AQUELE QUE VENCEU A GUILHOTINA - Conto de Terror - Pedro Pantoja
AQUELE
QUE VENCEU A GUILHOTINA
Pedro
Pantoja
As
execuções na vila de Mariano César aconteciam à noite. Lá, a guilhotina já
havia separado cinco cabeças de seus corpos, numa única noite. Mas a história
da execução de Miguel Verde fugiu à normalidade.
Não
me recordo bem do crime que Miguel cometera, contudo me recordo vivamente de
sua execução por dois motivos: o primeiro porque fui seu carrasco. O segundo,
em que pese ser inacreditável, é verdadeiro e lhes narro ainda sobressaltado.
Seria
a única execução da noite. Uma ventania nunca vista antes fustigava os cabelos
e as roupas das testemunhas que apareciam para ver o cumprimento da sentença.
Quando a carroça parou, o outro carrasco ordenou que o condenado descesse para
depois subir ao patíbulo. Miguel trazia uma mordaça à boca e vestia somente uma
calça deveras rota. As mãos estavam amarradas atrás das costas e o pescoço com
grossos lanhos perceptíveis mesmo a pouca luminosidade.
Junto
à população e a alguns guardas, o comandante da execução, major Ruiz,
perguntou-o se desejaria algo desta vida antes de morrer. Verde meneou a cabeça
afirmativamente. Então, o major me mandou tirar a mordaça para que aquele
pudesse falar.
—
Desejo que, após a execução, a vila me considere como um homem livre; que tenha
pagado sua dividia com a sociedade. Não desejo mais ser importunado por ninguém
— solicitou Miguel Verde.
O
major Ruiz riu-se placidamente e virando-se para as pessoas presentes, cuja
quantidade grassava, falou:
—
A lei não proíbe que, após as execuções, os condenados sejam considerados
livres, meus senhores. Também é demonstração da piedade que nossa vila pode
oferecer. Para mim não há problema. Assim, peço que se alguém se opuser, fale
agora.
Todos
mantiveram o silêncio.
Então
o major determinou, valendo-se de um tom jocoso:
—
Após a execução, o estafermo será perdoado.
As
pessoas presentes riram pelo adjetivo dispensado ao condenado. Ainda assim,
Miguel Verde curvou sua cabeça em agradecimento. A mesma cabeça que seria
decapitada! Em seguida, recoloquei a mordaça e dei-lhe voz de comando para
aboletar seu pescoço no vão de madeira por onde a lâmina passaria, no que
prontamente obedeceu. Enquanto o outro carrasco o vigiava, fechei o madeiro
superior envolta do pescoço de Miguel, travando-o com dois ferrolhos
inalcançáveis por suas mãos.
Ao
sinal do major, soltei a corda que sustinha a afiadíssima lâmina.
O
som da morte reboou pela vila. A execução havia terminado, porém algumas
pessoas gritaram horrorizadas. Distingui quando uma voz senil e trêmula,
esconsa no meio dos espectadores, berrou um premonitório “Santo Deus, isso é
impossível”.
Rapidamente
compreendi que algo dera errado na execução. Não havia sangue no estrado e o
cesto que aparava as cabeças decapitadas estava vazio. Maquinalmente, eu olhei
para o decapitado que se mantinha imóvel, a não ser pelo sorriso que estampava
por trás da mordaça. A lâmina passara pela sua garganta e ele não produzira um
espasmo muscular sequer. O homem havia sobrevivido à execução pela guilhotina.
Apavorado, eu me perguntava como.
A
despeito dos gritos aterrados da população, o outro verdugo não havia percebido
que a guilhotina fora vencida.
Enquanto
o major Ruiz olhava incrédulo para o cadafalso, Miguel Verde, num movimento
medonho, levantou-se lentamente. Seu pescoço transpassara o madeiro que o
segurava. Já havia desatado o nó das mãos e soltado a mordaça. Então olhou para
o público, cujas colunas vergavam-se para trás por puro assombro, e disse:
—
Enforquei-me há algumas horas e escondi meu corpo debaixo da cama, na cela.
Agora sou uma alma livre, já que nada mais devo a vocês.
Enterrem-me
dignamente!
Em
seguida, o fantasma pulou do estrado para o chão, espantando um sem-número de
pessoas, e encetou um caminhar rápido para a saída da vila. Perturbadoramente,
seu corpo foi se tornando mais e mais diáfano até desaparecer por completo.
Por
ordem do major, alguns guardas diligenciaram à cela onde o condenado estava
detido e encontraram seu cadáver com uma corda presa ao pescoço, sob o catre.
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