando à morte. Alguns julgavam que fora levada por pescadores ochori, outros indigitavam um diabo notório pelas façanhas amorosas. Trouxeram o corpo à rua da aldeia, e todas as mulheres casadas fizeram tangas de folhas verdes e sapatearam a dança da morte, cantando o tempo todo de maneira muito estranha.

Aliki, acocorado diante de sua fogueira, observava a procissão sem curiosidade. Estava com pena de ter matado a coisa que se carrega no ombro e, baixando os olhos ao fogo azul, ficou ainda mais azul porque o lagarto vermelho o olhava com as pálpebras salientes piscando rapidamente.

Portanto, sacrificara a vítima errada.

Seus olhos se ergueram e pousaram na esbelta figura de uma mulher que se apoiava com uma das mãos ao poste da porta da cabana do irmão. E Aliki teve uma tremenda convicção.

O lagarto se desvanecera do coração do fogo quando ele tornou a baixar os olhos.

Não havia tempo a perder. Levantou-se e foi à virgem chimbiri. Disse:

— Estou te vendo, Agasaka. Uma terrível vergonha caiu sobre a cabana de teu irmão, porque dizem que Loka tinha um amante que a matou.

Ela voltou os grandes olhos lentamente a ele. Eram castanhos e cheios de uma maravilhosa luminosidade, que pareceu vibrar quando o fitou.

— Loka morreu porque foi tola. Mas quem a matou ainda o é mais. O sofrimento dela já passou. O seu ainda virá. Em breve virá Sandi malaka, o carniceiro pássaro castanho, e arrancará os olhos do homem que fez isso.

Aliki a odiava, mas foi inteligente o bastante para concordar.

— Sou sábio, Agasaka. Vejo maravilhas que nenhum homem pode ver. Agora, antes que Sandi venha com seus soldados, mostrarei um feitiço que trará esse homem fraco à porta da cabana de teu irmão quando a Lua estiver assim e o rio estiver assim.

Os olhos graves dela estavam pousados nos dele. O som da cantoria das mulheres era um zumbido na extremidade mais distante da aldeia. Um cachorro latiu abafadamente no escuro da cabana e todos os rostos estavam voltados ao rio, onde o corpo estava sendo depositado dentro duma canoa antes de ser transportado à pequena ilha central onde jaziam os mortos em covas rasas. Ela disse:

— Vamos.

Caminhou atrás dele em acidentado campo de milho e chegou ao telheiro de lenha atrás da aldeia. Em estreitos caminhos atingiram a orla da floresta, onde não havia ruído, porque aquele lugar era triste demais para os pássaros fazerem ninho e perto demais das habitações humanas para os pequenos macacos de barba branca. Sem cessar, ele avançou até chegarem a um tufo de flor amarela que crescia numa clareira. Ali, as árvores eram muito altas, e dez homens poderiam estar trepados uns em cima das cabeças dos outros, junto dos troncos lisos, e o de cima de todos só focaria nos ramos mais baixos.

Ele parou e se virou. Naquele momento, chegou um silvo desagradável da copa das árvores. Um vento frio e o rolar dum trovão.

— Sentemo-nos. Primeiro te falarei das mulheres que me amaram e de como eu não queria passar diante delas por pensar tanto em ti. Depois seremos amantes.

— Não há magia nisso, Aliki.

E ele viu que a nuca estava contra ele e ergueu a lança. Ele disse, com voz muito baixa, com o ombro recuado ao arremesso:

— Morras como morreu Loka, por causa da palavra de aviso que o lagarto-de-fogo levou a mim.

— Sou Loka! — disse a moça, e ele olhou e o queixo caiu. Porque ela era na realidade Loka, a mulher que ele matara. Loka, com olhos astutos e dedos compridos. E tinha o jeito de Loka de pôr uma flor encarnada atrás da orelha e as pernas longas e cetinosas de Loka. Disse ele em desespero. E deixou cair a lança:

O ko!

Agasaka se curvou e a apanhou. E naquele momento se transformou em quem era novamente. Não tinha flor, os dedos eram mais curtos, e onde estivera o sorriso astuto havia a seriedade da morte.

— Esta é minha magia. Agora caminhes em minha frente, Aliki, assassino de Loka, porque não fui feita para o amor e sim para um estranho poder.

Sem palavra, o pensativo homem caminhou de volta o caminho feito anteriormente e Agasaka o seguiu. E, seguindo, experimentou a lâmina larga da lança, embora tocando de leve. Havia uma linha de sangue no polegar dela onde a lâmina e o dedo se encontraram. A floresta estava escurecendo. O vento era, alternadamente, um grito e um lamento.

Perto da lagoa na orla da floresta, ela ergueu a lança acima do ombro esquerdo, como um soldado de cavalaria brandiria a espada, e ele se voltou a meias ao ruído sibilado.

A primeira esposa do irmão dela estava junto da lagoa, colhendo raiz de mandioca do lugar onde a deixaram para ensopar. A cabeça de Aliki caiu aos pés quando o primeiro relâmpago rasgou o céu.

O sol se erguera havia quatro horas quando a canhoneira do rio, branca e reluzente, se aproximou da margem alcantilada chamada “o peixe” por causa de sua configuração. A água turva do rio encachoeirava de encontro à sua proa, formando uma onda reluzente, tinta de vermelho nas orlas, porque a Zaire avançara contra uma correnteza de 11km/h. Todos os rios, do Isisi ao Mokalibi, estavam em vazante, havendo banco de areia onde havia água profunda e água profunda onde os crocodilos dormiam de boca aberta na última vez que Sanders ali estivera.

Estava em pé, ao lado do timoneiro, de figura esbelta e forte, vestido de branco imaculado, com o capacete de cortiça posto de banda, porque uma mosca de elefante o picara na testa na noite anterior e o galo que se formara doía. Entre os alvos dentes regulares, tinha um charuto escuro. Acabara de tomar o desjejum, e um ordenança estava retirando o serviço de café de prata e as bandejas de fruta. Acima das cabeças o céu era azul-cobalto, mas o barômetro estava caindo assustadoramente, e desejava a segura ancoragem de um banco profundo abrigado nas árvores altas que a pequena baía ao sul de chimbiri oferecia.

Lo’ba, kó’loka! Uma braça de água pelo amor-de-deus!

O rapaz de olhos sonolentos, sentado à popa do barco, levantou sua linha de sondagem.

A mão de Sanders se fechou sobre o cabo telegráfico de sinal, que manejou, e Yoka, o maquinista, confirmou o recebimento do aviso.

— 1m.

— Bum!

O barco reduziu a marcha, com as rodas girando à ré, mas a proa tocou na areia, e uma corrente lateral arrastou a popa até ela ficar paralela ao banco de areia. Então, enquanto a roda rodava em sentido inverso, o Zaire começou a se mover em direção à margem direita do rio, bordejando o baixio, até a quilha reencontrar a água profunda do rio. Disse o timoneiro, muito aborrecido:

— Santo Deus! Esse banco surgiu dos infernos, porque nunca esteve aqui, desde o tempo em que eu engatinhava.

— Penses somente no rio, homem — disse Sanders, pouco inclinado à falação.

E agora, acima da copa das árvores em frente, Sanders viu a montanha alterosa de nuvens amarelas que se amontoavam e arfavam, e mandavam à frente farrapos sujos anunciando o vento.

E a superfície lisa do rio se eriçou de pequenas ondulações brancas que saltavam e se desfaziam em espuma. Sanders passou o charuto dum canto da boca ao outro, pegou-o, olhou com pena e se atirou sobre a borda. O criado estava atrás dele, oferecendo a capa de oleado. Ele se enfiou nela, tirou o capacete de cortiça e o substituiu pelo chapéu de oleado, que prendeu sob o queixo. O calor era intolerável. A temperatura enviava o bafo de ar quente duma fornalha como arauto de sua fúria. Sanders estava molhado de suor até os ossos e a roupa colava ao corpo.

Uma fita deslumbrante de luz cruzou o céu e se desdobrou num rendilhado de línguas. A explosão do trovão foi ensurdecedora. Parecia que um peso enorme comprimia a cabeça. Mais um relâmpago, outro e mais outro. Agora surgia, azulado, em qualquer margem, como vívidas listas azuis de luz que corriam em ziguezague do céu à terra. As nuvens amarelas ficaram pretas. A escuridão da noite envolvera o mundo numa escuridão realçada pela luz cadavérica, lateral, que vinha do horizonte distante, onde as nuvens estavam quebradas.

— Porto! — disse Sanders, rispidamente. — Agora estibordo de novo! Agora porto!

Atingira o abrigo da margem escarpada quando as primeiras gotas de chuva começaram a cair. Sanders mandou uma dúzia de homens pular à terra com as amarras de avante e de ré e a prendê-las fortemente nas grandes seringueiras que cresciam na margem do rio.

Num segundo, a coberta foi inundada, e os sapatos brancos do comissário ficaram primeiro cinzentos e depois cor de ardósia. Mandou chamar o maquinista Yoka, que era também seu imediato.

— Põe outra amarra e conserva todo o vapor a diante.

Falava em arábico da costa, uma língua que permite lindos floreados.
— Senhor, devo tocar o oopa-oopa? Porque vejo que esse povo ladrão de Akasava está com medo de sair à chuva para dar as boas-vindas a seu senhorio.

Sanders abanou a cabeça.

— Virão a seu tempo. A aldeia fica a 1,5km. Não ouviriam teu oopa-oopa!
E foi a seu camarote, a fim de recuperar o fôlego. Um vento de 170km/h soprara de encontro a seus dentes durante dez minutos, o que é muito para quem está tentando respirar.

O camarote tinha duas longas janelas, uma em cada lado. A da esquerda, sobre o canapé no qual se deixara cair, mostrava uma vista do atalho da floresta ao longo do qual, mais cedo ou mais tarde, inevitavelmente apareceria um mensageiro para levar uma mensagem ao chefe.

Os relâmpagos eram ainda incessantes. A chuva desabava com volume que bem pensaria que ancorara sob uma pequena cachoeira. Mas a luz mudara, e adiante o negro das nuvens tornara uma cor cinza-escura.

Sanders escancarou as portas que fechara atrás de si. O vento ainda soprava, porém mais fraco. Estendeu a mão a um charuto e o acendeu, para esperar com paciência. O rio estava correndo a 15km/h. Precisaria de rebocagem a mão até a praia da aldeia. Esperava que tivessem empilhado lenha para si. O povo chimbiri era devagar.  Na última vez que abicara ali, mostraram-lhe uma pilha de lenha e alguns toros verdes.

Tentou ver o atalho na margem do rio, e no momento crítico. Porque viu oito homens caminhando dois a dois, e carregando nos ombros uma figura toda amarrada.

Um crisântemo elétrico, explodindo num clarão ofuscante, quando ele saltou ao banco, com as pétalas incandescentes ziguezagueando em todas as direções através das nuvens negras, fez luz suficiente para permitir enxergar o fardo humano bem claramente antes de chegar ao atalho e ficar perfilado no caminho de oito homens taciturnos e da turbamulta que desafiara o furor da tempestade para os seguir a certa distância. Sanders disse mansamente (mostrava os dentes quando falava assim):

— Ó, homens. Quem sois que pondes a marca da morte no rosto dessa mulher?

Porque o rosto da prisioneira estava pintado de branco com gesso. Ninguém falou. Viu os dedos dos pés de todos eles se agitando, menos os de um, ao qual se dirigiu:

— M’suru, filho de N’kema, quem é essa mulher?

M’suru limpou a garganta.

— Senhor, esta mulher é filha de minha mãe. Matou Aliki e matou também minha esposa Loka.

— Quem viu isso?

— Patrão, minha primeira esposa, que é sincera a mim desde que o amante foi afogado, viu a cabeça de Aliki cair. Ouviu também Agasaka dizer: “Vai, homem, aonde enviei Loka, como bem sabes, pois viste quando a matei”.

Sanders não se deixou impressionar.

— Soltai essa mulher, para que possa ficar em pé diante meus olhos.

Desamarraram a moça e, por ordem dele, removeram a pintura da morte do rosto dela.

— Fala — disse Sanders.

Ela falou muito simplesmente e sua história era boa. Contudo...

— Trazei a mulher que a ouviu dizer aquelas coisas terríveis.

A esposa foi encontrada na cauda da procissão e avançou impotente, assustada, porque os olhos frios de Sanders eram enervantes. Mas foi volúvel quando conseguiu falar.

O homem com a capa de oleado gotejante escutou, de cabeça baixa. Agasaka, a mulher esbelta, ficara gravemente de pé, inconsciente da vergonha. A tanga de palha desaparecera e ela estava como quando a mãe a vira na primeira vez. Enfim, a primeira esposa chegou ao fim de sua história.

— Sandi, esta é a verdade. Se estou falando mentira, que os “compridos” me levem ao fundo do rio e que eu sirva de alimento às serpentes.

Sanders, observando-a, viu a pele negra se tornar baça e cinzenta. Viu a boca se abrir em terror pânico.

O que não viu foi o “comprido” — o crocodilo amarelo —, que se arrastava no meio da relva em direção à perjura, com os pequenos olhos luzindo, a boca, úmida e escancarada, mostrando as alvas fileiras de dente.

Somente a primeira esposa de M’suru o viu, e caiu berrando e tremendo aos pés do marido, batendo com as mãos nos joelhos. Sanders nada disse, mas ouviu muita coisa que estava em contradição com a primeira história contada por ela. Como sabia que surgiria complicação se a moça ficasse com seu povo, disse:

— Vem comigo, Agasaka, a meu lindo navio. Houve guerra por causas mais insignificantes.

Levou-a ao Zaire. Ela seguiu, humildemente, atrás. Se bem que não houvesse humildade nela.

Naquela noite, chegou um pombo-correio do quartel-general, e Sanders, lendo a mensagem, não ficou satisfeito nem aborrecido.

Altos funcionários, especialmente homens das cadeiras-de-braço, o perturbaram um pouco, mas os que conhecera eram uns homens tão encantadores e compreensíveis que perdera um pouco do medo. O que o preocupava mais eram os relatórios, que chegavam de fontes confiáveis, sobre os estranhos poderes de Agasaka. Vira muitas coisas esquisitas no rio. A maravilha do lokali, que ocava o tronco de árvore, por meio do qual seriam mandadas mensagens através do continente, era-lhe ainda um assombro. Feitiçarias inexplicáveis, às vezes revoltantes, eram fenômenos de todos os dias. Um pouco daquilo era puro hipnotismo, mas havia coisas superiores, além de sua compreensão. Algumas se propagaram através das eras desde o Egito e ainda além. Abraão trouxera práticas de terras desertas em volta de Babilônia, que eram ritos religiosos entre povos sem linguagem escrita.

O Zaire descia a corrente, de volta, no dia seguinte, quando mandou chamar Abibu, seu ordenança.

— Tragas essa mulher de Chirimbi.

E a trouxeram da pequena cabine-despensa, onde ela era ao mesmo tempo hóspede e prisioneira.

— Dizem isso e aquilo a teu respeito, Agasaka — falou ele, dando ênfase a sua autoridade.

— Patrão, é verdade — disse Agasaka, quando ele acabou. — São coisas que meu pai me ensinou. Porque, patrão, ele era filho de M’kufusu, filho de Bonfongu-m’lini, filho de N’sambi...

Recitou trinta gerações, abrangendo uns 400 anos, antes que ele a fizesse parar. Até mesmo Sanders ficou assombrado, apesar de já ter encontrado uma vez um velho do N’gombi, que vivera nos dias de Saladino.

— Mostra a tua magia, mulher!

Para sua surpresa ela abanou a cabeça.

— Patrão, isso é uma magia que só vem quando estou assustada.

Sanders levou a mão à pistola e a sacou a meia do coldre de couro.

Estava sentado sob um toldo estendido sobre o tombadilho. O timoneiro estava ao leme, perto do rapazinho kano com a longa linha de sondagem. Propositadamente, não olhou a mulher, fixando os olhos nas costas do timoneiro.

A mão ainda mal se fechara sobre a coronha castanha, quando viu, quase a seus pés, a coisa que mais odiava: A venenosa víbora inglesa, mosqueada e grossa, com a cabeça atirada a trás, armando o bote.

Duas vezes a pistola cuspiu fogo. O timoneiro correu berrando, procurando abrigo, e deixou o Zaire derivando na correnteza forte.

Nada havia além de dois pequenos buracos no tombadilho, tão juntos que se sobrepunham. Sanders pulou à roda do leme e endireitou o barco, e, depois, quando o timoneiro reassumiu o posto, e o rapazinho da sonda saiu de trás do abrigo da pilha de lenha onde estava acocorado e tremendo, Sanders voltou à sua cadeira, despedindo, com um gesto, Abibu, que acorrera, de rifle em punho, para socorrer o amo. Sanders disse, mansamente:

— Mulher, podes voltar a tua pequena casa.

E Agasaka se retirou, sem a demonstração de triunfo que uma mulher menos forte sentiria. Ele não a olhara. Não havia ilusionismo naquilo.

Curvou-se e examinou os furos das balas, perturbado demais para se sentir idiota.

Naquela tarde, mandou chama-la de novo, e lhe deu chocolate para comer, conversando sobre o pai dela. Ela estava sentada no tombadilho, a seus pés, e uma vez, quando julgou que lhe conquistara a confiança, pousou de leve a mão sobre a sua cabeça como a pousara antes sobre tantas outras cabeças moças.

A víbora venenosa lá estava, a distância de bote, com a cabeça triangular levantada, os anéis tensos.

Sanders fitou o réptil e não mexeu a mão. Então, através do corpo luzidio, viu as tábuas da coberta e o betume mole na junção das tábuas. E a víbora se desvaneceu. Perguntou, gentilmente:

— Não tens medo?

— Patrão, um pouco. Mas agora não tenho medo, porque sei que não farias mal a uma mulher.

O Zaire, com a estranha passageira, encostou no cais da residência duas horas antes do pôr do sol, no terceiro dia. Capitão Hamilton estava esperando, colérico e irascível, porque fora o anfitrião involuntário de alguém a quem faltavam boas maneiras.

Um vulto vestido de branco, estirado languidamente numa cadeira profunda, voltou a cabeça, mas não se deu ao incômodo de se levantar. Parecia ainda menos inclinado a trocar o frescor da profunda varanda pela fornalha do espaço aberto a um sol abrasador. Sanders viu um rosto branco que parecia estranhamente sujo em contraste com a imaculada alvura do casaco de linho. Dois olhos fundos, desconfiados, uma melena despenteada de cabelo caindo desleixadamente sobre uma testa alta e uma boca pálida quase sem sangue. Senhor Haben levantou os olhos à elegante figura:

— És Sanders?

— Sou o comissário, senhor.

— Por que não estavas aqui para me receber? Sabias que eu devia chegar?

Sanders se sentiu mais chocado que irritado pelo tom. Uma praga na boca de uma mulher lhe produziria o mesmo efeito. Secretários e subsecretários de Estado eram pessoas endeusadas, que empregavam uma terminologia própria, envolvendo censura no tecido de prata duma dicção escolhida que amaciava o ardor da repreensão. Perguntou, com impaciência:

— Estás me ouvindo, senhor?

Hamilton, parado ali junto, estava a ponto de o botar a fora a pontapé.

— Ouvi. Estava fazendo uma visita ao povo chimbiri. Não recebemos aviso de tua chegada ou provável chegada.

Sanders falava muito cuidadosamente. Olhava fixamente o carrancudo Nickerson.

Senhor Haben tinha a palavra mentirosa na ponta da língua, mas tinha, como a falecida senhora Haben dissera, algum bom senso. E havia ainda uma capacidade maior de discrição. A pistola ainda pendia dos quartos do comissário e o gatilho estava brilhante pelo uso. Disse o subsecretário Haben, deixando-se cair de novo na cadeira:

— Hum!

Era bastante inteligente, verificou Sanders. Conhecia a história interna dos territórios. Estava ansioso por informação. Achava que a região não era bem administrada. O sistema estava errado. Os impostos estavam muito abaixo do mais alto índice possível. Em todos os sentidos, sua atitude era antagônica. Os comissários eram gente preguiçosa, gostando de levar boa vida e se divertir com a caça. Sanders, que jamais caçara um animal selvagem, a não ser na panela, ou para se livrar de perigo iminente, nada disse.

— Um sujeito bem grosseiro — disse Hamilton.

Mas foi no jantar que chegou ao cúmulo da rudeza. O jantar estava ruim, odiava costeleta em banha de coco, a batata doce lhe fazia mal, o frango estava duro, o café ralo. Felizmente trouxera seus charutos.

Tenente Tibbetts, imediato no comando hauçá, passou aquela hora penosa imaginando o que lhe aconteceria se ele se debruçasse sobre a mesa e desse na cara dum subsecretário de Estado com o saleiro de vidro lavrado.

Só Sanders não mostrava impaciência. Nenhum músculo do rosto se contraiu quando senhor Nickerson Haben fez a mais imperdoável de todas as sugestões. Fez aquilo por pura ignorância e por causa daquela vulgaridade que lhe era peculiar. Sanders disse, calmamente:

— Uma mulher nativa é... uma mulher nativa. Felizmente, só tive sob meu controle cavalheiros, e essa complicação nunca surgiu.

Senhor Haben sorriu ceticamente. Era ainda mais azedo quando sorria. Disse, secamente:

— Muito nobre. No entanto, ouve-se dizer que tais coisas acontecem.

Hamilton estava branco de raiva. Bones olhava de boca aberta, como um menino que só compreendera vagamente. O homem pálido fez uma pergunta e, com grande espanto dos outros, Sanders meneou afirmativamente a cabeça.
— Sim. Trouxe uma moça chimbiri. Está atualmente nas linhas hauçás, com a esposa de sargento Abibu. Não sei o que fazer com ela.

— Imagino que não — disse o outro, ainda secamente. — Uma prisioneira, suponho...

— N... não. — Sanders hesitava. Parecia confuso aos olhos de Haben. — Tem um dom especial de magia que me perturba.

Então senhor Nickerson Haben riu e disse, desdenhosamente:

— Então é dessas! Quero ver tua feiticeira.

Bones foi buscá-la. E praguejou em voz alta através da praça escura.

— É disso que nos queixamos — disse o senhor Haben, enquanto esperava. — Vocês ficam no país tanto tempo que se tornam pretos.

Sanders estremeceu. “Preto” é palavra que não se emprega na África.

— Absorvem suas superstições e filosofias. Magia. Santo Deus!

Abanou, com desesperança, a cabeça comprida.

— Minha pobre esposa acreditava nas mesmas bobagens. Vinha de um dos Estados do Sul. Tinha uma ama preta que fazia coisas maravilhosas com osso de galinha!

Sanders não o julgara capaz de ter uma esposa. Quando soube que a pobre senhora morrera, pensou que coisas piores poderiam acontecer a uma mulher. Senhor Haben condescendeu em murmurar aqueles dados pessoais:

— Apendicite. Uma operação. O médico idiota! Como eu dizia, vocês... Hum!...

Agasaka estava parada à porta, “missionariamente vestida”, como eles dizem. Tinha o corpo envolto em pano de algodão azul, enrolado e preso com alfinete até a altura do peito. Haben acenou e ela se aproximou.

— Então essa é a dama, hem? Vem! Vejamos a magia. Fala!

Sanders acenou com a cabeça.

— Este homem quer ver tua magia, Agasaka. É um grande entre meu povo.

Ela não respondeu.

— Não tem mau aspecto — disse Nickerson, e fez uma coisa que espantou aqueles homens, porque se levantou e, lhe metendo a mão sob o queixo, levantou o rosto ao seu. Havia algo em seus olhos estranhos e duros, que ela leu, como podemos ler as palavras impressas. A marca da vulgaridade era abominavelmente larga e visível.

— Não és tão má assim para uma pre...

Deixou cair as mãos subitamente. Viram sua face se contrair dolorosamente. Nickerson via uma mulher bonita com profundas sombras sob os olhos. Era o rosto que muitas vezes via e sempre tentava esquecer. Um rosto morto, branco. Usava camisa noturna de seda fechada até a garganta.

E ela disse:

— Não é melhor esperar a enfermeira voltar, Nick? Não acho que devas beber água gelada. O doutor disse...

— Ao diabo com o doutor! — disse Nickerson Haben, entredentes. E os três homens o ouviram e viram a mão se erguer, segurando um copo imaginário, e os olhos se abaixar a nível de imaginário travesseiro.

— Estou farto de ti. Farto de ti. Fizeste um novo testamento, hein? Vai ao Inferno!

Ficou olhando, olhando, e depois voltou lentamente o rosto abatido a Sanders.

— Minha esposa... — Apontava ao espaço e embrulhava palavras. — Eu a matei!

E então percebeu que ele era Nickerson Haben, subsecretário de Estado, e que aqueles três eram funcionários insignificantes. E havia a mulher negra, que o olhava gravemente. Mas aquela descoberta chegava justamente com o atraso de um segundo.

— Vai a teu quarto, senhor — disse Sanders.

E gastou a maior parte da noite escrevendo uma longa carta ao ministro do exterior.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

UMA DESCIDA NO MAELSTRÖM - Conto Fantástico - Edgar Allan Poe

O GATO PRETO - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe

VAMPÍRICA - Conto Clássico de Terror - Dorothy Dunn

AR FRIO - Conto Clássico de Terror - H. P. Lovecraft