DO ALÉM-TÚMULO - Conto Clássico de Terror - José Juan Tablada
DO ALÉM-TÚMULO
José
Juan Tablada
(1871
– 1945)
Tradução
de Paulo Soriano
Ao
longo das ruas, úmido e frio, arrastava-se um vento de inverno que açoitava o
vidro dos lampiões e fazia ondular as chamas nos bicos de gás.
O
movimento havia cessado nas ruas, apenas cruzadas por escassos transeuntes ou
por coches tardios, cujo rolar intermitente e fragoroso surgia, desvanecendo,
depois, em silêncio.
Naquela
hora, à meia-noite, o sol do vício se levanta. É a hora febril da taverna, onde
a vida do ébrio se arrasta com o pulsar precipitado de um coração de
alcoólatra, e as visões se levantam de um cérebro nublado pelo vinho.
O
relógio daquela taverna marcava as doze, hora que acabava de soar com os
suspiros das doze badaladas e o seco e preguiçoso estertor da corda que se
estira.
Uma
dúzia de indivíduos repousava no interior: dois alemães, com o rubro bock de cerveja à frente, jogavam dados,
recortando na escuridão os seus rostos vermelhos e congestionados de teutões.
Mais adiante, um indivíduo roncava, segurando um charuto entre os dentes,
arrojando em silêncio a nota de um ronco comatoso. Alguns clubmen, de pé, junto ao balcão da taverna, aproveitavam um
entreato do vizinho teatro e, entre goles de conhaque e baforadas, analisavam a
vulgar estética de uma corista. Um maître
cruzava o salão a cada instante e a nota de seu avental branco se recortava na
penumbra e brilhava, depois, junto ao balcão, sob a luz radiosa das lâmpadas
Edson.
Mas
o indivíduo pálido, de lividez cinzenta, de olhar turvo, de olhos úmidos nas
órbitas, de lábios entreabertos e atitude cansada, tinha forçosamente que
chamar a atenção, mais que os rubicundos teutões, mais que o indivíduo que
roncava entre os estertores do coma,
mais que o grupo de elegantes que continuavam a analisar, entre goles de
conhaque e baforadas de fumo, a anatomia da vulgar corista.
Tinham
os teutões a embriaguez da cerveja, que derrama nas veias dos bebedores a
euforia mais burguesa, o bem-estar mais animal. Sua conversa gutural se exalava
em roucas vocalizações, em rudes palavras, em selvagens monossílabos. Os
brancos dados no fritilo de couro dançavam agitados pelas mãos inábeis e caíam,
depois, sobre o mármore da mesa, com o ruído seco e macabro com que golpeariam
o torso de um esqueleto sobre uma lápide mortuária.
O
indivíduo que roncava era um organismo hipotecado pelo sono. De quando em
quando, alguma mosca pousava em seu rosto suarento e, então, seu dedo indicador
espantava o inseto, e seguia diante do suarento rosto, sério e grave como o dos
faquires que se hipnotizam.
Os
clubmen eram grisalhos, suas
individualidades se concentravam nas gravatas e gravitavam em torno dos
impecáveis casacos.
Mas
o sujeito pálido, de lividez cinzenta, tinha uma embriaguez trágica que se
difundia em seu rosto e imprimia em seu corpo trejeitos estranhos e nervosos;
tinha a embriaguez lívida do absinto, que inspirou os cantos de Musset, e enche
de alienados os hospitais de Paris. Em sua embriaguez, era quase um esboço do delirium tremens.
Com
um trejeito exaltado, chamou o garçom, que pouco depois voltou trazendo uma
garrafa na mão, a garrafa adornada com flor-de-lis e cruz vermelha que, ao
verter seu conteúdo na taça cheia de água, fingiu os tons e o brilho especial de uma
opala em fusão.
Depois,
com a mão vacilante, tirou um papel do bolso, um papel cinza com larga moldura
negra, como de uma nota de falecimento, e, à luz de uma lâmpada próxima, leu
algumas linhas de diziam com uma letra feminina:
“Sei
que chegaste. Te amo como sempre. — Tua ELENA”.
E, ao dobrar o papel e devolvê-lo ao bolso, o tremor de sua mão insegura se
acentuou.
Aquela
mulher era a “Safo” de sua história, vulgar como aquela e descendendo de uma
genealogia semelhante.
Seu
passado havia sido sacrificado a ela, que sempre, levada pela lembrança,
aparecia diante de seus olhos com a vaga aparência de uma esfinge apaixonada,
doce e trágica, voluptuosa e cruel.
Fazia
mais de um ano que, ausente da cidade, não a via; e, agora, mal regressara,
recebia aquele papel que havia lido, traçado, talvez, em um momento de ânsia e
arrebatamento.
Iria
vê-la, apesar de tudo, apesar dos enganos, falsidades e traições, ansioso
por escutar aquela voz que em sua vida havia ressoado, modulando o agrado,
exalando a carícia e pronunciando maldição.
Iria
vê-la, apesar das infidelidades e das crueldades, ansioso por arrancar daqueles lábios, que agora o chamavam, o beijo de outros dias, o beijo de paixão
e deleite.
*
Com
inseguro passo atravessou as ruas, flagelado por aquele vento de inverno que se
arrastava úmido e frio, açoitando o vidro dos lampiões e ondulando as chamas nos
bicos de gás. Após uma hora de caminhada, chegou a uma ruela que atravessava
duas avenidas de um bairro. Chegou ao número da casa indicada e entrou.
Em
meio à turbação que o possuía, sentiu um ligeiro cheiro de ácido fênico
derramado no recinto, e notou que, apressadamente, uma mão apagava um círio que
ardia no cômodo contíguo. Naquela noite reiniciara com Elena a sua antiga
paixão, e um broto de amores de outros dias floresceu na penumbra daquela
triste noite e voltou a encontrar a doce voz de outrora e o ansiado beijo.
No
dia seguinte, no quarto de seu hotel, ainda comovido pelas emoções da véspera,
recebeu aquela nota de falecimento, que anunciava a morte de Elena, ocorrida um
mês antes. Como um louco, saiu à rua e vários amigos confirmaram aquela notícia,
e um deles chegou a assegurar que ele, em pessoa, havia assistido ao enterro.
*
Desde
então, uma imaginação de louco se agita em um frenesi estranho, e a embriaguez
de todos os dias ilumina, sem poder dissipar-se, um quarto saturado do cheiro
de ácido fênico, um beijo ansiado ao fim volto a encontrar, e o triste crepitar
de um círio que uma mão apressada apaga.
Fonte: “Cuentos
Mexicanos”, “El Nacional”, Cidade do México, 1898.
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