O DIABO E O RELOJEIRO - Narrativa Clássica de Terror - Daniel Defoe
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O DIABO E O
RELOJEIRO
Daniel Deföe
(1660 – 1731)
Vivia
na paróquia de St. Bennet Funk, perto do Royal Exchange, uma honesta e pobre viúva
que, depois de morto o marido, passou a aceitar sublocatários em sua casa. Ou
seja, locou alguns de seus quartos a fim de reduzir os custos com o aluguel.
Entre outros, cedeu sua mansarda a um artesão que fazia engrenagens para
relógios, e que trabalhava para relojoarias, conforme era o costume nessa
atividade.
Certa
feita, um homem e uma mulher subiram para falar com o relojoeiro sobre algum
assunto relacionado ao seu mister. E quando estavam próximos dos últimos
degraus, viram, pela porta escancarada da água-furtada, que o homem ―
relojoeiro ou fabricante de engrenagens ― havia-se enforcado numa viga que se
prolongava pouco abaixo do teto. Atônita com aquele cenário, a mulher parou e
gritou ao homem, que lhe seguia, para que corresse e cortasse a corda que
sustentava o infeliz.
Neste
mesmo instante, doutro rincão do quarto, cuja visão não era possível a partir
das escadas, correu velozmente outro homem, a trazer um banquinho nas mãos. Com
ares de quem se encontra com grande pressa, colocou o escabelo sob o
desventurado e, subindo rapidamente, sacou do bolso uma faca. Segurando a corda
com uma das mãos, fez sinal com a cabeça para a mulher e o homem, a
advertindo-os para se detivessem e não subissem, ao mesmo tempo em que exibia a
faca na outra mão, como se estivesse prestes a cortar a corda e soltar o
enforcado.
Nisto,
a mulher se deteve por um momento, mas o homem sobre o banquinho continuava a
segurar a faca ― como se permanecesse confuso com o nó ―, sem, contudo,
cortá-la. Por esta razão, a mulher gritou novamente ao seu acompanhante, que,
supondo que algo impedia a ação do outro homem, disse à mulher:
―
Sobe e ajuda o homem do banquinho.
Mas
o homem no banquinho novamente acenou para que ficassem quietos e não
entrassem, qual se lhes dissesse: "Cortarei a corda imediatamente".
Então,
desferiu dois golpes com a faca na corda, à guisa de cortá-la, mas parou
novamente. O desgraçado seguia dependurado e, portanto, a morrer.
Porque
o fato se repetia, a mulher gritou, da escada:
―
O que está acontecendo? Por que não soltas o pobre homem?
E
o homem que a seguia, já exaurido de paciência, afastou-a e lhe disse:
―
Deixe-me passar. Eu te asseguro que a cortarei.
Dizendo
isso, invadiu o quarto. Mas, quando chegou... Deus! O pobre relojoeiro
continuava enforcado, mas não havia homem com uma faca, nem banquinho, e
nenhuma outra coisa ou outro ser era visto e escutado. Tudo havia sido uma
ilusão, urdida por criaturas espectrais, enviadas sem dúvida para deixar que o
pobre infeliz se enfocasse e expirasse.
O
visitante estava tão aterrorizado e surpreso que, apesar de toda a coragem que
demonstrara, caiu ao chão como se estivesse morto. E a mulher, por fim,
vendo-se na obrigação de baixar o homem, teve que cortar a corda com um par de
tesouras, o que lhe redeu um grande trabalho.
Como
não me cabe pôr em dúvida a veracidade desta história, que me foi contada por
pessoas em cuja honestidade eu deposito a minha confiança, creio que não me
dará trabalho convencer-vos de quem devia ser o homem do banquinho: era o
diabo, que estava no quarto com o objetivo de pôr cobro ao assassínio de um
homem a quem, conforme o seu costume, havia tentado, e antes convencido a que
fosse, de si mesmo, o verdugo. Demais disso, este fato criminoso corresponde
tão bem à natureza do demônio e ao seu ofício ― qual seja, a de um assassino ―
que nunca o pus em dúvida. E nem posso crer que estaremos difamando o diabo
quando a ele atribuímos a prática de tal malefício.
Nota
do autor: Não posso ter certeza quanto ao final desta história. Assim, não sei
se o relojoeiro foi liberado com rapidez suficiente, a tempo de recuperar-se,
ou se o diabo alcançou os seus propósitos, mantendo o homem e a mulher
afastados, na escada, até que fosse demasiadamente tarde. Mas, seja como for, é
certo que ele executou o seu ofício demoníaco e permaneceu na água-furtada até
que foi compelido a evadir-se.
Versão em português por
Paulo Soriano.
Nota do editor: o texto
que o leitor acabou de ler não é propriamente um conto, visto como não tem o
caráter ficcional. Trata-se de uma das várias narrativas que ilustram
exemplarmente o extenso ensaio “An Essay on the History and Reality of
Appatitions”, publicado em Londres, no ano de 1728. Deföe tomava a narrativa
como verdadeira.
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