UMA VOZ NA NOITE - Conto Clássico de Terror - William Hope Hodgson



UMA VOZ NA NOITE

Por William Hope Hodgson

(1877 – 1918)

Tradução de Rogério Silvério de Farias



Era uma noite escura e sem estrelas. A falta de vento tinha-nos detido num ponto qualquer do noroeste do Pacífico. Não sei qual era nossa posição exata, pois durante uma semana estafante e sem brisa o sol se escondera por trás de uma tênue neblina que parecia flutuar em volta de nós à altura dos mastros, mas que, por vezes, descia e envolvia o mar que nos rodeava.

Ante a calmaria, tínhamos prendido a roda do leme. Eu estava sozinho na ponte de comando. A tripulação, constituída de dois marinheiros e um grumete, dormia a um canto da proa. Will, meu amigo e comandante de nossa pequena embarcação, estava na popa, estendido no beliche de seu minúsculo camarote.

De repente, um apelo partiu da noite:

– Ei, vocês de bordo!

O brado foi tão inesperado que, colhido de surpresa, não respondi imediatamente.

Chamaram de novo: era uma voz gutural que não tinha nada de humano, que se elevava de algum lugar, a estibordo, na noite escura.

– Ei, vocês de bordo!

– Ei! – respondi, depois de recobrar o ânimo. – Quem é você e o que deseja?

 

– Não tenham medo – replicou a voz que talvez tivesse notado perturbação no tom de minha resposta. – Eu sou... apenas um pobre velho...

A hesitação me pareceu estranha, porém só muito depois compreendi toda sua significação.

– Por que não chega até aqui a bordo? – perguntei um tanto irritado, pois não gostei que ele tivesse notado a minha ligeira perturbação.

– Não...não posso. Seria perigoso. Eu...

A voz se calou e houve silêncio.

– Que é que você quer dizer? – indaguei cada vez mais estupefato. – Por que seria perigoso? Onde é que você está?

Fiquei à escuta, mas não houve nenhuma resposta. Depois, fui invadido por uma desconfiança súbita, indefinida. Apanhei o farol e ao mesmo tempo acordei Will. Quando voltei para estibordo, dirigi o feixe de luz sobre a imensidão silenciosa do mar. No mesmo instante ouvi um grito estrangulado, seguido do chapinhar de remos dentro d’água.

Não me foi possível distinguir nada.

– Ei, você aí! – chamei. – Que é que há?

Mas tudo que ouvi foi o rumor de um bote que se afastava, internando-se na noite.

Então a voz de Will veio através da escotilha:

– Que foi que houve, George?

– Venha até aqui, Will! – disse eu.

Quando se aproximou, cortei-lhe o que havia acontecido. Fez-me algumas perguntas e após um momento de silêncio pôs as mãos em concha em torno da boca e gritou:

– Ei, você aí do bote!

De muito longe nos chegou uma débil resposta e meu companheiro repetiu o chamado. Ouviu-se o barulho dos remos.

Então veio uma resposta bem clara:

– Apague a luz.

– Ah, não! Isso é que não vou fazer! – murmurei. Mas Will disse que eu fizesse o que o outro estava pedindo e eu escondi o farol sob a amurada.

– Aproxime-se – disse Will, e o barulho dos remos se ouviu cada vez mais próximo. A uns dez metros cessaram.

– Aproxime-se – repetiu Will. – Não há motivo nenhum para ter medo.

 

– Prometam-me que não usarão o farol?

Estourei, sem poder me conter mais:

– O que há com você? Por que você tem um medo infernal da luz?

– Porque...- começou a voz, mas parou imediatamente.

– Por que, então? – perguntei de novo.

Will descansou a mão no meu ombro.

– Não diga nada, meu caro. Deixe que eu me ocupo dele.

Debruçou-se ainda mais na amurada:

– Ouça, você – disse ele, dirigindo-se aquela voz na noite. – Tudo isso é muito estranho...Você surge de repente na escuridão da noite, em pleno Oceano Pacífico! Então não acha que temos razão de pensar no pior? Você diz que está sozinho. Como podemos saber se é verdade, se não o vemos? Por que você não quer que usemos o farol?

Quando Will terminou de falar, ouvi de novo o ruído dos remos e a voz voltou. Mas estava bem mais distante desta vez e seu tom era desesperado e patético.

– Perdoe-me...sinto muito. Eu não queria incomodar. É que estou com fome e...ela também!

A voz se extinguiu e o barulho dos remos que mergulhavam irregularmente dentro d’água chegava até nós.

– Pare! – gritou Will. – Não estou querendo afugentá-lo. Volte. Vamos deixar tudo no escuro, se é isso o que quer.

Will virou-se para mim:

– Tudo isso é muito estranho. Mas acho que não há motivo para se ter medo.

– É...também acho que não. Sem dúvida, o pobre-diabo naufragou

O barulho dos remos se aproximou.

Will me mandou esconder o farol e se debruçou na amurada, ficando de ouvido atento. Cheguei para perto dele. O ruído dos remos parou a uns doze metros.

– Por que não chega mais pra cá? O farol está escondido.

– Não...não posso – respondeu a voz. – Não ouso me aproximar. Não tenho nem com que pagar as provisões que agora peço a vocês.

– Não tem importância – disse Will. Hesitou e continuou: – Você pode levar os mantimentos que puder carregar...

Parou novamente.

– Você é muito bom – replicou a voz. – Que Deus, que compreende tudo, possa recompensá-lo...

– E... a senhora – perguntou bruscamente Will. – Ela está...

– Eu a deixei na ilha – foi a resposta.

– Que ilha? – cortei.

– Não sei como se chama – disse a voz. – Não vou pedir a Deus... – não terminou a frase começada.

– Não poderíamos mandar um bote para buscá-la? – indagou Will.

– Não! – gritou a voz com extraordinária ênfase. – Meu Deus! Não...

Houve uma pausa e em seguida a voz acrescentou num tom que parecia suplicar perdão por sua audácia:

– Se eu me arrisquei a vir pedir auxílio é porque estamos famintos demais e os sofrimentos dela me torturavam.

– Eu sou um estúpido – exclamou Will. – Espere um pouco e vou lhe dar qualquer coisa.

Ao cabo de alguns instantes, estava ele de volta com os braços cheios de víveres.

– Não pode encostar para apanhar? – perguntou.

– Não, não tenho coragem – replicou a voz, e me pareceu perceber uma inflexão de avidez sufocada, como se nosso interlocutor tentasse fazer calar um desejo lancinante. Subitamente, eu me dei conta de que o Ser Invisível que nos falava não estava louco, mas que, ao contrário, era vítima de um horror inominável.

– Com todos os diabos! – disse eu a Will. – Vamos arranjar uma caixa e mandar os gêneros para esse infeliz.

Vários sentimentos agitavam-se em meu íntimo. Entre eles predominava a compaixão.

Will concordou comigo e ambos descemos ao mar a caixa contendo as provisões. Ao cabo de um minuto, uma exclamação velada partiu da escuridão e compreendemos que o Invisível havia recebido a caixa.

Um pouco mais tarde, ele nos disse adeus com tantos agradecimentos que nos sentimos mais à vontade. Depois, ouvimos de novo o barulho dos remos.

– Partiu – disse Will meio decepcionado – depressa demais.

– Espere um pouco – repliquei. – Tenho a impressão de que ele vai voltar. Devia estar precisando muito daqueles alimentos.

– E a mulher, hein? – comentou Will.

Ficamos em silêncio por alguns minutos. Depois ele continuou:

– É a coisa mais esquisita que já vi desde que comecei a pescar.

– É mesmo! – concordei, e fiquei pensativo.

Uma hora e outra se passaram. Will estava sempre perto de mim, pois a estranha voz lhe tirara toda a vontade de dormir.

Mais de três horas se passaram quando ouvimos de novo o barulho de remos no oceano silencioso.

– Escute – disse Will, cuja voz deixava transparecer emoção.

– Está voltando, exatamente como eu havia pensado – murmurei.

Os remos soavam cada vez mais próximos e notei que sua cadência era mais firme do que antes. Não há dúvida de que estava precisando de alimento!

A canoa deve ter parado a pouca distância de nosso barco e de novo a voz estranha se elevou dentro da noite:

– Ei, vocês de bordo!

– É você? – perguntou Will.

– Sou eu, sim...Eu os deixei muito bruscamente, mas estava com pressa.

– Por causa de sua mulher? – perguntou Will.

– Minha mulher não sabe como lhes agradecer. Talvez possa dentro em breve, quando estiver lá no céu.

Will quis responder mas sua voz ficou embargada. Quanto a mim, não disse nada. Eu me perguntava qual seria o motivo daquelas hesitações. Além do meu espanto, estava cheio de compaixão.

A voz continuou:

– Nós...ela e eu falamos e partilhamos a prova da misericórdia divina e da piedade de vocês.

Will atalhou, mas sem a menor coerência. É a voz pediu:

– Não. Não queiram diminuir seu gesto de caridade cristã. Estejam certos de que Nosso Senhor não esquecerá.

Nova pausa. Depois o Invisível, aquela voz na noite, tornou a falar:

– Nós estávamos decididos a morrer sem contar a ninguém o que nos aconteceu. Mas achamos que isto que vocês fizeram como prova de bondade de Deus é um sinal de que ele quer que nós contemos o que temos sofrido desde...desde...

– Desde quando? – perguntou Will com voz terna.

– Desde o naufrágio do Albatroz.

– Ah! – exclamei involuntariamente. – Ele zarpou de New Castle para São Francisco há cerca de seis meses e não se ouviu mais falar nele.

– É... – tornou a voz. – Porque a alguns graus ao norte do Equador o navio foi destroçado por uma horrível tormenta. Quando amanheceu o dia os marinheiros desceram os escaleres e se foram, deixando minha noiva sozinha comigo a bordo do navio naufragado.

“Estávamos embaixo, nos camarotes, procurando juntar algumas coisas nossas, quando eles foram embora. O medo fizera com que perdessem todo sentimento humano. Quando chegamos ao convés já iam longe. Mas nós não nos desesperamos. Construímos às pressas uma pequena jangada. O navio foi logo depois a pique e nós ficamos flutuando em nossa jangada com água de beber e alguns biscoitos que conseguimos.

“Algum tempo depois, notamos que uma corrente forte nos arrastava para longe dos destroços. Ao crepúsculo caiu um nevoeiro que continuou a noite toda. Na manhã do dia seguinte, a bruma ainda fechava tudo, mas o tempo estava calmo.

“Durante quatro dias ficamos à deriva através daquela bruma, até a noite do quarto dia, quando ouvimos o barulho das ondas que se quebravam numa praia que devia estar próxima.

“Quando chegou a manhã, descobrimos que tínhamos entrado numa espécie de baía. Mas não vimos outra coisa senão o casco de um grande veleiro. Caímos de joelhos agradecendo a Deus pois julgávamos que nossa desgraça tinha chegado ao fim. Mas ainda tínhamos muito que aprender.

“A jangada chegou perto do navio e nós gritamos para que nos socorressem. Ninguém respondeu. Estávamos colados ao casco e como havia uma corda pendente da amurada comecei a subir por ela. Entretanto, tive muita dificuldade de chegar lá em cima por causa de uma espécie de líquen cinzento que se agarrava à corda e manchava o casco do barco.

“Cheguei finalmente a bordo. Lá eu vi que o convés estava coberto quase todo de grandes manchas cinzentas, algumas delas entremeadas de nós que se elevavam muitos pés acima do assoalho. Mas nessa ocasião eu pensava muito menos nisso do que na possibilidade de encontrar alguém dentro daquele navio. Gritei mas ninguém me respondeu. Fui até uma porta e abri. Um forte cheiro de maresia me entrou pelas narinas e compreendi imediatamente que não havia nenhum ser vivo ali dentro. Tornei a fechar a porta rapidamente, pois me senti muito solitário.

“Voltei para o lado por onde havia subido. Minha... minha querida estava lá tranquilamente sentada na jangada. Quando me viu levantou a cabeça e perguntou se havia alguém a bordo. Contei-lhe tudo e disse-lhe que ia procurar uma escada para que ela pudesse subir e juntos haveríamos de esquadrinhar o navio todo. Encontrei uma escada de corda. Um minuto depois ela estava comigo.

“Exploramos juntos todos os recantos do barco. Abrimos caminho até a proa através daquelas horríveis excrescências de estranha vegetação. Era o último lugar que devíamos esquadrinhar. Nada de novo. Não havia ninguém.

“Voltamos então para a popa e procuramos nos instalar da melhor maneira possível. Limpamos dois camarotes. Depois eu quis ver se não havia gêneros alimentícios a bordo. Encontrei e agradeci a Deus por sua bondade. E descobri o lugar onde estava a bomba d’água. Ajeitei-a e verifiquei que a água era potável embora de gosto bem desagradável.

“Durante vários dias ficamos no navio, sem tentar descer à terra. Ficamos muito ocupados em fazer com que o nosso abrigo se tornasse mais habitável. Mas logo verificamos que nossa situação estava longe de ser tão boa quanto esperávamos. Com efeito, conquanto um de nossos primeiros cuidados tivesse sido raspar aquelas bizarras placas de vegetação que cobriam o chão e as paredes dos camarotes e do salão, estas tornavam a crescer no período de vinte e quatro horas. Isso não somente nos desanimava como também nos dava uma vaga sensação de mal-estar.

“Entretanto, não queríamos nos considerar vencidos, e púnhamos imediatamente mãos à obra. Raspamos minuciosamente as paredes e o chão, todos os lugares onde cresciam os cogumelos, com fenol que tínhamos encontrado na despensa. Pois bem, no fim de semana, a vegetação estava como antes e mais, tinha proliferado como se os germes se houvessem propagado, simplesmente por havermos tocado naqueles esquisitos cogumelos.

“Na manhã do sétimo dia, minha bem-amada ao acordar deu com uma placa cinzenta em seu travesseiro, bem ao lado do seu rosto. Logo que despertou veio a mim. Eu estava na cozinha acendendo o fogo para preparar o pequeno almoço.

“'Venha comigo, John”, disse-me ela conduzindo-me à popa do barco.

“Quando eu vi aquela coisa no travesseiro comecei a ter receios. Resolvemos deixar o navio e tentar nos instalar em terra.

“Reunimos, às pressas, alguns objetos que nos pertenciam e eu verifiquei que os cogumelos já se haviam agarrado mesmo neles. Por exemplo, percebi uma mancha cinzenta na beira do xale de minha noiva. Joguei tudo no mar sem dizer palavra.

“A jangada continuava encostada no navio,mas como era difícil de ser dirigida, desci um barquinho preso à popa e foi assim que chegamos à praia."

“Quando nos aproximamos, notei que os horríveis cogumelos que nos haviam afugentado no navio se espalhavam literalmente pela terra firme. Em certos locais formavam horríveis e fantásticos montículos que pareciam quase fremir quando o vento os agitava. Era como se tivessem vida. Aqui e ali tomavam a forma de dedos enormes e por vezes se espalhavam doces e traidores sobre o solo. Algumas vezes, ainda, assumiam o aspecto de árvores grotescas, cheias de nodosidades. E tudo aquilo, de quando em vez, tremia de modo hediondo."

“Primeiro tivemos a impressão de que na havia um só lugar na praia que não estivesse contaminado por aquele horrível líquen. Mas descobri que nos enganáramos, pois um pouco mais tarde quando contornávamos a costa, a uma pequena distancia, divisamos um lençol branco que nos pareceu areia fina. Foi lá que encostamos. Não era areia. O que era não sei. Tudo o que notei foi que lá não havia cogumelos, enquanto por toda parte dominavam."

“É difícil descrever a alegria com que descobrimos aquele local. E foi lá que colocamos os nossos pertences. Depois voltamos ao veleiro para apanhar as coisas que nos eram necessárias. Entre estas consegui carregar uma das velas com a qual construí duas pequenas tendas. Lá vivíamos e conservávamos o que necessitávamos. Durante mais de quatro semanas tudo correu bem. Chegamos a nos sentir até mesmo felizes... pois... estávamos juntos."

“Foi no polegar de sua mão direita que um cogumelo apareceu. Era apenas uma manchinha circular, uma coisa parecida com uma verruga cinzenta. Meu Deus! Meu coração bateu de medo quando ela me mostrou aquela placa. Limpamos aquilo com água e fenol. No dia seguinte pela manhã tornou a me mostrar sua mão: a verruga tinha voltado. Por um instante n os olhamos em silencio. Depois , sempre sem falar, tentamos novamente tirá-la. No meio da operação ela me disse de repente:"

“Que é isso do lado de sua cabeça, querido?"

“Sua voz estava cheia de ansiedade. Passei a mão pela minha cabeça. Bem debaixo dos cabelos, ao lado da orelha, meus dedos tocaram aquela coisa.

“Vamos acabar primeiro o seu dedo, disse eu."

“E ela obedeceu, simplesmente porque tinha medo de me tocar antes de se libertar do líquen. Depois que lavei e desinfetei seu dedo ela se ocupou do meu rosto. Terminada a operação ficamos sentados um ao lado do outro, falando , pois acontecimentos terríveis de súbito nos atingiriam. Uma coisa passou a nos afligir mais do que a morte. Pensamos em carregar o bote de provisões e ganhar o alto mar. Mas estávamos indefesos por várias razões e além disso a vegetação já nos tinha atacado. Resolvemos ficar. Deus faria de nós o que já tivesse decidido. Ficaríamos."

“Um mês, dois meses, três meses passaram. Outras placas se haviam seguido às primeiras. Entretanto, lutávamos tão desesperadamente contra o medo que sua progressão era relativamente lenta."

“De quando em vez nos aventurávamos a ir ao navio para buscar o que nos faltava. Lá o líquen crescia com persistência. Um dos arbustos da ponte de comando logo atingiu a altura da minha cabeça."

“Abandonáramos qualquer pensamento ou esperança de deixar a ilha. Compreendemos que não tínhamos o direito de viver entre criaturas humanas, atacadas daquele mal."

“Uma vez tomada essa decisão, foi preciso pensar em economizar água e alimento, pois não sabíamos se teríamos de viver muito."

“Lembro-me que eu lhe disse que sou um velho. A julgar pelos anos não é verdade. Mas...mas...”

Ele fez uma pausa para depois continuar:

“Como eu estava dizendo, nós sabíamos que era preciso prestar atenção nos gêneros, mas não sabíamos que era mínima a quantidade que nos restava. Uma semana depois eu descobri que todos os cestos de pão que eu pensava que estivessem cheios estavam vazios e que, além de caixas de legumes de carne e coisas miúdas, não tínhamos para comer senão o pão da cesta que eu acabava de abrir."

“Resolvi, então, fazer o que pudesse e comecei a pescar, sem nenhum resultado, para nossa desgraça. Esse fracasso me levou às raias do desespero, até que eu tive a ideia de tentar pescar em alto mar."

“Lá, vez por outra, consegui pegar alguma coisa. Mas era tão raro que isso não nos ajudava a matar a fome que nos ameaçava. Pareceu-me então que seríamos mortos pela fome e não pelos cogumelos proliferando em nossos corpos.

“Era esse o nosso estado de espírito quando o quarto mês chegou ao fim. Então fiz uma descoberta horrível. Certa manhã, antes do meio-dia, eu voltava do navio com a última porção de biscoitos que havia a bordo. À entrada da tenda vi minha querida sentada a comer uma coisa.

““Que é isso? – gritei ao pular para terra.

“Ela deu a impressão de ficar perturbada ouvindo minha voz. Virou-se e furtivamente jogou qualquer coisa à margem da pequena clareira. Mas aquilo não chegou até lá e eu, com uma vaga suspeita em meu espírito, fui apanhar: era um pedaço do líquen cinzento!

“Quando caminhei para ela com o líquen na mão seu rosto tomou uma palidez mortal, depois ficou vermelho.

“Senti-me estranhamente aturdido e amedrontado.

““Minha querida, minha querida!” disse eu, sem saber falar outra coisa.

“Ela, entretanto, caiu em pranto. Pouco a pouco foi se acalmando. Confessou-me que havia experimentado no dia anterior e que a coisa lhe agradara. Fiz com que se ajoelhasse e prometesse que não tocaria mais naquilo por maior que fosse a nossa fome. Depois de ter prometido, disse-me que seu desejo de comer o líquen tinha vindo subitamente e que até então não sentia por essa planta senão a maior repugnância.

“Um pouco mais tarde, durante o dia, como eu me sentisse estranhamente agitado e muito perturbado pelo que descobrira, segui um daqueles caminhos sinuosos de substância branca e arenosa que conduziam à vegetação invasora. Uma vez antes eu me aventurara a isso porém sem ir muito longe. Naquele dia, mergulhado como eu estava em meus pensamentos, fui muito mais além do que eu devia.

“Subitamente, fui chamado à realidade por um estranho ruído cavo que partia de minha esquerda. Virei-me rapidamente e vi uma massa de líquen de forma extraordinária, bem perto do meu cotovelo agitando-se com um movimento regular. Essa massa balançava com inquietação, como se possuísse vida própria. De repente, enquanto meus olhos fascinados contemplavam aquilo, achei que poderia ser a grotesca figura de um ser humano deformado. Ainda estava pensando sobre isso quando ouvi um ruído desagradável, como se alguém estivesse rasgando algo, e vi alguma coisa se aproximando, algo como braços, que eram como galhos, e pareciam estar se descolando da massa cinzenta sem forma definida. A cabeça... era uma espécie de bola cinzenta e disforme, e estava cada vez mais perto de mim. Fiquei ali, como um estúpido, sentindo o braço repugnante roçando meu rosto. Dei um grito de terror e o afastei com algumas tapas, voltando alguns passos. Em meus lábios senti um sabor adocicado. Passei a língua neles e num instante senti que me oprimia um desejo inumano. Virei e agarrei um punhado da substância. E logo mais... muito mais. O meu desejo era insaciável. Enquanto devorava a substância, a lembrança daquela descoberta da manhã penetrou no labirinto do meu cérebro. Era Deus que me enviava aquelas recordações. Atirei para longe o pedaço que tinha na mão. Logo , totalmente abatido e sentindo-me culpado, voltei para o pequeno acampamento.

“Acho que graças à maravilhosa intuição que o amor confere, ela compreendeu o que se passara logo que pôs os olhos em mim. Sua terna piedade tornou mais fácil a minha confissão. Entretanto, omiti voluntariamente mencionar a coisa extraordinária que eu vira com meus próprios olhos. O meu desejo era evitar-lhe todo terror inútil.

“Mas a minha angústia era insuportável, pois eu estava certo de que acabava de assistir ao fim de um dos homens que tinham aportado ali com aquele barco veleiro. E aquele monstruoso fim prenunciava o nosso.

“Depois disso não provamos mais aquela abominável comida, embora sentindo um desejo louco de comê-la. O triste castigo, porém, estava suspenso sobre nossas cabeças. Dia após dia, com monstruosa

rapidez, os liquens proliferavam em nossos desgraçados corpos. Assim... nós, que tínhamos sido entes humanos, íamos nos tornando...Enfim, isto cada dia vai tendo menos importância.

“E dia após dia, a luta é mais terrível para resistir ao desejo desenfreado de comer o horrível líquen.

“Há uma semana comemos o último biscoito. De lá para cá apanhei três peixes. Tinha saído para pescar quando vi aparecer o barco de vocês no meio do nevoeiro. Chamei. E que Deus os abençoe pelo seu bom coração.

“Ouviu-se o barulho dos remos que mergulhavam na água. Uma vez, duas vezes. A voz tornou a falar:

– Deus os abençoe! Adeus!

– Adeus! – gritamos juntos com voz rouca. Nossos corações pulsavam desordenadamente sob as mais estranhas emoções.

Circunvaguei o olhar. Percebi que o dia começava a raiar.

O sol pôs um de seus raios sobre o mar escondido, transpassou tristemente a bruma e clareou como uma mancha luminosa o bote que se afastava. Instintivamente percebi qualquer coisa que se agachava entre os remos. Parecia uma esponja: uma grande esponja cinzenta e curvada. Os remos continuavam a fender o mar. Eram cinzentos, como também era o bote. Meus olhos procuraram em vão o contato da mão com o remo. Meu olhar fixou-se na cabeça. Ela se inclinava para frente, enquanto os remos mergulhavam para trás. Depois, o bote saiu da mancha de luz e a... coisa continuou a avançar hesitante para dentro do nevoeiro.


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