UMA VENDETTA - Conto Clássico Cruel - Conto de Horror - Guy de Maupassant
UMA VENTETTA
Por Guy de Maupassant
(1850 -1893)
Sobre a montanha branca, o montão de casas põe uma mancha ainda
mais branca.
Essas casas têm o ar de ninho de aves selvagens, agarradas àquelas
rochas, dominando aquelas passagens onde os navios nunca se aventuram.
O vento, sem repouso, fustiga a costa nua, por ele roída,
vestida apenas de erva, e abisma-se no estreito que invade as margens. Os
pedaços de uma escuma pálida, agarrados às pontas negras das inúmeras rochas
que por toda parte furam as vagas, têm a aparência de farrapos de pano
flutuando e palpitando à superfície da água.
A casa da viúva Saverini, grudada na borda da falésia, abria as
suas três janelas para aquele horizonte selvagem e desolado.
Ela vivia ali, só, com o seu filho Antoine e a sua cadela Semelhante,
um animal grande e magro, de compridos pelos selvagens, da raça dos cães de
guardadores de rebanhos. Semelhante servia também para caçar.
Uma noite, depois de uma briga, Antoine foi morto à traição, com
uma navalhada, por Nicolas Ravolati, que nesta mesma noite se safou para a
Sardenha.
Quando a velha mãe recebeu o corpo de seu filho, que uns
transeuntes lhe trouxeram, não chorou, mas ficou muito tempo imóvel, a olhá-lo.
Depois, estendendo a sua mão rugosa sobre o cadáver, prometeu vingá-lo.
Não permitiu que ninguém a acompanhasse e fechou-se com o corpo,
ficando imóvel junto a ele com a cadela, que uivava de um modo contínuo, em pé,
próxima ao leito, a cabeça estendida para o seu dono e a cauda apertada entre
as pernas. Ela não se mexia mais que a mãe do morto. A mulher, inclinada para o
corpo, o olhar fixo, chorava grossas lágrimas mudas, contemplando-o. O rapaz,
prostrado de costas, vestido com a sua roupa grosseira de pano esburacado e
rasgado no peito, parecia dormir. Mas tinha sangue por todos os lados: na
camisa arrancada pelos primeiros socorros, no colete, na calça, nas faces, nas
mãos. Pastas de sangue haviam-se coalhado na barba e nos cabelos.
A velha mãe pôs-se a falar-lhe. Ao ruído daquela voz, a cadela
emudeceu.
— Deixa, deixa, serás vingado, meu filho, meu menino. Dorme,
dorme, que serás vingado, entendes? É a tua mãe quem te promete. Ela nunca
faltou à sua palavra, a tua mãe, tu bens sabes disto.
E lentamente a viúva de Saverini debruçou-se para o seu filho,
colando os lábios frios naqueles lábios mortos.
Então, Semelhante pôs-se a gemer. Soltava uma grande queixa
monótona, lancinante, horrível.
E ali ficaram ambos, a mulher e o animal, até amanhecer.
Antoine Saverini foi enterrado no dia seguinte, e daí a pouco
ninguém mais falou dele em Bonifacio.
Ela não tinha nem irmãos nem parentes próximos. Nenhum homem havia
para prosseguir na vingança. Só a mãe pensava nela, só a velha. Do outro lado
do estreito ela via, de manhã à noite, um ponto branco sobre a costa. Era uma
pequena aldeia sarda, Longosardo, onde se refugiavam os bandidos corsos
perseguidos muito de perto.
São eles quase que exclusivamente quem povoa aquela aldeia,
defronte das costas de sua pátria, esperando ali o momento de poderem voltar,
de regressar ao mato da Córsega, o maqui, como lá se chama. É lá naquela aldeia
— ela sabe disto — que se refugia Nicolas Ravolati.
Completamente só, ao longo do dia, sentada à sua janela, a velha
olha para as distâncias, pensando na vendetta. Como ela a levaria a
cabo, sem auxílio de ninguém, enferma, tão perto da morte? Mas prometera,
jurara sobre o cadáver do filho. Não podia esquecer, não podia esperar. O que
faria? Não dormia durante a noite, não tinha descanso, nem paz. Procurava
obstinadamente um meio. A cadela, a seus pés, dormia e, por vezes, levantando a
cabeça, uivava para longe. Desde que seu dono deixara de estar ali, o animal
uivava muitas vezes assim, como se ele o chamasse, como se sua alma de
irracional, inconsolável, houvesse também guardado a recordação que não se
apaga.
Ora, uma noite, como Semelhante se pusesse a gemer, a mãe, de
repente, teve uma ideia. Uma ideia selvagem, vingativa e feroz. Meditou sobre
ela até de manhã. Depois, levantando-se logo à aproximação do dia,
dirigiu-se à igreja.
Rezou, prostrada no lajedo, abatida diante de Deus, suplicando-lhe
que a ajudasse, que lhe conservasse a vida, que desse ao seu pobre corpo a
força que lhe faltava para vingar o filho.
Depois voltou a casa. Tinha no pátio um velho barril sem tampa que
recolhia a água das goteiras. Tombou-o, despejou-o, sujeitando-o ao solo por
meio de pedras e estacas. Depois pendeu Semelhante naquele nicho e entrou em
casa.
Marchava, agora, sem descanso, pelo quarto, o olhar continuamente
fixo na costa da Sardenha. Lá, ao longe, estava o assassino.
A cadela uivou todo o dia e toda a noite. A velha, de manhã,
levou-lhe água numa panela. E nada mais. Nem sopa, nem pão.
Passou-se ainda um dia. Semelhante, extenuada, deixou-se dormir.
Tinha os olhos luzentes, o pelo eriçado, e puxava alucinadamente pela corrente
que a amarrava.
A velha continuou a não lhe dar nada de comer. O animal tornou-se
furioso e latia em voz rouca. Passou-se ainda a noite.
Então, ao despontar o dia, a mãe Saverini foi à casa de um seu
vizinho pedir dois molhos de palha. Lançou mão de um terno velho, que outrora
servira a seu marido, e forrou-o com a palha, de forma a imitar um corpo
humano.
Tendo fincado um pau no solo, diante do nicho de Semelhante,
amarrou a ele aquele manequim, que assim parecia estar de pé.
Depois, compôs a cabeça por meio de uma trouxa de roupa velha.
A cadela, surpreendida, olhava para aquele homem de palha, e
calava-se, embora devorada pela fome.
Então, a velha foi comprar ao salsicheiro um grande pedaço de
chouriço preto. Voltando a casa, acendeu fogueira no pátio, perto do nicho, e
assou o chouriço. Semelhante, desesperada, espumava, de olhos fixos na grelha
cuja fumaça lhe entrava no ventre.
Depois, a mãe fez daquele grelhado fumegante uma gravata para o
homem de palha. Atou-o detidamente em volta do pescoço, como se quisesse
enterrá-lo dentro dele. Feito isto, soltou a cadela.
Com um salto formidável, o animal atingiu o manequim na garganta,
e, com as patas sobre os seus ombros, pôs-se a estraçalhá-lo. Caía com um
pedaço das goelas de sua presa e depois atirava-se de novo, enterrando os
dentes nos cordéis, arrancando algumas parcelas de comida, tornando a cair para
voltar a atirar-se encarniçadamente. Arrancava grandes pedaços do rosto do
manequim, fazendo em destroços todo o pescoço.
A velha, imóvel e calada, olhava de olho inflamado. Depois voltou
a prender o animal, impondo-lhe um jejum de mais dois dias, e recomeçou aquele
estranho exercício.
Durante três meses, habituou a cadela àquele gênero de luta,
àquela refeição conquistada às dentadas. Por fim, já não a prendia; lançava-a
com um gesto sobre o manequim.
Ensinara-a a dilacerar, a devorar, por fim, mesmo que não houvesse
comida alguma nas goelas do homem. E em seguida, como recompensa, dava-lhe o
chouriço assado na grelha.
Assim que via o homem de palha, Semelhante estremecia, depois
voltava os olhos para a dona, que gritava “vai!” numa voz sibilante, enristando
o dedo.
Quando lhe pareceu que era tempo, a mãe Saverini foi confessar-se
e comungou, num domingo de manhã, com um furor extático. Depois, vestiu-se com
terno de homem, tomando a aparência de um velho mendigo esfarrapado. Contratou
um pescador sardo para conduzi-la, acompanhada de sua cadela, ao outro lado do
estreito.
Levava no seu alforje um grande pedaço de chouriço preto.
Semelhante jejuava há dois dias. A velha fazia-a cheirar a todo momento aquela
comida olorosa, excitando o animal.
Entraram em Longosardo. A corsa caminhava coxeando. Dirigiu-se à
casa de um padeiro e perguntou onde morava Nicolas Ravolati. Este
retomara o seu antigo ofício, o de marceneiro. Trabalhava só, como que
escondido, no seu estabelecimento. A velha passou pela porta e chamou:
— Ei! Nicolas!
Ele voltou-se. Então, soltando a cadela, a velha gritou:
— Vai! Corre! Devora, devora!
O animal, desesperado, atirou-se, ferrando os dentes na garganta
do homem. Este estendeu os braços, estreitou o animal, e rolou por terra.
Durante alguns segundos contorceu-se, batendo os pés no chão. Depois, ficou
imóvel, enquanto que Semelhante lhe buscava o pescoço, arrancando-o aos
pedaços.
Dois vizinhos, que se achavam sentados às suas portas, recordam-se
perfeitamente de terem visto sair da aldeia um velho mendigo com um cão negro,
magríssimo, e que comia, ao mesmo tempo em que ia andando, alguma coisa negra
que o seu dono lhe dava.
A velha, à noite, estava de volta em sua casa. E nessa noite
dormiu perfeitamente.
—
Tradução de autor desconhecido
Publicado
originariamente em "O Careta", março
de 1912
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