A MATRONA DE ÉFESO - Conto Clássico Fúnebre - Petrônio


A MATRONA DE ÉFESO

Caio Petrônio Árbitro

(Séc. I)

Tradução de Luciana Oliveira e Paulo Soriano

 

Caio (ou Tito) Petrônio Árbitro (27 — 66 d.C.), escritor e político romano, era contemporâneo de Nero e, acusado de traição, cometeu suicídio, antecipando-se à ira do imperador. A conhecida narrativa “A matrona de Éfeso”, episódio narrado por um personagem do romance “Satirícon”, constitui uma anedota em que o macabro se funde ao humor, numa uma crítica mordaz à hipocrisia humana.

 

Em Éfeso havia uma matrona com tal fama de honesta que até as mulheres dos países vizinhos saíam a conhecê-la. Tendo perdido o marido, não se contentou, como é do costume do povo, em seguir o enterro com os cabelos em desordem, nem em golpear-se no peito desnudo diante dos olhos de todos, mas achou por bem acompanhar o seu finado marido até a tumba e, logo após sepultá-lo, segundo costume dos gregos, no hipogeu [1], devotou-se a velar o corpo e a chorá-lo dia e noite. Seus pais e familiares não puderam fazê-la cessar aquela atitude que, levada ao desespero, havia de matá-la de fome. Até os magistrados desistiram do intento ao verem-se expulsos por ela.

Todos choravam, dando quase como morta essa mulher que dava exemplo sem igual, consumindo-se há cinco dias sem provar bocado. Uma serva muito fiel a acompanhava e compartilhava seu pranto, e renovava a chama da lamparina, que iluminava o sepulcro, quando começava a se apagar. Na cidade, não se falava outra coisa senão desta abnegação, e homens de toda condição social a davam como exemplo único de castidade e amor conjugal.

Àquela época, o governador da província ordenou crucificar vários ladrões próximo à tumba onde a matrona chorava, sem interrupção, a recente morte do seu marido.

Durante a noite seguinte à crucificação, um soldado, que vigiava as cruzes para impedir que alguém descravasse os corpos dos ladrões, a fim de sepultá-los, percebeu uma luzinha a brilhar entre as tumbas e viu os lamentos de alguém que chorava.

Levado pela natural curiosidade humana, quis saber quem estava ali e o que fazia. Desceu à tumba e, descobrindo uma mulher de extraordinária beleza, ficou paralisado de medo, crendo estar frente a um fantasma ou a uma aparição. Mas quando viu o cadáver estendido e as lágrimas da mulher, de faces arranhadas por unhas, a sua impressão foi desvanecendo. Deu-se conta de que estava diante de uma viúva que não achava consolo.

Levou à tumba seu magro jantar de soldado e começou a induzir a aflita mulher a que não se deixasse dominar por aquela dor inútil, nem enchesse o seu peito com lamentos sem sentido.

— A morte — disse — é o fim de tudo o que vive: o sepulcro é a íntima morada de todos.

Ele recorreu a tudo o que se pode dizer às almas perpassadas pela dor. Porém, esses conselhos de um desconhecido a exacerbava em seu padecer e ela golpeava mais duramente o peito, arrancava mechas de cabelo e se jogava sobre o cadáver.

O soldado, sem desanimar-se, insistiu, tratando de fazê-la provar seu jantar. Ao fim, a serva, tentada pelo aroma do vinho, não pôde resistir ao convite e estendeu a mão ao que lhe era oferecido, e quando recobrou as forças com o alimento e a bebida, começou a atacar a teimosia da sua ama:

— De que te servirá tudo isso? — dizia-lhe. — Que ganhas com deixar-te morrer de fome ou enterrada, entregando tua alma antes que o destino te peça? Os despojos dos mortos não pedem semelhantes loucuras. Volta à vida. Deixa de lado teu erro de mulher e goza, enquanto possível for, da luz do céu. O próprio cadáver que está ali tem que bastar para que vejas o belo da vida. Por que não escutas os conselhos de um amigo que te convida a comer algo e não te deixar morrer?

Ao fim, a viúva, esgotada pelos dias de jejum, depôs sua obstinação e comeu e bebeu com a mesma ansiedade com que antes havia feito a servente.

Sabe-se que um apetite satisfeito produz outros. O soldado, entusiasmado com seu primeiro êxito, investiu contra a sua virtude com argumentos semelhantes.

— Não parece mal nem odioso este jovem — dizia a esposa, que antes era acusada pela serva, que lhe repetia:

— Resistirás a um amor tão doce? Perderás os anos de juventude? Por que esperar mais tempo?

A mulher, depois de haver satisfeito as necessidades do seu estômago, não deixou de satisfazer este apetite... e o soldado triunfou. Deitaram-se juntos no chão essa noite e também no dia seguinte e no outro, fechando bem as portas da cripta, de modo que se passasse por ali um familiar ou um desconhecido, acreditaria que a fiel esposa estaria morta sobre o cadáver do seu marido.

O soldado, encantado pela beleza da mulher e pelo mistério desse amor, comprava o melhor que seu bolso permitia e, ao cair a noite, levava ao túmulo. Porém, um dos parentes dos ladrões, tendo notado a falta de vigilância noturna, descravou o cadáver de um dos seus e o sepultou. O soldado, ao descobrir, no outro dia, uma cruz sem o morto, temeroso do suplício que o aguardava, contou o ocorrido para a viúva.

 — Não, não — disse-lhe. — Não esperarei a condenação. Minha própria espada, adiantando-se à sentença do juiz, castigará o meu descuido. Peço-te, minha amada, que, uma vez morto, deixa-me nesta tumba. Põe teu amante ao lado do seu marido.

Mas a mulher, tão compassiva como virtuosa, lhe respondeu:

 — Que os deuses me livrem de chorar a morte dos dois homens que mais amei! Antes crucificar o morto que deixar morrer o vivo.

Uma vez ditas essas palavras, fê-lo tirar o corpo do marido da tumba e colocá-lo na cruz vazia. O soldado usou o engenhoso recurso da cautelosa mulher e, ao dia seguinte, o povo se perguntava como um morto poderia ter subido até a cruz. 



 [1]  Monumento funerário subterrâneo.

 


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