OS LOBOS DE CERNOGRATZ - Conto Clássico de Terror - Saki
OS
LOBOS DE CERNOGRATZ
Saki
(Hector Hugh Munro)
(1870
– 1916)
Nascido na Birmânia, e
filho de pai e mãe britânicos, Hector Hugh Munro, mais conhecido como Saki
(1870 – 1916), foi — assim como Ambrose Bierce — um hábil contista que aliava,
com maestria, o humor — cáustico e irônico — ao terror. “Os Lobos de
Cernogratz” foi publicado postumamente, em 1919, no volume de contos
fantásticos “Os Brinquedos da Paz”.
—
Existem antigas lendas associadas ao castelo? — perguntou Conrad à irmã.
Apesar
de ser um próspero comerciante de Hamburgo, Conrad era o único membro de
inclinações poéticas em uma família eminentemente prática.
A
baronesa Gruebel deu de ombros — estes, aliás, rechonchudos.
—
Sempre pairam lendas nestes lugares antigos. Estas são fáceis de inventar e não
custam nada. Neste caso, dizem que, quando alguém morre no castelo, todos os
cães da aldeia e as feras da floresta uivam a noite inteira. Não seria nada
agradável escutá-los, não é mesmo?
—
Seria excêntrico e romântico — disse o comerciante de Hamburgo.
—
De toda forma, nada disto é verdade — disse a baronesa, complacente. — Desde
que adquirimos o castelo, tivemos a oportunidade de comprovar que nada disto
acontece. Quando a minha velha sogra morreu, na última primavera, todos ficamos
atentos, mas não houve um uivo sequer. Tudo é apenas uma lenda, que confere
dignidade ao lugar, e sem custo algum.
—
A lenda não é assim como a senhora contou — disse Amalie, a velha e grisalha
governanta.
Todos
olharam para ela, assombrados. De costume, ela se sentava à mesa em silêncio,
comedida e distante, sem jamais falar, a menos que alguém lhe dirigisse a
palavra. E eram poucos os que se preocupavam em entabular conversa com ela.
Hoje, uma loquacidade súbita desceu sobre ela. Ela continuou a falar, rápida e
nervosamente, olhando para frente e, aparentemente, sem se dirigir a alguém em
particular.
—
Não é quando alguém morre no castelo que se escutam os uivos. Somente quando um
membro da família Von Cernogratz morria aqui, os lobos, próximos ou distantes,
acorriam e se punham a uivar na orla da floresta, pouco antes da hora da morte.
Os bosques daqui abrigavam poucos lobos, mas, naquelas ocasiões, os guardas
florestais diziam que haveria dezena deles, deslizando nas sombras e uivando em
coro. Então, os cães do castelo, da aldeia e das fazendas circunvizinhas
começavam a latir e a uivar de medo e raiva do coro dos lobos. E quando a alma
do moribundo abandonava o corpo, uma árvore ia abaixo nos jardins. Isto era o
que acontecia quando morria algum Von Cernogratz no castelo da família. Mas, se
um estranho morre aqui, é claro que nenhum lobo uiva e nenhuma árvore desaba! Oh,
isto não!
Havia
um tom de desafio, quase de desprezo, nestas últimas palavras. A bem alimentada
e muito bem vestida baronesa olhou com raiva para essa deselegante anciã, que
se atrevera a abandonar a apropriada e costumeira posição de humildade para falar
tão desrespeitosamente.
—
Tudo indica que você sabe muito sobre as lendas dos Von Cernogratz, Fräulein
Schmidt — disse ela bruscamente. — Não sabia que as histórias de famílias se
incluíam entre as matérias nas quais a senhora tem proficiência.
A
resposta a esta provocação foi ainda mais inesperada e surpreendente que o
surto de conversação que irrompera na velha senhora.
—
Sou uma Von Cernogratz — disse a velha senhora. — É por isto que sei da
história da família.
—
Você, uma Von Cernogratz? Você! — soou
um coro incrédulo.
—
Quando nos arruinamos — ela explicou —, e tive de dar aulas particulares, mudei
de nome. Pareceu-me mais apropriado. Mas
meu avô passou grande parte de sua infância neste castelo e minha mãe costumava
contar-me muitas histórias acerca deste lugar. E, é claro, aprendi todas as
histórias e lendas familiares. Quando nos restam poucas lembranças, cuidamos de
tirar o pó que jaz sobre elas e as guardamos com especial cuidado. Eu jamais
imaginava, quando vim a trabalhar com os senhores, que algum dia seria trazida
para a antiga residência familiar. Gostaria, talvez, de ter ido para qualquer
outro lugar.
Caiu
um silêncio quando ela terminou de falar e, em seguida, a baronesa desviou a
conversa para um tema menos constrangedor que o das histórias de família. Mas
tarde, todavia, quando a velha governanta já se retirara tranquilamente aos
seus afazeres, elevou-se um clamor de zombaria e incredulidade.
—
Mas que impertinência! — bradou o barão, com os olhos salientes assumindo uma
expressão escandalizada. — Vejam se tem cabimento essa mulher falando assim em
nossa mesa! Só faltou dizer que nós não somos ninguém. E não creio numa palavra
dela. É uma Schmidt e nada mais. Decerto, esteve confabulando com algum
camponês sobre a antiga família Von Cernogratz e se apropriou de suas histórias
e lendas.
—
Ela quer um alívio futuro — disse a baronesa. — Sabe que terá um trabalho
pesado pela frente e quer apelar para a nossa simpatia. Seu avô... Ora,
deixe-me!
A
baronesa tinha o habitual número de avós, mas nunca se vangloriava deles.
—
Ouso dizer que o avô dela era um ajudante de despensa ou algo assim neste
castelo — sorriu o barão. — Essa parte da história pode ser verdadeira.
O
comerciante de Hamburgo não disse nada. Havia visto lágrimas nos olhos da anciã
quando ela falou em guardar as lembranças... ou, por ter uma propensão à
imaginação, acreditou que as tinha visto.
—
Vou dar-lhe o aviso de dispensa assim que terminem as festividades de Ano Novo
— disse a baronesa. — Até lá, vou estar muito ocupada para prescindir de sua
ajuda na governança da casa.
Mas
ela teve de gerir pessoalmente os interesses domésticos pois, com o frio
penetrante que chegou depois do Natal, a velha governanta caiu doente e teve de
ficar de cama.
—
É muito irritante — disse a baronesa, enquanto os seus convidados se sentavam
em volta da lareira em uma das últimas tardes do ano que morria. — Durante todo
o tempo em que ela tem estado conosco, não me lembro de um dia em que ela tenha
ficado gravemente enferma. Ou seja, doente demais para fazer o seu trabalho. E
agora, que tenho a casa cheia, e ela me poderia ser útil de várias maneiras,
apressa-se em cair de cama. Sinto pena dela, naturalmente, já que se mostra tão
mirrada e encolhida, mas, de toda forma, é tudo muito desagradável.
—
Muito inconveniente — concordou a mulher do banqueiro, cheia de compreensão. —
Acho que é o frio intenso. Ele acaba com os idosos. E este ano está
excepcionalmente frio.
—
A friagem de dezembro tem sido mais intensa do que em muitos anos — disse o
barão.
—
E, claro, ela está muito velha — disse a baronesa. — Quisera tê-la dispensado
algumas semanas atrás... O que foi, Wappi?
O
cãozinho saltara de repente de seu colo e se metera, a tremer, sob o sofá. No
mesmo instante, uma explosão de latidos raivosos irrompeu no castelo, e se
ouviu o ladrar de outros cães à distância.
—
O que será que está inquietando os animais? — perguntou o barão.
Então
os seres humanos prestaram atenção e ouviram o som que suscitava nos cães
aquelas manifestações de medo e raiva: um prolongado e lastimoso uivo que subia
e descia, aparentando, em um momento, provir de léguas de distância e, noutro,
arrastar-se pela neve, até, finalmente, parecer que emergia dos pés dos muros
do castelo. Toda a fome e miséria de um mundo congelado, a implacável fúria da
natureza selvagem, combinadas a outras melodias desoladas e inefáveis, pareciam
concentra-se naquele uivo lastimoso.
—
Lobos! — exclamou o barão.
A
música lupina irrompeu em uma explosão violenta e parecia vir de todos os
lugares.
—
Centenas de lobos — disse o comerciante de Hamburgo, que era um homem de
poderosa imaginação.
Movida
por um impulso que ela mesma não poderia explicar, a baronesa abandonou os seus
convidados e seguiu ao triste e estreito cômodo onde a velha governanta jazia,
assistindo ao passar das horas de um ano moribundo. Apesar do frio cortante da
noite de inverno, a janela do quarto estava aberta. Com uma exclamação
escandalizada nos lábios, a baronesa correu para fechá-la.
—
Deixe-a aberta — disse a anciã com uma voz que, malgrado débil, continha em si
um tom de autoridade que a baronesa jamais ouvira escapar daqueles lábios.
—
Mas você vai morrer de frio! — protestou.
—
De qualquer maneira, eu estou morrendo — disse a voz. — E eu quero escutar a
música que eles fazem. Eles vieram de longe para cantar o réquiem de minha
família. É lindo que tenham vindo. Sou a última Von Cernogratz a morrer neste
antigo castelo e eles vieram para cantar para mim. Ouça o quão alto eles
clamam!
E
o uivo dos lobos se elevava no ar ainda invernoso e flutuava em torno das
muralhas do castelo em lamentos longos e pungentes. A velha mulher descansava
no leito, e via-se em sua face um olhar de felicidade há muito tempo
postergada.
—
Vá embora — disse ela à baronesa. Não estou mais sozinha. Faço parte de uma
antiga e altaneira família...
—
Acho que ela está morrendo — disse a baronesa ao voltar a seus comensais. —
Creio que devamos chamar um médico. E esses uivos terríveis! Nem por uma boa
porção de dinheiro eu deixaria que esta música lúgubre tocasse.
—
Essa música não se compra por dinheiro nenhum — disse Conrad.
—
Ouçam! Que outro barulho é este? — perguntou o barão, ao ouvir o estrépito de
algo que se partia e desabava.
Era
a árvore que caía nos jardins. Houve um momento de silêncio constrangido até
que a esposa do banqueiro comentou:
—
É o frio intenso que parte as árvores. E, também, foi o frio o que trouxe toda
essa quantidade de lobos. Faz muitos anos que não temos um inverno tão frio.
A
baronesa avidamente concordou que o frio era o responsável por tudo aquilo. E
foi também o frio da janela aberta o que causou a insuficiência cardíaca que
tornou desnecessários os serviços do médico para a velha Fräulein. Mas no aviso
dos jornais aparecia muito claramente:
Faleceu,
em 29 de dezembro, em Schloss Cernogratz, Amalie von Cernogratz, por muitos
anos dileta amiga do barão e da baronesa Gruebel.
—
Tradução de Paulo
Soriano.
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