LÚCIFER - Conto Clássico Fantástico - Anatole France
LÚCIFER
Anatole
France
(1844
– 1924)
Andrea
Tafi, pintor e mosaísta florentino, tinha muito medo dos diabos, sobretudo
nessas horas da noite em que é permitido às potências malignas imperar na
obscuridade. E os temores do Tafi não deixavam de ser fundados, porque os
demônios tinham então motivos para odiar os pintores que lhes arrebatavam com
um só quadro mais almas que um fradezinho com trinta sermões. Com efeito, o
frade, para inspirar aos fiéis um terror saudável, lhes descrevia, o melhor
possível, o dia de cólera que deve reduzir os séculos a cinza, segundo o
testemunho de Davi e da Sibila; enrouquecia sua voz e punha as mãos diante da
boca para imitar a trombeta do Anjo, porém, tudo era levado pelo vento.
Entretanto, uma pintura estendida no muro de uma capela ou de um claustro, na
qual se apresentava Jesus Cristo sentado para julgar os vivos e os mortos,
falava sem cessar à mirada dos pecadores e corrigia pelos olhos os que haviam
pecado pelos olhos e de outras maneiras. Era a época em que mestres hábeis
pintavam em Santa Cruz de Florença e no Sampo Santo de Pisa os mistérios da
Justiça Eterna. Tais obras eram traçadas conforme o relato poético e rimado que
Dante Alighieri, homem muito sábio em Teologia e em Direito Canônico, havia
escrito da sua viagem aos Infernos, ao Purgatório e ao Paraiso, aonde, pelos
méritos extraordinários de sua amada, entrou em vida; por este motivo, naquelas
pinturas tudo era instrutivo e verdadeiro, e se pode assegurar que não era mais
proveitoso ler uma crônica muito extensa do que contemplar aquelas figuras. Os
mestres florentinos tratavam de pintar à sombra das laranjeiras, sobre a erva
esmaltada de flores, damas e cavaleiros aos quais a Morte espreitava com seu
gadanho enquanto eles viam só o Amor ao compasso de suas laudes e de suas
violas. Nada mais oportuno para converter os pecadores carnais que bebem o
esquecimento de Deus entre os lábios das mulheres. Para escarmento dos avaros,
o pintor representava, ao natural, demônios que vertiam ouro derretido na boca
do bispo ou da abadessa que havia pago mal as obras encomendadas. Por isto,
eram, então, os demônios inimigos dos pintores e especialmente dos pintores de
Florença, que excediam a todos os demais era engenho e sutileza. Principalmente
reprovavam que os representassem sob um aspecto odioso, com cabeça de pássaro
ou de peixe, corpo de serpente e asas de morcego. Seu desgosto se manifesta
claramente na história de Spinello.
Spinello
Spinelli[1],
de Arezzo, era descendente de uma nobre família de fiorentinos desterrados. A
nobreza de sua inteligência igualava a de seu nascimento, porque foi o pintor
mais hábil de sua época. Realizou em Florença importantes trabalhos. Pisa
encarregou-o de ornar, em continuação a Giotto, os muros do claustro bendito,
onde os mortos descansam sob roseirais em uma terra trazida de Jerusalém.
Porém, depois de haver trabalhado muito tempo nas cidades e depois de ganhar
muito dinheiro, quis voltar a sua amável Arezzo, sua cidade natal. Os aretinos
não haviam esquecido que Spinello, inscrito desde a sua juventude na confraria
de Santa Maria da Misericórdia, durante a peste de 1383, havia visitado os
enfermos e enterrado os mortos. Agradeciam-lhe, também, suas obras, que
estenderam a glória de Arezzo em toda a Toscana; por isso, receberam-no com
muita pompa. Enérgico, ainda e firme em sua idade madura, encarregou-se de
importantes empresas. Sua mulher lhe dizia:
—
És rico; descansa e deixa que os jovens pintem o que tu pensas pintar. O
repouso é necessário para os velhos. Devemos acabar nossa vida em uma calma
suave e piedosa. Imaginar ansiosamente obras profanas, como novas torres de
Babel, é tentar a Deus. Spinello, se te obstinas em prosseguir com tuas
pinturas e tuas cores, perderás a paz da alma.
Assim
falava a boa mulher; ele, porém, não lhe deu atenção porque só queria, em sua
inquietude, aumentar sua fortuna e sua glória. Em vez de procurar descanso,
contratou, com os mordomos de Santo Agnolo, pintar uma história de São Miguel,
que devia cobrir todo o coro da igreja e conter uma infinidade de personagens.
Lançou-se a esta empresa com maravilhoso ardor. Relendo os lugares da Escritura
em que devia inspirar-se, estudou profundamente cada linha e cada palavra. Não satisfeito
com desenhar durante todo o dia em seu atelier, trabalhava no leito e na mesa.
E pela tarde, enquanto passeava ao pé da colina, sobre a qual se eleva Arezzo,
orgulhosa de seus muros e de suas torres, meditava também sobre seus trabalhos.
Poder-se-ia dizer que a história do Arcanjo estava pintada por completo em seu
cérebro, quando começou a esboçar os assuntos com lápis vermelho. Andou ligeiro
traçando os perfis; logo começou a pintar sobre o altar-mor a cena que devia
ter mais relevo que as outras, pois nela se glorificava o chefe das milícias
celestes pela vitória que alcançou antes do princípio dos tempos. Spinello
representou ali são Miguel combatendo no ar com a serpente de sete cabeças e
dez cornos e se deleitou representando, na parte inferior do quadro, o príncipe
dos demônios, Lúcifer, sob a aparência de um monstro espantoso. As figuras brotavam
espontaneamente de sua mão, e conseguiu muito mais do que havia prometido a si
próprio; o rosto de Lúcifer se mostrava tão odioso que era impossível
subtrair-se ao conjuro de sua fealdade. Aquele rosto perseguiu o pintor na rua
e o acompanhou até sua casa. À noite, Spinello se deitou no leito junto de sua
mulher e adormeceu. Durante o sono apresentou-se a ele um anjo, tão formoso
como São Miguel, porém com o rosto sombrio e lhe disse:
—
Spinello: eu sou Lúcifer. Onde me viste para pintar-me, como o fizeste com
aspecto ignominioso?
O
velho lhe respondeu, trêmulo, que não o havia visto nunca, porque não nunca fora
aos infernos como Dante Alighieri, porém, que ao representá-lo daquele modo,
quis expressar, de uma maneira sensível, a fealdade do pecado.
Lúcifer
deu de ombros. Poder-se-ia dizer que, de repente, a colina de São Germiniano se
agitava:
—
Spinello — perguntou — queres fazer-me o obséquio de raciocinar um pouco
comigo? Eu sou um bom raciocinador e Aquele a quem tu rezas não o ignora.
Como
Spinello não o contentasse, Lúcifer prosseguiu do seguinte modo:
—Spinello,
tu leste os livros que tratam de mim; tu conheces minha aventura e de que modo
saí do Céu para converter-me em príncipe do Mundo. Ilustre empresa a minha,
única no gênero, se os gigantes não houvessem atacado, também, a seu deus
Júpiter, segundo o viste, Spinello, em uma velha tumba onde se acha esculpida,
sobre mármore, aquela guerra.
—É
certo — disse Spinello. — Eu vi essa tumba em Santa Reparata de Fiorença. É uma
formosa obra dos romanos.
—
Pois já sabes — replicou Lúcifer, sorridente — que os gigantes não estão
representados ali em forma de rãs nem de camaleões.
—
Porque não haviam atacado o verdadeiro Deus — replicou o pintor — e sim um ídolo dos pagãos. Isto é muito digno de
ter-se em conta. E vós, Lúcifer, erguestes a bandeira de rebelião contra o verdadeiro
Rei do Céu e da Terra.
—
Não te poso negar isto — respondeu Lúcifer —, mas quantas classes de pecados me
atribuis por esse motivo?
—
Podem vos ser atribuído sete — respondeu o pintor — e todos capitais.
—
Sete — disse o Anjo das trevas —é o número da Teologia; tudo que acontece em minha
história, estritamente unida à do Outro, tem relação com o número sete.
Spinello, tu me consideras orgulhoso, colérico e invejoso. Conformo-me com a
condição de que me concedas que somente invejo a glória. Supões-me avaro? Consinto
ainda; a avareza é uma virtude de príncipe. Quanto à gula e à luxúria, se as
atribuis a mim, não me ofenderei. Falta a preguiça.
E
ao pronunciar essa frase, Lúcifer cruzou seus braços sobre a couraça e, movendo
sua cabeça entristecida, agitou sua cabeleira inflamada.
—
Spinello, é verdade que me supões preguiçoso? É verdade que me supões covarde?
Consideras, Spinello, que minha rebelião é obra de um preguiçoso? Não. Era,
pois, justo que me atribuísses rosto enérgico e audaz; não se deve prejudicar ninguém
falsamente, nem sequer o Diabo. Não vês que ofendes àquele ante a quem rezas
quando lhe dás por adversário um sapo monstruoso? Spinello, és demasiado
ignorante para tua idade; tenho vontade de puxar-te as telhas como a um tolo.
Ante
aquela ameaça, e ao ver estendido para ele um braço de Lúcifer, Spinello levou
as mãos à cabeça e começou a rugir com terror. Sua bondosa mulher despertou
sobressaltada e lhe perguntou de que mal padecia. Spinello respondeu-lhe,
batendo os dentes, que acabava de ver Lúcifer e temia que lhe arrancasse as
orelhas.
—
Já te havia dito — respondeu a bondosa mulher — que todas as figuras que te
obstinas em pintar nos muros acabanam por te enlouquecer.
—
Não — estou louco — disse o pintor. Ele me apareceu; é formoso, ainda que
triste e soberbo. Amanhã mesmo apagarei
a horrível figura que lhe atribui, sem motivo, e em seu lugar pintarei a que
acabo de ver em sonhos, porque não se deve ser injusto nem mesmo com o Diabo.
—
Melhor será que durmas — replicou a mulher. — Tuas razões me parecem absurdas e
não são tão cristãs como deveriam ser.
Spinello
tratou de levantar-se, porém lhe faltaram as forças. Caiu desacordado sobre o
travesseiro. Durante alguns, dias ardeu de febre; depois, morreu.
Tradução de autor
desconhecido.
Fonte: Revista Carioca,
edição nº 624, de 18 de setembro de 1947.
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