O POTE DE CAVIAR - Conto Clássico de Horror - Arthur Conan Doyle


O POTE DE CAVIAR
Arthur Conan Doyle
(1859 – 1930)
Fazia quatro dias que eles estavam ali, assediados. Munições e provisões estavam prestes a terminar.
Quando a insurreição dos boxers[1] surgira como um incêndio implacável, invadindo todo o Norte da China, os poucos europeus espalhados por aquelas províncias tinham se refugiado no primeiro posto em que podiam oferecer alguma defesa e defendiam-se corajosamente, enquanto esperavam socorros, que talvez não viessem nunca. Nessa última hipótese, melhor seria não falar no destino que os esperava. Se os socorros viessem, os homens e mulheres, que ali se achavam, poderiam dizer que haviam visto, de perto e de frente, uma morte que, nem em sonhos, é possível imaginar.
Ichau era uma localidade situada a cinquenta milhas do litoral, onde uma esquadra europeia cruzava o golfo de Liang Tung. Assim, a pequena guarnição — compostas de cristãos nativos e operários da estrada de ferro, sob as ordens de um oficial alemão — sustentava valentemente o embate, convencida de que, das pequenas colinas do oriente, não tardariam a surgir reforços.  Do alto dessas colinas, avistava-se, ao longe, o mar, o oceano imenso onde seus compatriotas iam e vinham livremente.
Postados por trás das seteiras, abrigados pelas muralhas vacilantes de tijolos, que limitavam o pequeno bairro europeu da cidade, esses bravos tiroteavam com ardor, senão com eficácia, contra as linhas de boxers, cujas trincheiras de pedras dia a dia se tornavam mais profundas. Dentro de um dia ou dois, os assediados teriam esgotado seus recursos, a menos que nesse prazo tivessem sido socorridos e libertados. Todos estavam convencidos de que os socorros chegariam mais cedo ou mais tarde... Era, porém, impossível determinar em que momento chegariam, e o retardo de algumas horas poderia ter consequências terríveis.
Em todo caso, até a noite de quinta-feira, ninguém teve, ali, uma palavra de desânimo.
Na quarta-feira, porém, a fé robusta dos defensores do frágil reduto enfraqueceu um pouco. As encostas das colinas, que todos fitavam com tão angustiosa ansiedade, mantinham-se desoladas e mudas, ao passo que as linhas de ataque dos fanáticos apareciam cada vez mais próximas: tão próximas que já se distinguiam com os menores detalhes os horríveis rostos que, por cima do parapeito de pedra, vomitavam imprecações e brados de ódio.
Esses gritos tinham diminuído um pouco depois que o jovem Ainslie, do serviço diplomático, com sua pequena carabina de caça calibre 303, instalado no campanário da igreja, passava dias abatendo os assaltantes como cachimbos nos stands de feiras. Mas, silenciosas, as trincheiras de boxers eram ainda mais impressionantes. E, hora a hora, com regularidade implacável, as trincheiras se aproximavam. Em pouco tempo, seria bastante um salto para que os atacantes viessem desses abrigos ao refúgio da colônia europeia.
Essa era a situação na tarde de quarta-feira. O coronel Dresler, da infantaria alemã, continuava a apresentar uma fisionomia impassível, mas a fixidez de seu olhar revelava os transes de seu coração. Ralston, o engenheiro da estrada de ferro, passava horas inteiras escrevendo cartas. O professor Mercer, o velho entomologista, fechava-se cada vez mais em sombrio silêncio. O próprio Ainsle perdera um pouco de sua serenidade. Em suma, as senhoras — Mrs. Paterson, sua filha, a linda Miss Mary e Miss Sinclair, a enfermeira da missão escocesa — eram as que conservavam maior quietude. O padre Pierre, da missão francesa, guardava também todo o seu sangue frio, como homem habituado a considerar o martírio como uma glória.
Os boxers — que, do outro lado das trincheiras, reclamavam avidamente o seu sangue — perturbavam-no menos que a necessidade de viver em comum com o pastor da igreja evangélica, o senhor Peterson, com o qual, há dez anos, disputava as almas dos nativos. Quando se cruzavam nos corredores, eram como se um cão e um gato de encontrassem. E os dois se vigiavam ciosamente, cada qual temendo que o outro, tratando dos feridos, ciciasse a seus ouvidos uma heresia.
A noite de quarta-feira passou sem um incidente. Na quinta, o horizonte clareou novamente. Foi Ainslie quem, do alto da torre, antes de todos, percebeu o rugir do canhão ao longe. Depois, foi Dresler quem o ouviu. Ao fim de um instante, o som foi bastante nítido para que todos escutassem a forte voz de bronze que lhes lançava um apelo de esperança. Portanto, as companhias de desembarque estavam em marcha.
Sim. Mas quando elas chegariam? Decerto, só ao fim de muitas horas e, como as munições no reduto estavam quase esgotadas, e as rações de víveres estavam reduzidas ao mínimo, não havia razão para grande alegria. Mas, a despeito de tudo, a certeza de que iam ser socorridos espalhou entre os refugiados um júbilo irreprimível. Por outro lado, parecia certo que os boxers não lançariam o ataque decisivo nesse dia, pois, ao contrário, corriam em massa na direção do longínquo disparo de canhões, e suas longas trincheiras se mantinham silenciosas e desertas. Por isso, a mesa do almoço foi uma assembleia jovial e loquaz, transbordante da alegria de viver, que irrompia mais poderosa sob a sombra da morte.
—O pote de caviar — bradou de súbito Ainslie. — Vamos, professor, abra o pote de caviar.
Potztausend,[2] sim! — resmungou o velho Diesler. — É tempo de provar esse famoso caviar.
As senhoras concordaram com entusiasmo. De todos os pontos da mesa, reclamava-se o caviar.
A hora não parecia adequada a uma exigência dessa natureza, mas tinha uma razão de ser. O professor Mercer, o velho entomologista californiano, recebera, dois ou três dias antes de rebentar a insurreição, um pote de caviar, que um amigo lhe enviara de São Francisco. Quando, uma vez sitiados, resolveram dividir os víveres em rações, tinham excetuado o caviar e três garrafas de Lacryma Christi[3]. Por acordo geral, puseram essas preciosidades à parte, para festejar o dia em que vissem terminado o perigo. O ruído do canhão salvador continuava a chegar a seus ouvidos e esse som, acompanhando seu almoço, parecia-lhes a mais doce das músicas. Então, por que não ornar o pão duro e o talharim mofado com as delícias do caviar?
Mas o professor sacudiu a cabeça calva e respondeu com um sorriso impenetrável:
—Acho melhor esperar mais um pouco.
Todos protestaram:
—Esperar o quê?
—Os socorros ainda terão que caminhar muito antes de chegar aqui.
—Devem estar aqui mais ou menos à hora do jantar — disse o engenheiro, que era um homem seco, com nariz de pássaro e olhos brilhantes. — Não podem estar, agora, a mais de dez milhas. Ainda que façam apenas uma milha por hora, devem estar aqui às sete horas da noite.
—Perdão! — atalhou o coronel. — Pela persistência do canhoneio, trava-se uma batalha no caminho... Convém dar uma hora ou duas para a batalha...
—Qual duas horas! — exclamou Ainslie, com o ímpeto natural da mocidade. — Nem meia hora! Um destacamento militar passará através dessa canalha como faca por manteiga. Que resistência podem opor às armas modernas esses macacos armados com mosquetes de pavio e sabres velhos?
—Tudo depende do comandante da coluna — opinou Dresler. — Se, por felicidade, for um oficial alemão...
—Aposto dez libras como é um inglês — bradou Ralston.
—O comandante francês tem reputação de ser um mestre em tática — observou Pierre.
—Isso não tem a menor importância — declarou Ainslie. — Os verdadeiros comandantes da coluna são os senhores Mauser e Maxim[4] Com eles, diante de tais adversários, qualquer comandante é um Napoleão, capaz de ganhar todas as batalhas. Professor, vamos ao caviar!
Mas, como o velho professor não se deixava convencer, o Sr. Patherson observou, com seu sotaque escocês, lento e nítido:
—Afinal de contas, seria uma falta de cortesia para com os oficiais, nossos libertadores, não lhes oferecer uma refeição decente. Estou de acordo com o professor: guardemos o caviar para o jantar.
O argumento despertou em todos o sentimento da hospitalidade. Havia, de fato, um quê de cavalheiresco na ideia de reservar esse alimento melhor para os libertadores... Não mais se falou no caviar.
—A propósito, professor... — continuou Mr. Patherson —, ouvi dizer, há pouco, que esta já é a segunda vez que o senhor conhece os horrores de um assédio. Conte-nos isso.
O rosto do ancião tornou-se ainda mais sombrio.
—Foi em 1882 — disse ele. — Em Sung Tung, no Sul da China.
—Duas vezes! — exclamou o missionário. — É uma coincidência singular. E como foram socorridos?
—Não fomos socorridos.
—Como? Então o lugar em que estavam caiu em poder dos chineses?
—Caiu.
—E o senhor não foi assassinado?
—É que, além de entomologista, eu sou médico. Eles tinham feridos, precisavam de mim... Pouparam-me por isso.
—E os outros?
—Oh, não diga... Não conte coisa alguma! — exclamou o padre que, vivendo na China há mais de vinte anos, imaginava os horrores então ocorridos.
O professor calara-se, mas atrás da tristeza de seus olhos adivinhava-se uma visão de intenso pavor. As senhoras ficaram pálidas.
—Eu nem devia ter-lhe feito esta pergunta — murmurou o missionário. — Há coisas em que não se deve falar. Mas eu creio que o ruído do canhão está se aproximando.
Sobre esse ponto, não podia haver a menor dúvida. Após uma breve interrupção, o ribombar havia recomeçado e, agora, ouvia-se o som grave do canhão, acompanhado do tamborilar mais leve da fuzilaria. Esse ruído parecia vir da vertente oposta da primeira colina.
Enquanto uns desguarneciam a mesa, outros correram às muralhas. Apenas o professor se deixou ficar no mesmo lugar, imóvel, com a cabeça curvada para as mãos nodosas, conservando no olhar a mesma impressão de profundo horror.
Há fantasmas que dormem em nossa memória durante anos; mas, uma vez despertados, nada é mais difícil do que exorcizá-los. O canhoneio cessara; mas o sábio nem dava por isso, perdido numa evocação única, terrível e suprema de sua vida.
Foi o coronel quem veio arrancá-lo desse cruel devaneio. Um sorriso radiante dilatava sua larga face germânica.
—O Kaiser vai ficar contente — disse ele, esfregando fortemente as mãos. — Certamente serei condecorado e parece-me que já estou vendo as notícias dos jornais de Berlim: “Defesa de Ichau, contra os boxers, pelo coronel Dresler, antigo major do 144º regimento de infantaria. Magnífica resistência de uma pequena guarnição contra toda a esperança de êxito”.
—Então, acredita que estamos salvos? — perguntou o professor, sem emoção alguma na voz.
O coronel sorriu de novo.
—Sabe, professor — disse ele —, achei-o mais agitado hoje do que no dia em que trouxe de volta, em sua caixa de coleta, o Lepidus mercerensis[5].
—Julgava-o seguro na minha caixa — respondeu o entomologista. — Tenho passado por poucos transes em minha existência, mas um foi tão grave que não me alegro nem me entristeço mais, senão com ciência certa. Diga-me francamente o que há.
—Ora! — exclamou o coronel, acendendo o seu cachimbo e estendendo as pernas sobre outra cadeira. — Juro-lhe pelos meus galões que tudo vai muito bem. Os nossos estão fazendo progressos rápidos: a cessação do fogo indica que a resistência por parte dos chineses cessou. Portanto, não tardaremos a ver o destacamento surgir do alto de uma dessas colinas. Ainslie está no alto da torre da igreja e, logo que os avistar, dará o sinal, disparando três tiros. Faremos então uma surtida para nossa satisfação pessoal.
—Então... o senhor está esperando o sinal?
—Claro! E vim fazer-lhe companhia, mesmo porque eu queria lhe pedir uma coisa.
—O que é?
—O senhor disse há pouco que foi uma das vítimas do assédio de Sung Tung... Do ponto de vista profissional, isso me interessa muito. Agora que não há mais civis aqui, nem senhoras, pode falar à vontade.
—O assunto nada tem de agradável.
—De acordo. Deve ter sido um drama horrendo. Exatamente porque o imagino, viu o senhor com que energia tenho cá mantido a defesa. Não a achou digna das tradições do exército alemão? A outra praça talvez não tivesse sido bem defendida.
—Não... Não... Fez-se tudo o que era possível fazer... Menos uma coisa.
—Ah, houve uma omissão? Qual?
—Ninguém devia ter caído vivo nas mãos dos chineses — disse o sábio, com voz surda.
O coronel estendeu sua larga mão ao professor.
—Apoiado! Apoiadíssimo! Também já pensei nisso, aqui. E, por mim, estou garantido. Garanto que não me deitarão a mão sem me matar primeiramente... Hei de morrer lutando. O mesmo acontecerá com Ralston e com Ainslie. Isso já está combinado entre nós. Quanto aos outros... Não me atrevi a lhes falar sobre esse ponto. O senhor compreende... O padre católico, o missionário escocês, as senhoras...
—Mas deixar que sejam aprisionados vivos seria uma monstruosidade!
—Que quer? Não acredito que aceitem meios para se livrar desse horror. Nenhum deles é capaz de atentar contra a própria vida. Questão de consciência. De resto, considero o perigo conjurado... Mas, enfim, em meu lugar, o que faria?
—Eu não hesitaria. Antes matá-los do que permitir que sejam torturados com ferocidade indizível. Eu vi o que se passou em Sung Tung.
Mein Gott![6] Assassinar essa pobre gente...
—Eu não hesitaria — repetiu o velho sábio, com energia terrível. — Eu sei o que os espera. A morte é mil vezes preferível. No meio de assistir àqueles tormentos ignóbeis, alucinantes, o que mais me desesperava era a ideia de que, com meia dúzia de pastilhas inodoras e sem sabor, eu poderia ter poupado aqueles desgraçados dos sofrimentos indizíveis em que levaram mais de vinte horas para morrer. E o senhor acha que matá-los, justamente para lhes evitar tamanhos horrores, seria assassinato? Eu estou pronto a comparecer perante todos os tribunais divinos e humanos para responder por mil assassinatos semelhantes. Se eu, então, soubesse o que se ia passar, não teria hesitado e não guardaria o remorso de ter sido covarde.
O coronel ergueu-se e, de novo, apertou a mão do professor.
—O senhor fala com admirável bom senso — disse ele. — Vejo que se os acontecimentos tomassem outro rumo, eu encontraria no senhor um auxiliar resoluto e bravo. Mas, espere — atalhou ele, de súbito, erguendo-se —, o sinal de Ainslie está demorando. Vou ver o que há.
O velho entomologista ficou de novo sozinho com os seus pensamentos. Ao fim de alguns minutos, como o som do canhão não voltasse a se fazer ouvir, nem Ainslie desse o sinal, ele se ergueu para ir também se informar. Mas não teve tempo para isso. A porta se abriu e o coronel reapareceu, pálido como um espectro e arquejante de haver corrido. Havia um frasco de brandy sobre o bufê. O alemão encheu um copo, bebeu, depois deixou-se cair sobre uma cadeira.
—Então? — perguntou o professor.
—Eles não podem chegar aqui.
Seguiu-se um silencio que durou mais de um minuto. Os dois homens se olhavam como se hipnotizados por uma ideia fixa.
—E... os outros sabem? — perguntou, afinal, o sábio.
—Não.
—E o senhor, como soube?
—Eu estava junto da mina, em nossa trincheira avançada. Vi um vulto entre as ervas. Ergui um lenço na ponta do sabre. O vulto adiantou-se rapidamente. Era um tártaro cristão, mortalmente ferido. Vinha enviado pelo comodoro Wyndham, que comanda a expedição de socorro. A coluna está detida ante forças muito superiores e, por falta de munição, teve de se entrincheirar à espera de reforços dos navios. Esses reforços podem demorar três dias.
Os supercílios bastos e crespos do professor eriçaram-se ainda mais.
—Onde está esse tártaro? Quero interrogá-lo.
—Mal teve forças para me dizer isso e morreu.  Deixei o seu corpo lá mesmo na trincheira.
—Ninguém o viu, a não ser o senhor?
—Eu e a sentinela desse posto... Isto é, creio que também Ainslie, do alto da torre, deve tê-lo visto. Portanto, deve saber que ele falou comigo antes de morrer; há de querer saber que notícias ele me trouxe... E se eu disser, terei que dizer igualmente aos outros.
—Quanto tempo ainda poderemos resistir?
—Duas ou três horas, no máximo.  Estamos nas últimas.
—Estamos perdidos?
O coronel abriu os braços num gesto de profunda desolação e repetiu:
—Perdidos.
—Não haverá ainda uma esperança?
O coronel hesitou um instante, com os olhos dilatados pela angústia, depois sacudiu a cabeça, acabrunhado.
—Por minha honra de soldado, não acredito.
Mas a porta se abriu de novo e o jovem Ainslie precipitou-se na sala.  Atrás dele vinham Ralston, Patterson e todos os brancos e nativos cristãos.
—Que notícias há coronel?  Que lhe disse aquele homem?
O professor Mecer antecipou o militar, dizendo com volubilidade:
—Era o que ele estava me explicando. Vai tudo bem. A coluna teve de fazer alto, mas deve chegar aqui amanhã pela madrugada. Portanto, o perigo está conjurado.
Houve um grupo de exclamações entusiásticas. Todos riam, apertavam-se as mãos.
—Mas, e se formos atacados antes do romper do dia? — exclamou o impetuoso Ralston. — Por que demônio a coluna não continua a marcha até aqui?
—Qual! — disse o coronel. — Eles não se atreverão mais a nos atacar... Em todo caso... Voltem para os seus postos. Não devemos descuidar a vigilância.
E deixou a sala, acompanhados por todos. Mas, ao sair, lançou ao professor um olhar que significava claramente: “Deixo a sorte desses infelizes em suas mãos”. E o professor respondeu-lhe com um triste sorriso.
A tarde inteira se passou sem que os boxers atacassem. Para o coronel Dresler essa inação pouco habitual significava que estavam se concentrando para o assalto definitivo. O resto dos assediados, ao contrário, acreditava que a luta estava terminada e que o inimigo estava reduzido à impotência. Por isso, à hora do jantar, todos se reuniram alegremente em torno da mesa. Abriram as garrafas de Lacryma Christi e o famoso pote de caviar. Todos receberam uma boa porção dessa iguaria. O professor colocou em seu prato uma colher bem cheia. O coronel, que o observava atentamente, imitou-o. As senhoras comeram à vontade. Somente uma pessoa não a aceitou: Miss Jessie Patterson, que não suportava o gosto picante e salgado do caviar. A despeito da amável insistência do sábio, recusou provar sequer uma colherinha.
—Oh, minha cara senhorita! O meu pequeno mimo, um petisco tão raro, não tem a sorte de agradá-la! Fico desapontado, pois lhe reservara a iguaria na esperança de que lhe seria agradável. Coma ao menos um pouco.
—Confesso-lhe que não gosto de caviar. Talvez, com o tempo, venha a apreciar.
—É porque não está acostumada. Teime, que acabará gostando. Por que não educar o seu gosto agora?
O rosto radiante de Jessie Patterson iluminou-se com o seu sorriso ensolarado e infantil.
—Oh, que propagandista de caviar está nos saindo o senhor! Embora não coma do seu caviar, nem por isso fico menos agradecida.
—Chega a me dar pena ver uma pessoa não aproveitar uma coisa tão boa... Logo hoje! — redarguiu o sábio com uma vivacidade que fez desaparecer o sorriso do lindo rosto da escocesa.
—Hoje? Por que hoje?
—Porque, numa situação destas, um prato destes é um raro primor.
—Pois se minha filha não quer, eu quero — atalhou bruscamente Mrs. Patterson. E, com um gesto rápido de sua faca, passou o caviar do prato da moça para o seu.
Mas o professor não parecia satisfeito. A perturbação de seu rosto era a de um homem que se encontra, de súbito, ante um obstáculo insuperável. Ele olhava para um lado e para o outro como quem procura, em vão, uma saída.
Entretanto, em torno dele todos conversavam animadamente, fazendo planos a executar após a libertação.
—Não, não! Não há férias para mim — dizia o padre Pierre. — Nós, os sacerdotes, jamais tiramos férias. Agora que temos de pé a escola e a missão, vou entregá-las aos cuidados do padre Amiel, e rumar ao Oeste para criar outras tantas.
—Então, o senhor irá partir? — disse Mr. Patterson, com ar de espanto. — Então, está dizendo que irá deixar Ichau?
O padre Pierre balançou a venerável cabeça, com ar de reprovação:
—O senhor não deve ficar tão satisfeito, Mr. Patterson.
—Bem, as nossas opiniões são bem diferentes — disse o presbiteriano —, mas não tenho qualquer sentimento pessoal contra o senhor, padre Pierre. Aliás, como é que um homem razoável e instruído, nesse momento da história do mundo, pode ensinar esses pobres pagãos que...
Um burburinho geral de protesto fez o pastor silenciar sua teologia.
—O que o senhor vai fazer, Mr. Patterson? — alguém perguntou.
—Eu — respondeu Mr. Patterson — vou passar três meses em Edimburgo para assistir à assembleia evangélica anual.  Mary é quem mais vai gostar. Passar três meses numa verdadeira cidade, onde há lojas de modistas. E Jessie manterá contato com pessoas de sua idade. Voltaremos no outono com os nervos mais descansados.
—Disso é que estamos todos necessitados — disse Miss Siclair, a enfermeira. — Esses sustos matam uma pessoa. Eu, por mim, confesso que não estou me sentindo bem. Estou sentindo um zumbido nos ouvidos.
—É curioso — observou Ainslie —, eu também. Um zumbido forte!  Deve ser a tensão nervosa. Tomara já ver isto acabado. Passo por Pequim como gato por brasas só para me apresentar ao ministro norte-americano e... tocar para Nova York. E o senhor, Ralston?
—Não sei ainda o que farei. Em todo caso, vou gozar uma licença e levarei à minha família uma carta, que escrevi ontem, quando julguei tudo perdido.
—Tem razão, deve guardar esta carta — disse o coronel Dresler.
O tom de sua voz era tão solene e profundo que todos se voltaram para ele.
—O que é que tem coronel? Parece-me triste — observou Ainslie.
—Não... Estou muito contente.
—Ora, ainda bem! Ficar triste é o cúmulo! A propósito, julgo oportuna a ocasião para apresentar, em nome de todos nós, os agradecimentos mais sinceros pela maneira brilhante como o senhor, coronel, dirigiu a nossa defesa. Meus senhores e minhas senhoras, proponho-lhes que bebamos à saúde do coronel Dresler, do imperial exército alemão. Er soll leben... hoch![7]
Todos se levantaram de copo em punho, sorridentes. O coronel corou de orgulho profissional.
—Sempre mantive os meus livros comigo — disse o coronel.  — Não me esqueci de nada e não creio que pudesse fazer mais do que foi feito. Se as coisas tivessem transcorrido mal, e tivéssemos caído nas mãos do inimigo, os senhores decerto me teriam isentado de toda culpa ou responsabilidade.
E, melancolicamente, olhou em torno de si.
—Traduzo o sentimento de todos presentes, Coronel Dresler... Mas, esperem! — exclamou Mr. Pattherson, de súbito. — Parece que o senhor Ralston está sentindo alguma coisa.
Todos se aproximaram de Ralston que, com a cabeça pousada sobre os braços cruzados, na toalha, parecia dormir tranquilamente.
—Não é nada — disse vivamente o professor Mercer, apalpando a fronte e os pulsos do inglês. — Ele está simplesmente adormecido. É uma reação natural, depois de uma tão grave crise.
—Eu também estou com um sono quase invencível — balbuciou Mrs. Patterson. E, encostando-se na cadeira, fechou os olhos.
—Que coisa singular! — exclamou Mr. Patterson, rindo. — É a primeira vez que vejo minha mulher adormecer assim de repente, em cima do jantar. O que dirá de si mesma, quando contarmos a ela?  E o mais extraordinário é que eu também estou cabeceando.
Ainslie mantinha um estado de espírito de excitação e loquacidade. Ele estava novamente de pé, com um copo na mão.
—Creio que deveríamos beber todos juntos e cantar Auld Lang Syne[8] — disse ele, sorrindo para os convivas. Por uma semana remamos, todos juntos, o mesmo barco e tivemos que conhecer um ao outro de uma forma que nunca é feita nos tranquilos dias de paz. Aprendemos a gostar um do outro; e, cada um de nós, a apreciar a nação do outro. Aqui, temos o coronel a representar a Alemanha; o padre Pierre, a França; o professor, a América; eu e Ralston, a Grã-Bretanha. E temos também as senhoras, que Deus as abençoe! Nelas, encontramos anjos de misericórdia e compaixão ao longo de todo o cerco. Assim, devíamos beber à saúde delas! Coisa maravilhosa! Elas são exemplo de tranquila coragem, de paciência, de... Como direi? De fortaleza. De... Por Deus, olhem para o coronel. Também dormiu! Que sonolência mais infernal!
Seu copo caiu sobre a mesa e ele, murmurando e murmurando, tombou para trás, afundando na cadeira.
Miss Sinclair, a pálida enfermeira, também dormia. Estava deitada, como um lírio roto, no braço da cadeira.
Mr. Patterson olhou ao redor e levantou-se. Passou a mão sobre a fronte com ar alucinado.
—Céus! — bradou. —Isto não é natural.  Jessie — continuou ele, voltando-se para a filha —, por que todos estão dormindo? Olhe! O padre Pierre também está dormindo... Sua mãe está fria. É a morte! Que sono é este? Abra as janelas. Socorro! Socorro! Socorro!
Deu dois ou três passos em direção às janelas. A meio caminho, sentiu-se dominado pela vertigem e dobrou os joelhos. Tentou, ainda, apoiar-se nas mãos, mas acabou estendendo-se a fio comprido.
A jovem também se levantou. Olhou em torno de si. Com os olhos horrorizados, viu o pai estendido e os convivas desfalecidos, absolutamente mudos.
—Professor Mercer! Socorro! O que é isto?  É de se jurar que estão todos mortos. Meu pai! Que horror!
O velho pôs-se de pé com visível esforço e murmurou:
—Minha filha, nós queríamos poupar-lhe esta provação... Se me tivesse ouvido, não teria sofrido nem física nem moralmente. Eu pus cianureto no caviar...
—Meu Deus!
Num sobressalto, a moça recuou, com as pupilas dilatadas.
—Monstro! Monstro! O senhor matou-os todos?
—Não, não. Salvei-os de torturas indizíveis. Você não conhece os chineses. Eles são terríveis. A coluna de socorro foi detida. Não pode chegar aqui. Íamos cair em poder dos chineses e...
Suas palavras foram interrompidas por uma nutrida fuzilaria que irrompeu, de súbito, à pequena distância.
—Aí vêm eles — gemeu o professor. — Minha pobre Jessie... Depressa! Você ainda pode escapar aos tormentos dos boxers. Coma uma colher de caviar.
Mas agora, lá fora, junto com o crepitar dos fuzis, ouviam-se aclamações em inglês, gritos de vozes europeias.
O professor apurou o ouvido, atônito. Estaria louco? Mas não estava. Agora distinguia nitidamente as vozes de comando. A coluna de socorro chegara. Estava ali.
— O que eu fiz, santo Deus!  O que eu fiz?
Foi o próprio comodoro Wyndham, depois de seu desesperado e bem-sucedido ataque noturno, o primeiro a irromper naquela terrível sala de jantar. Um grupo de convivas estava alinhado, pálido e silencioso, em volta da mesa. Uma jovem mulher gemia e agitava-se debilmente, e não havia outro sinal de vida na sala. Todavia, naquele tétrico ambiente, alguém ainda concentrava suficiente energia para cumprir um dever supremo. Paralisado de pavor, no umbral da porta, o comodoro viu erigir-se lentamente, por sobre a mesa, uma cabeça grisalha, e a longa figura do professor apareceu, cambaleante.
— Cuidado com o caviar... Não toque no caviar... — murmurou.
Então, o velho homem foi ao chão, fechando consigo aquele círculo de morte.

Tradução de autor desconhecido.
Fonte: “Eu sei tudo”, edição de março de 1928.



[1] Doyle refere-se a um levante popular, de caráter antiocidental e anticristão, ocorrido na China entre 1889 e 1900. 
[2] Interjeição alemã de espanto ou admiração, correspondente, em português, a “Meus Deus!” ou “Nossa!”.
[3] Vinho branco, produzido nas proximidades do Monte Vesúvio, Campânia, Itália.
[4] Referência a armas então modernas e eficientes, tais como pistolas de repetição, rifles e metralhadoras criadas pelos irmãos alemães Paul e Wilhelm Mauser e pelo inglês de origem norte-americana Hiram Maxim.
[5] Certamente, o professor descobrira uma nova espécie de inseto que ganhou o seu nome. 
[6] Meu Deus!
[7] Locução Interjetiva alemã que exprime aplauso ou aclamação. 
[8] Tradicional canção britânica, de origem escocesa, típica de Ano Novo. Recebeu, no Brasil, em 1941, uma versão de Alberto Ribeiro e Braguinha, “A valsa da despedida”, que assim começa: “Adeus, amor/Eu vou partir/Ouço ao longe um clarim...”.


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