O IMPENITENTE - Conto Clássico de Terror - Aluísio de Azevedo
O IMPENITENTE
Aluísio
de Azevedo
(1857
– 1913)
Conto-vos o caso como mo
contaram.
Frei Álvaro era um bom homem
e um mau frade. Capaz de todas as virtudes e de todos os atos de devoção, não
tinha, todavia, a heroica ciência domar os impulsos de seu voluptuoso
temperamento de mestiço e, a despeito dos constantes protestos que fazia para
não pecar, pecava sempre. Como extremo recurso, condenara-se, nos últimos
tempos, a não arredar pé do convento. À noite fechava-se na cela, procurando
penitenciar-se dos passados desvarios; mas, só reprimir o irresistível desejo
de recomeçá-los, era já o maior dos sacrifícios que ele podia impor à sua carne
rebelde.
Chorava.
Chorava ardendo de remorsos
por não poder levar de vencida os inimigos da sua alma envergonhada; chorava
por não ter forças para fazer calar os endemoninhados hóspedes do seu corpo,
que, dia e noite, lhe amotinavam o sangue. Quanto mais violentamente procurava
combatê-los, tanto mais viva lhe acometia o espírito a incendiária memória dos
seus amores pecaminosos.
E no palpitante cordão de
mulheres que, em vertigem, lhe perpassavam cantando diante dos desejos
torturados, era Leonília, com seus formosos cabelos pretos, a de imagem mais
nítida, mais persistente e mais perturbadora.
Em que dia a vira pela
primeira vez e como se fizera amar por ela, não o sei, porque esses monásticos
amores só chegam a ser percebidos pelos leigos como eu, quando o fogo já minou
de todo e abriu em labareda a lançar fumo até cá fora. À primeira faísca e às
primeiras brasas, nunca ninguém, que eu saiba, os pressentiu nem deles
suspeitou.
Certo é que, durante belos
anos, Frei Álvaro, meia-noite dada, fugia aos muros do seu convento, e,
escolhendo escuras ruas, cosendo-se à própria sombra, ia pedir à alcova de
Leonília o que não lhe podia dar a solidão da cela.
Pertenceria só ao frade a
bela moça? Não o creio.
E ele? seria só dela? Também
não, pois reza a lenda donde me vem o caso que, em vários outros pontos da
cidade Frei Álvaro era igualmente visto fora de horas, embuçado e suspeito,
correndo sem dúvida em busca de profanas consolações daquele mesmo gênero.
Mas, no martírio da reclusão
a que por último se votara, era seguro a lembrança de Leonília o seu maior
tormento. E assim, aconteceu que, certa noite, à força de pensar nela, foi tal
o seu desassossego de corpo e alma, que o frade não pôde rezar, nem pôde
dormir, nem pôde ler, nem pôde fazer nada. Com os olhos fechados ou abertos,
tinha-a defronte deles, linda de amor, a enlouquecê-lo de saudade e de desejo.
Então, desistindo da cama e
dos livros, pôs-se à janela, muito triste, e ficou longo tempo a consultar a
noite silenciosa. Lá fora a lua, inda mais triste, iluminava a cidade
adormecida e no alto as estrelas pareciam que pestanejavam de tédio. Nada lhe
mandava um ar de consolação para aquela infindável tortura de desejar o
proibido.
De repente, porém,
estremeceu, sem poder acreditar no que viam seus olhos.
Seria verdade ou seria
ilusão dos seus atormentados desejos?... La embaixo, no pátio, dentro dos muros
do convento, um vulto de mulher passeava sobre o lajedo.
Não podia haver dúvida!...
Era uma mulher, uma mulher toda de branco, com a cabeça nua e os longos cabelos
negros derramados.
Céus ! E era Leonília!...
sim, sim, era ela, nem podiam ser de outra mulher aqueles cabelos tão formosos
aquele airoso menear de corpo! Sim! era ela... Mas, como entrara ali?... Como
se animara a tanto?
E o frade, sem mais ter mão
em si, correu a tomar o chapéu e a capa e lançou-se como um doido para fora da
cela.
Atravessou fremente os
longos corredores, desgalgou escadaria de pedra e ganhou o pátio.
Mas o vulto já lá não
estava.
O monge procurou-o, aflito,
por todos os cantos. Não o encontrou.
Correu ao parapeito que dava
do alto para a rua, sobre o qual se debruçou ansioso e, com assombro, desde
novo o misterioso vulto, agora, lá fora, a passear embaixo, à luz do lampião de
gás.
Já impressionado de todo,
Frei Álvaro desceu de um relance as escadas do átrio, escalou as grades do
mosteiro e saltou à rua.
O vulto já não se achava no
mesmo ponto; tinha-se afastado para mais longe. Frei Álvaro atirou-se para lá
em disparada, mas o vulto deitou a correr, fugindo na frente dele.
— Leonília
! Leonília! Espera! Não me fujas!
O vulto corria sempre, sem
responder.
— Olha
que sou eu! Atende!
Leonília parou um instante,
voltou o rosto para trás, sorriu e fugiu de novo quando o monge se aproximava.
Afinal, já não corria,
deslizava, como se fora levada pelas frescas virações da noite velha, que lhe
desfraldavam as saias e os cabelos flutuantes.
E o monge a persegui-la,
ardendo por alcançá-la.
— Atende!
Atende, flor de minha alma! — suplicava já com a voz quebrada pelo cansaço. —
Atende, pelo amor de Deus, que deste modo me matas, criminosa!
Ela, ao escutar-lhe as
sentidas vozes, parecia atender, suspendendo o voo, não por comovida, mas por
feminil negaça, a rir, provocadora, braços no ar e o calcanhar suspenso,
pronta, mal o frade se chegasse, a desferir nova carreira.
E assim venceram ambos ruas
e becos, quebrando esquinas, cortando largos e praças. O frade já tinha perdido
a noção do tempo e do lugar e estava prestes a cair exausto quando, vendo a moça
tomar certa ladeira muito conhecida deles dois, criou novo ânimo e prosseguiu
na empresa, sem afrouxar o passo.
— Vai recolher-se a casa! — concluiu de si para si. — Não me quis falar na rua... Ainda bem!
Leonília, com efeito, ao
chegar à porta da casa onde outrora o religioso fruía as consolações que o seu
mosteiro lhe negava, enfiou por ela e sumiu-se sem ruído.
O frade acompanhou-a de
carreira, mas já não a viu no corredor e foi galgando a escada. Encontrou em
cima a porta aberta, mas a sala tenebrosa e solitária. Penetrou nela, tateando,
e seguiu adiante, sem topar nenhum móvel pelo caminho.
— Leonília!
chamou ele.
Ninguém lhe respondeu.
O quarto imediato estava
também franqueado, também deserto e vazio, mas não tão escuro, graças à luz que
vinha da sala do fundo. O religioso não hesitou em precipitar-se para esta;
mas, ao chegar à entrada, estacou, soltando um grito de terror.
Gelara-lhe o sangue o que se
lhe ofereceu aos olhos. Eriçaram-se-lhe os cabelos; invencível tremor
apoderou-se do seu corpo inteiro.
A sala de jantar onde,
tantas vezes feliz, ceara a sós com Leonília, estava transformada em câmara
mortuária, toda funebremente paramentada de cortinas de veludo negro, que
pendiam do teto, consteladas de lantejoulas e guarnecidas de caveiras de prata.
Só faltava o altar. No centro, sobre uma grande mesa, também negra e enfeitada
de galões dourados, havia um caixão de defunto. Dentro do caixão um cadáver
todo de branco, cabelos soltos. Em volta, círios ardiam, altos, em solenes
tocheiros, cuspindo a cera quente e o fumo cor de crepe.
O monge, lívido e trêmulo,
aproximara-se do catafalco. Olhou para dentro do caixão e recuou aterrado.
Reconheceu o cadáver. Era da
própria mulher que, pouco antes, o fora buscar ao convento e o viera arrastando
até aí pelas ruas da cidade.
Sem ânimo de formular um
pensamento, o frade deixou-se cair de joelhos sobre o negro tapete do chão e,
arrancando do seio o seu crucifixo, abraçou-se com ele começou a rezar
fervorosamente.
Rezou muito, de cabeça
baixa, o rosto afogado em rimas. Depois ergueu-se, foi ter à essa, pôs-se nas
pontas pés para poder alcançar com os lábios o rosto do cadáver e pousou nas
faces enregeladas um extremo beijo amor.
Em seguida, olhou em
derredor de si, desconfiado e tímido e, como não houvesse na sala uma só imagem
sagrada em companhia da morta, desprendeu do pescoço o crucifixo e foi
piedosamente dependurá-lo na parede, à cabeceira dela.
Mas, nesse mesmo instante,
as tochas apagaram-se de súbito e fez-se completa escuridão em torno do
impenitente. Foi às apalpadelas que ele conseguiu chegar até à porta de saída e
ganhar a rua.
Lá fora, a noite se tinha
feito também negra e os ventos se tinham desencadeado em fúria, ameaçando
tempestade. O monge deitou a fugir para o mosteiro, sem ânimo de voltar o rosto
para trás, como temeroso de que Leonília por sua vez o perseguisse agora até ao
domicílio.
Quando alcançou a cela,
tiritava de febre.
Acharam-no pela manhã, sem
sentido, defronte do seu oratório, joelhos em terra, braços pendidos, cabeça de
borco sobre um degrau do altar.
Só muitos dias depois, um
dia de sol, conseguiu sair à rua, ainda pálido e desfeito. Seu primeiro cuidado
foi correr aonde morava Leonília e rondar a casa em que a vira morta.
Encontrou-a fechada e com
letreiro anunciando o aluguel.
— Está vazia, depois que nela
morreu o último inquilino — explicou um vizinho.
— Há muitos dias? — quis
saber o frade, e estremeceu quando ouviu dizer que havia uns oito ou dez.
— E o morador, quem era? -
perguntou ainda.
— Era uma mulher. Chamava-se
Leonília. Morreu de repente.
— Ah!
— Se
quer alugar a casa, encontra a chave ali na esquina...
Frei Álvaro agradeceu,
despediu-se do informante, foi buscar a chave, abriu a porta, entrou e
percorreu toda a casa.
Só ele, além de Deus, soube
a impressão que sentiu ao contemplar aquelas salas e aqueles quartos.
— Estranho caso! — disse
consigo, sem ânimo de olhar de rosto para o temeroso abismo da dúvida. — Fui
vítima de uma alucinação que coincidiu com a morte desta querida cúmplice dos
meus pecados de amor...
E, enxugando os olhos, ia
retirar-se, conformado com a dupla dor da saudade e do remorso, quando, ao
passar rente de certa parede, estremeceu de novo.
Tinha dado com os olhos no
seu crucifixo, do qual já nem se lembrava. Permanecia pendurado no mesmo ponto
em que o monge o deixara na terrível noite.
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