A LENDA DO SACI -Conto de Terror - Rodrigo Cesar Picon de Carvalho
A LENDA DO SACI
Rodrigo
Cesar Picon de Carvalho
Larital era uma pequena cidade no interior de Minas Gerais,
próxima da capital. Era uma cidade setecentista, com casas e casarões
históricos, que remontam à época de ouro no Brasil Colônia. Tinha pouco mais de
cinco mil habitantes e, como toda boa cidade mineira, era uma cidade cercada de
rios e montanhas.
Como toda cidade setecentista, Larital possuía um grande
número de capelas e igrejas, sendo que a religião predominante era o
catolicismo. As pessoas — principalmente as mais velhas — eram mais religiosas
e supersticiosas, havendo na localidade inúmeras lendas.
Uma dessas lendas remonta ao início da colonização da cidade
e dizia que um escravo fugitivo, de nome Saci, teve sua perna decepada ao ser
encontrado pelo capitão-do-mato, antes de ser morto. Querendo vingança, o
escravo voltava para assombrar a região todo dia 31 de outubro — data de sua
execução — para aterrorizar a população, atacando os desavisados e criando
travessuras com a população.
Os mais velhos levavam tal lenda a sério e todo dia 31 de
outubro fechavam suas casas, trancando as portas e as janelas, para que o Saci não
entrasse e realizasse travessuras com eles e seus familiares — segundo a lenda,
o Saci só entraria na residência se as portas ou janelas estivessem abertas.
Logicamente, os mais novos não levavam a sério tal lenda,
acreditando que aquilo era mais uma superstição de seus parentes mais
envelhecidos. Estes, todavia, confirmavam a veracidade da lenda e relataram
que, há 64 anos, quando a maioria deles era criança ou adolescente, a cidade
foi atacada pela última vez pelo Saci, que atacou a residência de muitos... “a
Josefa, filha da Dona Maria, mesmo foi arrastada pelo Saci até um matagal. Nove
meses depois, nasceu um filho do Saci”, conta um senhor da cidade. “A minha
casa foi atacada naquela noite. Meus irmãos ficaram assustados. Fez travessura
até todos ficarem encolhidinhos debaixo da cama. Ao sentir nosso medo, ele foi
embora”, conta outra senhora, sobre relatos daquele 31 de outubro de 1953.
Desde então, os próprios senhores que vivem na cidade
relatam que nunca mais presenciaram a aparição do Saci na noite do dia 31 de
outubro; entretanto, assim mesmo, continuaram a fechar suas residências e
proibirem seus filhos e netos de saírem às ruas ou mesmo ao quintal, pois
acreditavam que “não sabem quando o Saci pode voltar a Larital, já que ele fica
rondando as cidades próximas, onde tiveram muitos escravos antigamente”.
Naquele ano, a noite de 31 de outubro caiu em uma terça-feira.
Com o feriado caindo na quinta-feira, muita gente já aproveitou aquela noite e
emendou o restante da semana, folgando no Dia de Todos os Santos. A cidade
também estava muito quente e abafada - já que a chuva torrencial que caiu no
final da tarde só havia servido para sujar as ruas de folhas de árvores e
encher os rios, que logo começaram a voltar ao volume normal -, o que fez com
que muitas pessoas ficassem na rua, jogando conversa fora.
Era pouco mais de oito horas da noite. Letícia, de dezessete
anos, aproveitava aquela noite para dar uma estudada na matéria de Física, uma
vez que o ENEM era no fim de semana depois do feriado. Já Juan, seu irmão mais
velho, de dezenove anos, já universitário — fazia Engenharia Elétrica na
Universidade Federal de Ouro Preto, a UFOP —, estava mais preocupado em
encontrar Emily, sua namorada.
O rapaz conversava animadamente com sua namorada pelo
Whatsapp, combinando o horário que iria se encontrar com ela. Estavam pensando
no Car´s Bar, um restaurante fino localizado no belíssimo Solar do Barão de
Larital, o mais belo casarão histórico da praça principal da cidade.
Já Letícia se encontrava em seu quarto com o notebook ligado
sobre suas pernas. Entre seu corpo e o notebook, havia um livro de Física
aberto, a qual a garota trocava os olhares entre ela e a conversa que estava
tendo com Larissa, sua melhor amiga, via Facebook.
Rosana e João, pais de Letícia e Juan, estavam no quarto, com
a esposa assistindo sua novela e o marido mexendo em seu notebook, lendo as principais
notícias do país pelos jornais on-line.
Larissa conversava com Letícia sobre diversos assuntos,
incluindo o ENEM, quando, em dado momento, a garota manda para sua amiga um print de um post que a mesma viu no
Facebook.
— Olha, amiga. Olha o que o doido do Renan postou no Face
agora há pouco — teclou a amiga, para Letícia, antes de enviar a foto.
Letícia leu o post do rapaz, que dizia:
“Eu acabei de ver um rapaz de pele negra e gorro vermelho
saltitando pelo quintal da minha casa, fazendo a maior algazarra com meus
bichos e as plantas. Sério. Estou com medo”.
Como as pessoas não perdoam na internet e acabam por
brincarem com qualquer post sério que veem nas redes sociais, alguns amigos de
Renan comentaram sua postagem zombando dela comentando que o medo do rapaz se
dava com o fato de o mesmo achar que era assaltante e todos acabaram não o
levando a sério.
— Nossa, o Renan gosta de chamar a atenção mesmo. Nunca vi
menino que gosta de chamar a atenção mais do que ele — escreveu Letícia, respondendo
a sua amiga.
— Então — respondeu Larissa, antes de rir. — Ele deveria
postar uma foto com uma melancia na cabeça.
Agora foi a vez de Letícia rir.
— É a estrelinha que gosta de brilha. — respondeu a garota.
— Verdade.
Em seguida, continuaram mais um pouco a conversa, antes de
Letícia se despedir da amiga para continuar seus estudos, dizendo para a mesma
que logo voltaria.
Quase uma hora depois, Juan estava na cozinha comendo alguma
coisa que havia cozinhado pouco antes. João acabara por adormecer, devido ao
cansaço, enquanto que Rosana continuava assistindo TV. Letícia ainda estudava;
mas, ao perceber que suas vistas começaram a cansar e sua cabeça a doer,
resolve parar um pouco para descansar.
A garota se levanta um pouco, estica a canela e coloca de
lado o seu livro de Física, marcando a página a qual se encontrava. Após,
senta-se novamente na cama e liga seu computador. A primeira página que abre,
logicamente, era seu Facebook, no qual não sabia viver sem. Ao fitar sua rede
social, surpreende-se. Havia várias pessoas postando relatos de terem visto o
tal rapaz negro, de gorro vermelho e que saltitava cidade afora. Eram pessoas —
todas de Larital — postando terem visto a presença do tal rapaz, de terem seus
quintais sujos aparentemente do nada ou de pessoas compartilhando o post dos
outros. Eram relatos de aparições nos quintais, nas ruas, de fotos de vultos
onde o tal rapaz aparecia, relatos de uma senhora cujo marido havia
desaparecido... Havia também pessoas que postavam reportagens de sites de
renome com manchetes nos seguintes termos: “Moradores de Larital, no interior
do Estado comentam, via rede social, suposta aparição do Saci”; “Suposta
aparição do Saci após sessenta e quatro anos deixa os moradores de Larital, no
interior do Estado, apavorados e ensancedidos”. Ou seja, os tais relatos saíram
da esfera de Larital e a nação inteira estava sabendo — e ficando preocupada.
— O que está acontecendo? — perguntou, para si mesma.
Percebeu que Larissa, sua amiga, estava on-line e a chamou na webcam.
“Ei, Letícia. Deu uma pausa no estudo?”, perguntou Larissa,
com um sorriso no rosto. Estava sentada sobre uma cama feminina, encostada na
sua cabeceira e ao lado de uma janela aberta.
“Amiga, o que está acontecendo? Estou vendo todo mundo
falando que viu a mesma pessoa que o Renan postou que tinha visto”, perguntou
Letícia, com o cenho sério.
“Então, não é estranho, amiga?”, perguntou Larissa, fechando
o rosto e desaparecendo com o seu sorriso. “Todo mundo está enviando relatos de
aparição do Saci Pererê. Foi parar inclusive em jornais de renome nacional”.
“Saci Pererê?”, perguntou a garota, surpresa.
“Sim, aquele da lenda. Da lenda do Saci. Nunca ouviu seus
avós contando, não?”
“Não, quando meu avô faleceu eu era pequena. E minha avó já
era falecida”.
“Seu pai nunca te proibiu de sair de casa na noite do dia 31
de outubro por que o Saci poderia te pegar, não?”
“Sim, já. Aliás, não o Saci. Mas o monstro...
“Então. É a lenda do Saci. Meu avô contava essa história.
Ele dizia que...”. Neste instante, Letícia interrompe a conversa soltando um
grito de espanto. Em seguida, paralisa frente a webcam, tremendo, com a mão na
boca, assustada.
“O que aconteceu, guria? Não me assuste desse jeito. Parece
que viu um fantasma.”
“Na-ja-ne-la”, disse a garota. Tamanho o medo fazia com que
sua fala fosse pausada e descompassada. Larissa, ao ouvir a fala de sua amiga,
virou a cabeça para a esquerda, a fim de fitar a janela. Neste instante,
sobressaltou-se. Um rapaz jovem de pele enegrecida, careca e sem camisa,
portando um gorro vermelho na cabeça e um cachimbo na boca, estava com a metade
superior de seu corpo para dentro do recinto. Olhava furiosamente e com sorriso
demoníaco para a garota.
Larissa tentou esboçar reação, mas o rapaz foi mais rápido.
Com a mão esquerda, segurou a garganta da garota, proibindo-a de gritar. Esta
mexeu com o corpo, na tentativa de se desvencilhar e acabou jogando o notebook
no chão, fazendo-o desligar.
— Larissa! Larissa! Larissa! — gritou Letícia, desesperada.
Em seguida, enviou vários SMS e mensagens na caixa de entrada do Facebook de
Larissa, mas não obteve resposta. Ele logo apareceu off-line. Tentou ligar para
a garota, novamente em vão. Percebendo que não haveria o que fazer, acabou por
postar na sua timeline do Facebook a
seguinte mensagem:
“Socorro. Me ajudem. O Saci pegou minha amiga, Larissa
Carla. Ajudem. Eu vi. Pela webcam”, digitou a garota, marcando o Face de sua
amiga.
Em seguida, abriu uma janela no Google e digitou Saci
Pererê. Saiu várias matérias de jornais de renome narrando os acontecimentos
virtuais dos moradores de Larital. Logo abaixo, identificou o link da Wikipedia
e o abriu.
Leu atropeladamente um gigantesco texto que explicava que o
mito do Saci Pererê nasceu no século XIX quando algumas pessoas residentes nas
cidades narravam que escravos aparentemente fugidos das lavouras passavam em
suas residências e faziam travessuras, quebrando janelas e jogando lixo nas
portas, sendo que tais escravos jamais eram pegos ou identificados.
Letícia descobriu também que o mito remonta ao final do
século XVIII, quando um escravo de nome Saci fugiu da fazenda na noite do mesmo
dia que desembarcou no interior para trabalhar dentro da casa-grande de um
senhor de escravos. Entrou em uma mata e postou-se a fugir. Todavia, com o
pequeno riacho da fazenda cheio por ocasião da chuva que caíra, acabou por
circundar o rio até encontrar uma ponte. Neste instante, passou perto de uma
outra fazenda, quando foi visto e dedurado por uma criança, que contou para sua
mãe, uma jovem donzela — que vivia escondida da sociedade por ter sido mãe
solteira —, sobre o escravo fugitivo e sua rota fuga. Sua mãe passou as
informações para seu pai, avô da criança e proprietário daquelas terras, que
entrou em contato com o dono do escravo, seu compadre.
Pego pelo capitão-do-mato, foi entregue a seu dono, no qual,
completamente irritado e fora de si — principalmente porque havia “auxiliado” o
escravo, dando-lhe tarefas domésticas —, mandou que seu capitão-do-mato decepasse
sua perna esquerda para não mais fugir, antes de determinar o seu açoite e
espancamento. Preso no pelourinho e com o corpo tomado pelas feridas, acabou
por falecer ali mesmo, tendo seu cadáver virado comida de urubu.
Logo depois, segundo o mito, o Saci voltou do reino dos
mortos como um ser mitológico para jurar vingança por todas aquelas pessoas que
auxiliaram para ceifar suas vidas: crianças, moças jovens “impuras” ou
“pecaminosas”, negros “em conluio com brancos” — ou seja, pessoas negras que
vivem harmoniosamente com pessoas brancas — e homens brancos; principalmente os
dois primeiros, uma vez que foram estes que deduraram sua posição e acabaram
por fazê-lo voltar para a mão de seu dono. Assim, todo ano, na data de sua
morte — 31 de outubro — o Saci aparece para causar confusão, fazer traquinagem
ou se vingar, até se sentir satisfeito e ir embora.
O Saci também possui algumas regras a qual sempre segue:
- nunca ataca crianças do sexo feminino ou mulheres virgens,
por acreditar que são as únicas pessoas puras, por ainda não ter tido contato
com homens;
- sempre ataca furiosamente pessoas que comem carne de porco,
pois foi o prato forçado a fazer para seu dono na noite de sua fuga;
- nunca entra em uma casa que não seja por janela ou porta
aberta;
- não atravessa cursos d´água.
Ao terminar de ler o texto, Letícia mexeu novamente no
Facebook, a fim de verificar se sua amiga se encontrava on-line. Nada. Mexeu no
Whatsapp. O aplicativo mostrou que Larissa esteve on-line quinze minutos atrás.
Por fim, acabou novamente ligar para a garota. Ninguém atendeu.
“Espero que você esteja bem”, pensou consigo mesma. Respirava
fundo, tentando acalmar seu coração. A imagem de Larissa sendo atacada pelo
rapaz voltava continuadamente em sua cabeça, junto do rosto demoníaco dele. “O
que será que foi isso?”, se perguntou.
De
repente, para sua surpresa, eis que escuta barulhos oriundos do lado de fora da
janela do seu quarto, no quintal. Levantou-se em um pulo, quase jogando o
notebook para o lado. Olhou pela janela e viu o mesmo rapaz que viu na conversa
com Larissa pulando sobre uma perna só, usando apenas uma bermuda vermelha e
arrastando uma pessoa, aparentemente do sexo feminino, para debaixo de uma
árvore no quintal da casa de Letícia.
— Ai, meu Deus. Ai, meu Deus. O Saci está aqui no quintal.
Ai, meu Deus. E está carregando a Larissa. — gritou a garota, apavorada. Saiu
correndo pelo interior da residência, gritando continuadamente que o Saci se
encontrava no quintal de sua casa carregando a Larissa.
— Do que ela está falando? — se perguntou a mãe, enquanto se
levantava da cama, preocupada. O pai, após acordar assustado com os gritos,
perguntou, para si mesmo: — Saci?
Letícia entrou na cozinha e, ao ver Juan sentado no balcão
comendo alguma coisa, gritou para o mesmo, ainda em disparada e estando
completamente tomada pelo pavor:
— Me ajuda. O Saci pegou a Larissa. Me ajuda.
Juan, ao ouvir tais palavras, postou-se a rir
debochadamente. Suas risadas ecoaram por toda a casa, desarmando Letícia, que
parou, tomada pelo choque da reação do irmão.
— Não acredito que você acreditou nessa história de Saci
Pererê? Isso é coisa de gente à toa no Facebook. Desde quando Saci Pererê
existe?
— Eu vi com meus próprios olhos. Estava conversando com a
Larissa quando ele entrou pela janela. E agora ele está no nosso quintal... —
argumentava Letícia, aos gritos, ainda apavorada, até o instante que Juan
cortou sua fala, com a voz na mesma altura.
— Saci Pererê não existe. Isso é só lenda.
— Claro que não é lenda. Eu vi. E... — naquele instante, a
garota visualizou, com o canto do olho, o prato de Juan, colocado sobre o
balcão. Era um carré frito, comido pela metade, junto de arroz, feijão e
salada. Ao fitar o prato, uma estranha raiva surgiu de seu peito, tomando-lhe
todo o corpo. Avançou sobre o irmão e começou a tentar socar seu peito, em vão.
— Meu Deus, Juan. Você comeu carne de porco? Não se pode comer carne de porco
que o Saci...
— O que está acontecendo aqui? Que gritaria é essa? —
perguntou o pai, chegando junto da esposa no interior da cozinha.
— Essa menina maluca aí, dizendo que tem um Saci Pererê no
quintal enterrando a amiga dela... — diz Juan
— Mas eu vi. Eu não estou mentindo — rebateu Letícia — Eu o
vi atacando a Larissa enquanto conversávamos pelo telefone.
— Eu não quero saber de gritaria. Essa história de Saci não
existe, está certo? Isso é história que pai passa pra filho pra dar medo pra
ele não sair no quintal à noite, está certo? Eu não quero mais saber desse
assunto — disse o pai, aos gritos.
— Eu não tenho tempo de ouvir sermão — disse Letícia, dando
as costas aos pais e correndo em direção à porta de vidro, que dava ao quintal.
A garota abre a porta, porém seu pai lhe impede, segurando seu braço.
— Se realmente existisse essa história de Saci, sair seria a
maior loucura. O Saci... — dizia o pai, quando, para sua surpresa, percebeu
alguma coisa à sua frente. Assustou-se ao perceber o Saci parado no batente da
porta, fitando-os com seu olhar amedrontador e sorriso diabólico.
— Puta merda. É o Saci de verdade! — gritou o pai, largando
o braço da filha e correndo para o interior da residência. O grito de João
chamou a atenção de Juan e Rosana, que fitaram o Saci parado na porta. Ao
perceber seu marido correndo, Rosana foi logo atrás. Letícia ficou estagnada ao
ver o Saci, que igualmente a fitava parado. Juan, ao perceber a paralisia da
irmã, correu até a porta, fechou-a na cara do Saci em um só baque e a puxou
para dentro.
— Vamos. Vamos. Vamos!
Letícia
rapidamente acordou de seus devaneios, enquanto era puxada para o interior da
residência pelo irmão.
— Temos que fechar todas as portas e janelas — gritou o pai,
enquanto corria para o interior de um cômodo, ao mesmo tempo que a mãe corria
para o interior de outro. Juan soltou Letícia no caminho e foi ajudar os pais,
sendo seguida pela irmã.
Juan e Letícia voltam à sala, onde estavam João e Rosana,
sentados no sofá. O marido ligava a televisão.
— Pai, o que está fazendo? Tem um monstro lá fora e você vai
assistir televisão? — perguntou Juan.
— Melhor do que ficar parado sem fazer nada — respondeu o
pai, sem desgrudar o olho da TV.
— Pai, tem um Saci lá fora. A gente vai ficar... aqui
dentro?
— O Saci não invade uma residência se todas as portas e
janelas estiverem fechadas. — respondeu Letícia, calmamente, enquanto sentava
ao lado do pai.
— Exatamente — complementou João.
— Como que vocês sabem da história desse Saci e eu não? —
perguntou Juan.
— Assim que a Larissa foi atacada pelo Saci, enquanto
conversávamos pela webcam, eu li na internet sobre a lenda. Lá diz que ele não
ataca crianças do sexo feminino ou mulheres virgens; sempre ataca furiosamente
pessoas que comem carne de porco; nunca entram em uma casa que não seja por
janela ou porta aberta e não atravessa cursos d´água.
— Essa não é a lenda do vampiro não?
Letícia o olha torto.
— Claro que não. Vampiros não existem — disse, irritada.
— Vai saber. Até cinco minutos atrás, Saci também não.
— Quer parar os dois? — disse o pai, rígido. — Não importa
agora qual lenda existe e qual não existe. O importante é ficarmos protegidos
até que o Saci vá embora.
— Mas o Juan comeu carne de porco. Ele não irá sossegar —
disse Letícia.
— Precisamos, então, ficar aqui protegidos até ele desistir
ou alguém o ver e ele resolver fugir.
— Mas, pai, precisamos sair daqui...
— É idiotice colocar os pés lá fora — respondeu o pai,
irritado. — Não vamos sair daqui, pronto e acabou, está certo?
— Precisamos ligar para a Polícia pelo menos. Ela precisa
retirar o Saci de nosso quintal. — disse Rosana.
— E você acha realmente que a Polícia vai vir quando você
disser que tem um Saci na porta de nossa casa? — perguntou João, irritado.
— Não sei. Basta não dissermos que é um Saci, só que é um
menino negro sem uma perna e com gorro e bermuda vermelha.
— Qualquer um sabe que essa é a descrição de um Saci. —
disse Juan.
— Fora que a internet inteira está apavorada com essa
notícia. Já saiu até em sites de renome. A Polícia certamente já está sabendo
do caos e não nos atenderá — disse Letícia.
— E agora. O que faremos? — perguntou Rosana. Não queria deixar
aparecer, mas era visível seu temor.
Repentinamente, eis que o Saci aparece do lado de fora da
janela da sala, com seu inconfundível sorriso diabólico. Ao fitá-lo, Rosana e
Letícia gritam, encolhendo os corpos, tamanho o medo. Juan, de costas, e João,
distraído, sobressaltaram. De inopino, Juan distancia-se de onde se encontrava
e vira o corpo, passando a fitar o Saci.
O monstro bate várias vezes na janela, com força, colocando
mais medo principalmente em Rosana.
— E se ele quebrar essa janela? — perguntou Juan.
— Ele só faz isso pra amedrontar. Ele só entra em janelas já
abertas ou entreabertas — disse João, fitando o monstro como todos.
— Você está sabendo bastante sobre Saci, pai.
— Meu pai vivia contando sobre a lenda. Dizia ele que o Saci
atormentou a cidade em 1953.
— Há 64 anos — disse Letícia — Por isso que os mais idosos
morriam de medo do Saci.
— Mas nunca pensávamos que fosse real — disse Juan. — Até
porque nunca ouvi de relato nenhum de aparições do Saci, ainda que em outras
cidades.
João nada respondeu.
— Não dá para saber o que esse monstro pensa — disse,
apenas.
O monstro ficava cada vez mais irritado, socando a janela
com mais intensidade.
— Ele vai acabar quebrando a janela — disse Rosana.
— Ele não vai entrar mesmo se quebrar todos os vidros da
janela — respondeu João. — Já falei.
— Ele não. Mas o ladrão entra. Ou você tem dinheiro pra
trocar esse vidro? — João acabou ficando em silêncio, envergonhado. Juan e
Letícia riram.
O Saci continuou mais alguns minutos socando o vidro da
janela, até o instante em que cessou e ficou fitando os ocupantes da
residência, com seu olhar amedrontador. Rosana e Letícia engoliram em seco e
nenhum dos quatro ousava piscar.
Repentinamente, o Saci sai em disparada do local, saltitando
sobre sua única perna.
—Ufa. Ele foi embora — disse Juan, aliviado.
—Não. Não seria assim tão fácil. Ele não tem o hábito de
desistir quando encontra alguém que comeu carne de porco — rebateu o pai
— E o que será que ele está querendo?
— Não sei — disse o pai, preocupado. — Provavelmente deve
estar procurando alguma janela ou porta para entrar.
De repente, o Saci volta, para espanto de todos. Estava com
um pedaço de pau em mãos.
— O que ele está fazendo? — perguntou Letícia, mais para si
mesma.
O monstro crava o pedaço de pau na janela, estilhaçando-a.
Rosana soltou um grito, enquanto Juan soltou um “puta que pariu”, enquanto
encolhia as pernas e as colocavam sobre o sofá.
— Temos que parar ele. Ele vai acabar quebrando a janela —
gritou Rosana, enquanto o Saci continuava a golpear os vidros da janela com o
pedaço de pau, um a um.
— E o que podemos fazer? — perguntou Juan.
— Temos que dar um jeito — gritou Letícia, enquanto saía
correndo em direção à cozinha.
— O que você vai fazer, Letícia? Volte aqui — gritou o pai.
— Temos que pegar alguma coisa para afugentar o Saci. —
gritou Letícia, já distante. Poucos segundos depois, a garota retornou, com uma
enorme faca de cozinha.
— Cadê o monstro? — perguntou, ao retornar.
— Já foi. — disse o pai. Letícia fitou a janela. De fato, o
Saci não mais se encontrava lá. Igual os vidros da janela.
— Uma faca, menina? — perguntou Rosana. — Guarda isso lá. É
perigosa.
— Temos que estar armados. Não sabemos quando... — dizia
Letícia, enquanto caminhava em direção ao sofá, parando ao ouvir um audível
barulho no interior da residência.
— O que foi isso? — perguntou João, em um pulo.
— Parece que veio dentro do banheiro.
— Puta que pariu! — gritou Juan, levantando-se em um só
pulo. Assustados com o grito, os demais levantaram-se logo atrás.
— O que foi, Juan? — perguntou Letícia.
— O que você aprontou, Juan? — perguntou João.
— Eu não fechei o basculante do banheiro. — gritou o rapaz.
— Puta que pariu, moleque. — gritou João, saindo correndo e
deixando a todos para trás. — Qual a parte do “trancar tudo” que você não
entendeu?
— Desculpa. — gritou o filho, logo atrás do pai e igualmente
correndo. Letícia e Rosana vinham depois.
— Mas você é muito imbecil. Já não bastava comer carne de
porco, agora isso? — gritou o pai. — Você quer matar a gente?
— Eu não sabia que não podia comer carne de porco.
— Sempre comentamos com vocês sobre a lenda do Saci, desde que
vocês eram criança. Se tivesse prestado mais atenção na gente...
— E eu vou lembrar? Só lembro que era proibido sair pro
quintal de casa.
O pai chega à porta do banheiro e abre a porta, a toda
velocidade. Nesse exato momento, se surpreende. O Saci se encontrava
trespassando o enorme basculante arredondado do banheiro, com as mãos, gorro e
tórax do lado de dentro.
— Ai, meu Deus. Ele já está entrando — disse Juan, logo
atrás do pai.
— Vamos, vamos, vamos. Me ajuda aqui. Precisamos empurrá-lo
para fora — gritou o pai, arrancando de Letícia a faca e correndo em direção ao
Saci; em seguida, começa a forçar seu peito com as mãos para fora.
— Você está maluco, pai? Basta fechar a porta do banheiro. —
gritou Juan, enquanto foi auxiliar o pai a fechar a porta.
— Cala a boca e me ajuda aqui. — disse o pai, sendo prontamente
ajudado pelo filho. João finca a faca no peito do Saci, entrando toda a lâmina.
O monstro solta um grito.
— Conseguimos? — perguntou Letícia, em um pingo de esperança.
O Saci, praticamente ignorando que havia uma faca enfiada em
seu peito, retira o gorro de sua cabeça, ainda irritado. O gorro brilha. Em
seguida, pai e filho gritam, antes de desaparecerem do local, junto do monstro.
Letícia e Rosana, ao fitarem a cena, sobressaltam,
estupefatas.
— Puta que pariu! — gritou Letícia — Para onde eles foram?
As duas rapidamente saem correndo do interior da residência,
em direção à rua.
— Para onde aquele monstro levou os dois? — perguntou
Rosana, enquanto mãe e filha olhavam atônitas em todas as direções, fitando uma
vazia e escura cidade setecentista.
— Se eu fosse um Saci, para onde eu levaria eles? — se
perguntou Letícia, tentando ser o mais racional possível.
— E como a gente vai saber? — perguntou Rosana, tomada pelo
desespero.
— Crianças, mulheres impuras, negros “coniventes” com
brancos, homens brancos, ervas... Ah, verdade. O Saci mexe com ervas
medicinais... criam medicamentos — pensou Letícia consigo mesmo, mas em voz
alta. — Ele também protege as florestas onde se acham essas ervas... e ele
estava com... — É ISSO! — gritou, chamando a atenção de Rosana.
— O que foi, menina? É isso o quê?
— A floresta de São Cristóvão. É para lá que o Saci levou
meu pai e o Juan! — disse, extasiada com a própria descoberta.
— Mas como descobriu isso?
— Tem outra lenda do Saci, que eu li, que diz que eles são
protetores das florestas que possuem ervas medicinais. As empresas de
medicamento veem na floresta de São Cristóvão para retirarem as ervas e fazer
os remédios. Ele só pode estar lá. Vamos!
— Mas a floresta é do
outro lado da cidade.
— Vamos. Precisamos ir logo. — gritou Letícia, enquanto
postou-se a começar a correr. Embora preguiçosamente e com ritmo bastante
lento, Rosana postou-se a correr logo atrás.
Mãe e filha começam a atravessar a cidade com suas ladeiras
e ruas de paralelepípedos. De fato, a floresta de São Cristóvão, no sopé da
serra, era do outro lado da pequena cidade, o que demandava uma caminhada de
pouco mais de meia hora dali até a região, atravessando a cidade praticamente de
fora a fora — mas, naquele momento, esse tempo deveria ser encurtado o máximo
possível.
Enquanto corriam pelo interior da cidade, Letícia mexia no
seu Facebook, onde ainda haviam alguns relatos — escassos, àquela hora — de
aparições do Saci. Parecia que o monstro, de fato, não estava aprontando mais
com outras pessoas desde que apareceu na residência de Letícia — e isso incluía
o pós-desaparecimento.
Porém, algo chamou a atenção de Letícia. Era um post, de uma
moça de seus vinte e poucos anos, que digitou a seguinte mensagem no Facebook:
“Socorro. Me ajudam. O Saci veio aqui e levou meus meninos”.
Surpresa, Letícia parou para ver os comentários, mas
percebeu só haver dois emojis tristes como curtida e dois comentários, de
pessoas igualmente desesperadas pelo desaparecimento de parentes próximos.
— Que esquisito. — disse, para si mesma, pensativa. Sua mãe,
contudo, acabou escutando.
— O quê?
— Olha isso, mãe — disse a jovem, passando o celular para
sua mãe. — Tem mais pessoas que desapareceram na cidade. E esse relato dela foi
de pouco mais de quarenta minutos atrás. Ou seja, pouco antes do Saci aparecer.
E praticamente ninguém mais comentou ou relatou problemas semelhantes, como
antes.
— Que esquisito. — disse a mãe, olhando o celular enquanto
corria.
Alguns minutos depois, eis que mãe e filha, completamente
suadas, ofegantes e descabeladas, chegam no sopé da serra, na entrada de uma
floresta. Àquela altura, completamente tomada pela escuridão noturna e com
várias árvores “ligadas” entre si por grossas teias de aranha, a floresta era
mais amedrontadora. Havia, contudo, uma pequena trilha, que levava para o
interior da serra — provavelmente utilizada pelos pesquisadores para coletar as
ervas medicinais.
Letícia ligou a lanterna do seu celular e apontou o feixe de
luz para o interior da floresta, na entrada da trilha. Em seguida, respirou
fundo.
— Vamos lá — disse, enquanto tomava coragem.
Rosana se encontrava logo atrás, amedrontada. Adentraram na
floresta, a passos rápidos. Como Rosana estava sem qualquer tipo de
luminosidade, Letícia evitou correr floresta adentro e acabar por se perder de
sua mãe — o que poderia ser um erro fatal.
— Como iremos encontrá-lo aqui dentro dessa floresta? A
serra é enorme — perguntou Rosana.
— O Rio São Cristóvão desce logo à frente. Ele não pode
estar longe, porque já dá pra ouvir o barulho das cachoeiras do rio — disse
Letícia. De fato, era nítido o barulho de água que caía ao fundo.
— Sim, eu sei que o rio desce logo à frente. Mas o que água
tem a ver com isso, minha filha?
— Ele não pode ultrapassar correntes de água. Logo, ele só
pode estar dentro de um território pequeno dentro da serra.
— Entendi. Você realmente está sabendo bastante sobre esse
Saci.
Letícia ri.
— E olha que eu li correndo.... — brinca.
Alguns metros adiante, Letícia aponta para sua mãe.
— Olha. Uma clareira — disse. Rosana fitou o local apontado
pela filha. Realmente havia uma clareira logo à frente. — Eles devem estar ali.
Mãe e filha aceleraram os passos. Ao chegarem perto da
clareira, surpreenderam-se com o que viram. Havia, ainda no interior da floresta
e fazendo divisa com a clareira, ruínas de uma antiga e enorme residência,
setecentista como o restante da cidade. Eram inúmeras janelas e portas — ou
melhor, o que haviam sobrado delas. A natureza havia tomado parte das paredes
que ainda restavam em pé, cobrindo o que sobrou das estruturas janelas e das
portas — que já não haviam vidros —, subindo do chão pelas paredes, até
conseguirem tomar tudo.
— Que casa é essa? — perguntou Letícia, encantada com a
visão à sua frente.
— Deve ser a Fazenda São Cristóvão. — disse a mãe.
— Fazenda São Cristóvão?!
— Dizem os relatos antigos, que eu li uma vez, que, no sopé
da montanha, havia algumas fazendas escravocratas, dos homens mais ricos da
cidade. Dentre elas, havia uma em espécie, que era a maior fazenda
escravocrata, do homem que mandava e desmandava na cidade e era o homem mais
cruel que havia na cidade. Seu nome era Barão de Larital, que também era
prefeito da cidade. Apesar de rico e poderoso, era odiado por todos, sendo
viúvo e abandonado pelos filhos. Em dada noite, a cidade acordou com seus
gritos angustiantes. Ao chegarem na velha fazenda, o Barão havia desaparecido e
nunca mais foi encontrado. Os filhos parecem que abandonaram a fazenda e a
deixaram ser carcomida pelo tempo.
— Então, deve ser aqui que o Saci está. Se aqui é o símbolo
do poder escravocrata e sendo o Saci um ex-escravo morto pela escravidão, ele
deve estar por perto. Vamos!
Letícia e Rosana voltaram a caminhar. Começaram a
ultrapassar a velha residência, deixando-a para trás, junto do passado. Mãe e
filha começaram a perceber uma grande luminosidade à frente, tampada pelas
ruínas da velha residência.
— O que será aquilo? — se perguntou Letícia, para si mesma.
Ultrapassaram a ruína, vislumbrando o que se encontrava após
ela. Era a clareira que haviam visto anteriormente. Havia um pelourinho no
centro e, ao fundo, ruínas do que parecia ser uma antiga senzala.
Ao centro, estava o Saci. Encontrava-se próximo do
pelourinho, com os braços abertos e cotovelos dobrados, entoando algum canto. À
sua frente, uma fogueira consumia generosas quantidades de lenha. Havia sete
estacas fincadas na terra, formando um círculo, em volta do Saci, do pelourinho
e da fogueira central. Cada estaca, tomada pelo fogo, tinha um corpo amarrado,
completamente carbonizado. Ao centro, amarrado ao pelourinho, havia um menino
de seus oito anos, ainda vivo, amedrontado e com lágrimas nos olhos.
Ao fitarem a cena, Letícia e Rosana se esconderam atrás das
ruínas da velha residência.
—Ai, meu Deus. Olha o tanto de cadáveres dependurados. —
disse Rosana, assustada, tentando falar o mais baixo que pôde.
— Shhhh! — disse Letícia, fazendo sinal com os dedos. Fitou
novamente a cena. — Será que o papai e o Juan estão ali?
— Ai meu Deus — disse Rosana, aterrorizada. — Tomara que
não.
— Amém — disse Letícia. A garota parecia tranquila por fora,
mas seu coração explodia no interior de seu peito, tamanho o nervosismo e a
apreensão.
— E o que faremos? — perguntou Rosana.
— Precisamos ligar para a polícia — disse Letícia. — Só que,
pra ligar, temos que voltar pra cidade.
— É muita loucura. Eles não confiarão na gente.
— É a única coisa normal que podemos fazer.
— Mas, e a criança?
— Se formos rápidas, ainda dá tempo de salvá-la.
Rosana respira fundo. Letícia vira-se de costas e começa a
retornar à trilha que a levaram até ali; mesmo contrariada, Rosana a segue. Sem
fazer qualquer tipo de barulho para não chamarem a atenção do Saci, Letícia e
Rosana fogem do interior da floresta. Em poucos minutos, utilizando-se novamente
da lanterna do celular da primeira, mãe e filha chegam até o sopé da montanha.
Letícia, rapidamente,
desliga a lanterna de seu celular e disca o “190” da Polícia. Chamou, chamou e
ninguém atendeu. Tentou novamente. Nada.
— E aí? — perguntou Rosana, ainda apreensiva.
— Nada. — disse Letícia. Estava discando uma terceira vez.
— Vamos. A Polícia não é longe daqui. Você vai tentando no
caminho.
Letícia concordou e mãe e filha partiram pelas ruas de
Larital. Atravessaram dois quarteirões e viraram à direita. Chegaram frontalmente
a um casarão de dois andares, onde se encontravam alguns carros da Polícia
Militar estacionados na porta e um escrito “Polícia Militar” estampado na
entrada.
—Pronto. Chegamos — disse a mãe.
— E nada de eles atenderem — disse a filha. Foram até a
porta e a abriram. Entraram. Surpreenderam-se. Todos os policiais presentes no
local estavam caídos, completamente desacordados, com os olhos ainda abertos.
Alguns estavam deitados no chão, de bruços, enquanto outros estavam sobre uma
mesa ou o encosto da cadeira em que estavam assentados. Parecia mortos, mas era
visível as suas respirações.
— O que... aconteceu... aqui? — perguntou Letícia, enquanto
fitava assustada a cena à sua frente. Entrou no interior da sede e ficou
fitando os policiais caídos, atônita, sendo seguida por sua mãe.
— Parece que todos repentinamente apagaram. — disse a mãe.
— Deve ser por isso que eles não fizeram nada em relação aos
desaparecimentos. Eles estavam desacordados esse tempo todo — disse Letícia,
batendo a mão direita, fechada, sobre a outra, aberta. — Mas será que ninguém
reparou isso antes, não? Não é possível que ninguém tenha vindo procurar a polícia
aqui na central.
Sem responder, Rosana caminha até uma janela, onde passa a
fitar o exterior do local.
— Mãe? — perguntou Letícia, virando-se de costas e fitando
sua mãe, ao perceber que a mesma não havia lhe respondido.
— Não é estranho a cidade estar nesse silêncio a essa hora? —
perguntou Rosana, ainda fitando o exterior da residência. Letícia parou para
digerir as palavras de sua mãe. Ficou em silêncio alguns segundos. De fato, não
havia qualquer barulho. Nem carro, nem moto, nem criança... E era relativamente
cedo, uma vez que não era nem dez horas. Era para ter ainda crianças correndo
nas ruas e pessoas conversando, carros e motos passando... mas não, a cidade
estava completamente silenciosa, desde que saíram de suas casas, após o
desaparecimento de Juan e João.
— Verdade. A cidade está um silêncio total.
— Deve ser por isso que ninguém procurou a Polícia.
Provavelmente devem estar dormindo como os policiais. — disse a mãe.
— Exato! — disse uma monstruosa voz logo atrás de Letícia.
Esta e Rosana, ao escutarem a medonha voz às suas costas, viraram-se de
inopino. Entretanto, não tiveram tempo. Suas visões ficaram nebulosas. Uma
fumaça acinzentada apareceu no local, com pequenas poeiras brilhosas. Em
seguida, mãe e filha começaram a perder a consciência, indo ao chão segundos
depois. Antes de apagar por completo, Letícia ainda viu um vulto de um rapaz
com apenas uma perna, com um gorro na cabeça, logo à sua frente.
Letícia abriu os olhos, tão logo recuperara a consciência.
Sua cabeça estava zonza e girava. Tentou mexer o corpo, mas doía de tal forma
que tal tarefa se mostrava impossível. Percebeu estar sobre uma terra fofa, que
quase entupia suas vias aéreas. Mexeu apenas os olhos. O local onde se
encontrava era iluminado e Letícia pôde perceber que estava dentro da clareira,
em volta do pelourinho, onde algumas fagulhas ainda ardiam em brasa.
“O que... aconteceu?”, perguntou, para si mesma. Tentou se
levantar; porém, percebeu que suas mãos estavam amarradas nas costas. Ao mexer
seu corpo, sentiu uma pungente dor na sua parte inferior. A dor, que já era
forte no começo, foi aumentando de intensidade, o que fez Letícia se contorcer
freneticamente. Algo dentro de sua barriga passou a mexer intensamente, se
contorcendo, saindo partes para além da barriga, sem, contudo, romper a pele da
região. Repentinamente, este algo se levanta, como se estivesse pulando para
fora. Mostrou-se ter uma diminuta forma humana, de pouco mais de meio palmo de
altura, com um pequeno gorro na cabeça e sendo ausente a perna esquerda. Em
seguida, voltou para o interior da barriga, parando o movimento por completo.
Letícia caiu, completamente exausta, suando frio. Sentiu ainda o pequeno ser
andando no seu corpo, até o exato momento que se instalou no seu útero.
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