THANATOPIA - Conto Clássico de Terror - Rubén Darío



THANATOPIA
Rubén Darío
(1867 — 1916)
Tradução de Paulo Soriano


Nascido Félix Rubén García Sarmiento, o poeta nicaraguense Rubén Darío é um dos mais importantes nomes da literatura em língua espanhola de todos os tempos. Consagrado mestre do modernismo, sua prosa enveredou no domínio do fantástico e do terror. “Thanatopia”, conto vampírico em que se nota a influência do movimento pré-rafaelita, malgrado escrito em 1893, somente foi publicado em 1925 na antologia “Impressões e Sensações”, quando já falecido o autor.

— Meu pai foi o célebre doutor John Leen, membro da Real Sociedade de Investigações Psíquicas, de Londres, e muito conhecido no mundo científico por seus estudos sobre o hipnotismo e por sua célebre Memória sobre o Old. Morreu não faz muito tempo. Deus o tenha em sua glória.

(James Leen esvaziou no estômago grande parte de sua cerveja e continuou:)

— Vós tendes rido de mim, e do que chamais de minhas preocupações e minhas ridiculezas. Eu vos perdoo porque, francamente, não suspeitais de nenhuma das coisas que não compreende a nossa vã filosofia no céu e na terra, como disse o nosso maravilhoso William. Não sabeis que tenho sofrido muito, que sofro muito, mesmo as mais amargas torturas, à causa de vossos risos... Sim, eu vos repito: não posso dormir sem luz, não posso suportar a solidão de uma casa abandonada, tremo ao ruído misterioso que em horas crepusculares brota dos bosques em uma trilha; não me agrada ver revoar uma coruja ou um morcego; não visito, em cidade alguma, os cemitérios; martirizam-me as conversas sobre assuntos macabros, e quando as tenho, meus olhos esperam para fechar-se, ao amor do sono, e que a luz apareça.

Tenho o horror daquela que — oh, Deus! — terei de nomear: a morte. Jamais me fariam permanecer em uma casa onde houvesse um cadáver, mesmo que este fosse o de meu amigo mais amado. Vede: essa palavra é a mais fatídica das existentes em qualquer idioma: cadáver. Vós tendes rido; vós ríeis de mim: que o seja. Mas permiti-me que vos diga a verdade de meu segredo. Cheguei à Argentina foragido, depois estar preso por cinco anos, sequestrado miseravelmente pelo doutor Leen, meu pai, que, se era um grande sábio, suspeito que era um grande bandido. Por ordem sua, fui levado para um sanatório; por sua ordem, pois, talvez um dia ele me revelasse o que pretendia manter oculto. O que já sabereis, porque já me é impossível manter o silêncio por mais tempo.

Eu vos advirto que não estou bêbado. Não sou um louco. Ele ordenou o meu sequestro porque... Prestai atenção.

(Magro, louro, nervoso, agitado por um frequente estremecimento, erguia o seu peito James Leen na mesa da cervejaria em que, rodeado de amigos, nos revelava tais ideias. Quem não o conhece em Buenos Aires? Não é ele um excêntrico em sua vida cotidiana. Mas, de quando em quando, tem estes repentes. Como professor, é um dos mais queridos em um dos nossos principais colégios, e, como homem do mundo, conquanto um tanto silencioso, é um dos melhores elementos jovens dos famosos cinderela’s dance. Assim, nessa noite, prosseguia ele a estranha narrativa, à qual nos atrevemos de qualificar de fumisterie[1], dado o caráter de nosso amigo. Ao leitor, deixamos a apreciação dos fatos.)

— Desde muito jovem perdi a minha mãe, e fui enviado, por ordem de meu pai, a um colégio de Oxford. Meu pai, que nunca se manifestou carinhoso comigo, saía de Londres para visitar-me, uma vez por ano, no estabelecimento de educação em que eu crescia, solitário em meu espírito, sem afetos, sem agrados. Ali aprendi a ser triste.  Fisicamente, eu era o retrato de minha mãe, segundo me diziam, e suponho que por isto o doutor procurava mimar-me o menos que podia. Não vos direi mais nada sobre isto. Perdoai a maneira de minha narração.

Quando toquei neste tópico, senti-me comovido por uma força reconhecida.Procurai compreender-me. Digo, pois, que vivia solitário em meu espírito, aprendendo tristeza naquele colégio de muros negros, que ainda vejo em minha imaginação em noites de lua. Oh, como aprendi então a ser triste! Vejo ainda, por uma janela de meu quarto, banhados por uma pálida e maléfica luz lunar, os álamos, os ciprestes — por que havia ciprestes no colégio? — e ao longo do parque, velhos Términos[2] carcomidos, leprosos de tempo, onde costumam pousar as corujas criadas pelo abominável septuagenário e encovado reitor — para que criava corujas o reitor?   E ouço, no profundo silêncio da noite, o voo dos animais noturnos e o estalar das mesas e, numa meia-noite, vos juro, uma voz: “James”. Oh, voz!

Ao completar 20 anos, anunciaram-me a visita de meu pai. Alegrei-me, apesar de que instintivamente sentisse repulsa dele: alegrei-me porque necessitava naqueles momentos desabafar com alguém, mesmo que fosse com ele.

Ele chegou mais amável que das outras vezes e, malgrado não me olhasse frente, sua voz soava grave, com certa amabilidade. Disse-lhe que desejava, por fim, voltar a Londres, que tinha concluído os meus estudos; que, se permanecesse mais tempo naquela casa, morreria de tristeza. Sua voz ressoou grave, com certa amabilidade para comigo:

—Pensei seriamente, James, levá-lo comigo hoje mesmo. O reitor me participou que tu não estás bem de saúde, que padeces de insônias, que comes pouco. O excesso de estudos faz mal, como todos os excessos. Além disso, digo-te, tenho outro motivo para levar-te a Londres. Minha idade requer um amparo, e eu o procurei. Tens uma madrasta, que te será apresentada, e que deseja ardentemente conhecer-te. Hoje mesmo virás, pois, comigo.

Uma madrasta! E logo me veio à memória minha doce, branca e loura mãezinha, que tanto me amou quando eu era pequeno, que me mimou tanto, quase abandonada por meu pai, que passava noites e noites em seu laboratório, enquanto aquela pobre e delicada flor se consumia! Uma madrasta! Eu iria, pois, suportar a tirania da nova esposa do doutor Leen, talvez uma terrível blues tocking[3], ou uma cruel sabichona, ou uma bruxa. Perdoai as palavras. Às vezes não sei perfeitamente o que digo, ou se falo demais.

Não respondi uma só palavra a meu pai e, conforme sua vontade, tomamos o trem que nos conduziu à nossa mansão de Londres.

Desde que chegamos, desde que penetrei pela porta grande e antiga, a que se seguia a uma escada que dava ao andar principal, tive uma desagradável surpresa: não havia em casa um só dos antigos empregados. Quatro ou cinco velhos doentios, com fardamentos frouxos e negros, inclinavam-se a nosso passo, com genuflexões tardias, mudos. Penetramos no grande salão. Tudo havia mudado: os antigos móveis haviam sido substituídos por outros de gosto seco e frio. Tão somente restava no fundo do salão um grande retrato de minha mãe, obra de Dante Gabriel Rossetti[4], coberto por um grande véu de crepe.

Meu pai me conduziu a meus aposentos, que não ficavam distantes de seu laboratório. Deu-me boa-tarde. Por uma inexplicável cortesia, perguntei por minha madrasta. Respondeu-me lentamente, enfatizando as sílabas com uma voz entre carinhosa e temerosa, que então eu não compreendia:

 Depois a verás...  Que hás de vê-la, é certo... James, meu filhinho James, adeus.  Garanto-lhe que a verás depois...

Anjos do Senhor, por que não me levaste contigo?  E tu, mãe, mãezinha minha, my sweet Lily[5], por que não me levaste contigo naqueles instantes? Preferiria ser tragado por um abismo pulverizado por uma rocha, ou reduzido a cinza por uma chama de um relâmpago.

Foi nessa mesma noite, sim. Com uma estranha fadiga de corpo e de espírito, lançara-me ao leito, vestido com a mesma roupa de viagem. Como em um sonho, recordo-me ter ouvido aproximar-se do meu quarto um dos velhos da criadagem, resmungando não sei que palavras e olhando-me vagamente com um par de ocelos estrábicos, que me causavam o efeito de um sonho ruim. Depois vi que  acendeu um candelabro com três velas de cera. Quando, às nove, despertei, as velas ardiam no quarto.

Lavei-me. Troquei de roupas. Depois ouvi passos. Meu pai apareceu. Pela primeira vez —pela primeira vez! — vi seus olhos cravados nos meus. Uns olhos indescritíveis, eu vos asseguro; uns olhos como jamais vistes, nem jamais vereis: uns olhos com uma retina quase vermelha, como olhos de coelho; uns olhos que vos faríeis tremer pela maneira especial com que me mirava.

— Meu filho, vamos. A tua madrasta espera-te. Ela está lá no salão. Vamos.

Lá, numa poltrona de alto respaldo, como uma cadeira de couro, estava sentada uma mulher.
Ela...

E meu pai:

— Aproxima-te, meu pequeno James, aproxima-te.

Aproximei-me maquinalmente. A mulher me estendia a mão. Ouvi, então, como se viesse do grande retrato, do grande retrato envolto em crepe, aquela voz do colégio de Oxford, mas muito triste, muito mais triste: “James!”.

Estendi a mão. O contato com aquela mão gelou-me, horrorizou-me. Senti gelo nos meus ossos. Aquela mão rígida, fria, fria... E a mulher não me olhava. Balbuciei olá, um cumprimento.

E meu pai:

— Minha mulher, aqui tens teu enteado, o nosso muito amado James. Veja-o: aqui o tens; já é o teu filho, também.

E minha madrasta me olhou. 

Minhas mandíbulas comprimiram-se uma contra a outra. O espanto tomou conta de mim: aqueles olhos não tinham brilho algum. E uma ideia começou — enlouquecedora, horrível, horrível — a aparecer clara em meu cérebro. De repente, um cheiro, cheiro... esse cheiro, minha mãe! Meu Deus! Esse cheiro... Não vos quero dizer... porque vós já sabeis, e eu vos respondo: discuto-o ainda; eriça-me os cabelos.

E depois brotou daqueles lábios brancos, daquela mulher pálida, pálida, pálida, uma voz, uma voz como se saída de um cântaro gemebundo ou de um subterrâneo:

— James, nosso querido James, filhinho meu, aproxima-te; quero dar-te um beijo na fronte; outro beijo nos olhos, outro beijo na boca...

Não pude mais. Gritei:

— Mãe, socorro! Anjos de Deus, socorro! Potestades celestes todas, socorro! Quero sair daqui agora mesmo! Agora mesmo! Tirem-me daqui!

Ouvi a voz de meu pai:

— Acalma-te, James! Acalma-te, meu filho! Silêncio, meu filho.

— Não! — gritei mais alto, já em luta com os velhos da criadagem. — Sairei daqui e direi a todo mundo que o doutor Leen é um cruel assassino; que sua mulher é um vampiro; que meu pai está casado com uma morta!







[1] Mentira, engodo, brincadeira.
[2] Busto sobre um pedestal, da forma como era representado o Término, o deus romano dos limites e das fronteiras.
[3] Douta, erudita.
[4] Dante Gabriel Rossetti (1828 – 1882), pintor pré-rafaelita inglês.
[5] Meu doce lírio.

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