O POTE DE CAVIAR - Conto Clássico de Horror - Arthur Conan Doyle
O POTE DE CAVIAR
Arthur Conan Doyle
(1859 – 1930)
Fazia quatro dias que
eles estavam ali, assediados. Munições e provisões estavam prestes a terminar.
Quando a insurreição
dos boxers[1] surgira como
um incêndio implacável, invadindo todo o Norte da China, os poucos europeus
espalhados por aquelas províncias tinham se refugiado no primeiro posto em que
podiam oferecer alguma defesa e defendiam-se corajosamente, enquanto esperavam
socorros, que talvez não viessem nunca. Nessa última hipótese, melhor seria não
falar no destino que os esperava. Se os socorros viessem, os homens e mulheres,
que ali se achavam, poderiam dizer que haviam visto, de perto e de frente, uma
morte que, nem em sonhos, é possível imaginar.
Ichau era uma
localidade situada a cinquenta milhas do litoral, onde uma esquadra europeia cruzava
o golfo de Liang Tung. Assim, a pequena guarnição — compostas de cristãos
nativos e operários da estrada de ferro, sob as ordens de um oficial alemão —
sustentava valentemente o embate, convencida de que, das pequenas colinas do
oriente, não tardariam a surgir reforços. Do alto dessas colinas,
avistava-se, ao longe, o mar, o oceano imenso onde seus compatriotas iam e
vinham livremente.
Postados por trás das
seteiras, abrigados pelas muralhas vacilantes de tijolos, que limitavam o
pequeno bairro europeu da cidade, esses bravos tiroteavam com ardor, senão com
eficácia, contra as linhas de boxers, cujas trincheiras de pedras
dia a dia se tornavam mais profundas. Dentro de um dia ou dois, os assediados
teriam esgotado seus recursos, a menos que nesse prazo tivessem sido socorridos
e libertados. Todos estavam convencidos de que os socorros chegariam mais cedo
ou mais tarde... Era, porém, impossível determinar em que momento chegariam, e
o retardo de algumas horas poderia ter consequências terríveis.
Em todo caso, até a
noite de quinta-feira, ninguém teve, ali, uma palavra de desânimo.
Na quarta-feira,
porém, a fé robusta dos defensores do frágil reduto enfraqueceu um pouco. As
encostas das colinas, que todos fitavam com tão angustiosa ansiedade,
mantinham-se desoladas e mudas, ao passo que as linhas de ataque dos fanáticos
apareciam cada vez mais próximas: tão próximas que já se distinguiam com os
menores detalhes os horríveis rostos que, por cima do parapeito de pedra,
vomitavam imprecações e brados de ódio.
Esses gritos tinham
diminuído um pouco depois que o jovem Ainslie, do serviço diplomático, com sua
pequena carabina de caça calibre 303, instalado no campanário da igreja,
passava dias abatendo os assaltantes como cachimbos nos stands de
feiras. Mas, silenciosas, as trincheiras de boxers eram ainda
mais impressionantes. E, hora a hora, com regularidade implacável, as
trincheiras se aproximavam. Em pouco tempo, seria bastante um salto para que os
atacantes viessem desses abrigos ao refúgio da colônia europeia.
Essa era a situação
na tarde de quarta-feira. O coronel Dresler, da infantaria alemã, continuava a
apresentar uma fisionomia impassível, mas a fixidez de seu olhar revelava os
transes de seu coração. Ralston, o engenheiro da estrada de ferro, passava
horas inteiras escrevendo cartas. O professor Mercer, o velho entomologista,
fechava-se cada vez mais em sombrio silêncio. O próprio Ainsle perdera um pouco
de sua serenidade. Em suma, as senhoras — Mrs. Paterson, sua filha, a linda
Miss Mary e Miss Sinclair, a enfermeira da missão escocesa — eram as que
conservavam maior quietude. O padre Pierre, da missão francesa, guardava também
todo o seu sangue frio, como homem habituado a considerar o martírio como uma
glória.
Os boxers —
que, do outro lado das trincheiras, reclamavam avidamente o seu sangue —
perturbavam-no menos que a necessidade de viver em comum com o pastor da igreja
evangélica, o senhor Peterson, com o qual, há dez anos, disputava as almas dos
nativos. Quando se cruzavam nos corredores, eram como se um cão e um gato de
encontrassem. E os dois se vigiavam ciosamente, cada qual temendo que o outro,
tratando dos feridos, ciciasse a seus ouvidos uma heresia.
A noite de
quarta-feira passou sem um incidente. Na quinta, o horizonte clareou novamente.
Foi Ainslie quem, do alto da torre, antes de todos, percebeu o rugir do canhão
ao longe. Depois, foi Dresler quem o ouviu. Ao fim de um instante, o som foi
bastante nítido para que todos escutassem a forte voz de bronze que lhes
lançava um apelo de esperança. Portanto, as companhias de desembarque estavam
em marcha.
Sim. Mas quando elas
chegariam? Decerto, só ao fim de muitas horas e, como as munições no reduto
estavam quase esgotadas, e as rações de víveres estavam reduzidas ao mínimo,
não havia razão para grande alegria. Mas, a despeito de tudo, a certeza de que
iam ser socorridos espalhou entre os refugiados um júbilo irreprimível. Por
outro lado, parecia certo que os boxers não lançariam o ataque
decisivo nesse dia, pois, ao contrário, corriam em massa na direção do
longínquo disparo de canhões, e suas longas trincheiras se mantinham
silenciosas e desertas. Por isso, a mesa do almoço foi uma assembleia jovial e
loquaz, transbordante da alegria de viver, que irrompia mais poderosa sob a
sombra da morte.
—O pote de caviar —
bradou de súbito Ainslie. — Vamos, professor, abra o pote de caviar.
—Potztausend,[2] sim! — resmungou o velho Diesler. — É tempo de provar esse famoso caviar.
As senhoras
concordaram com entusiasmo. De todos os pontos da mesa, reclamava-se o caviar.
A hora não parecia
adequada a uma exigência dessa natureza, mas tinha uma razão de ser. O
professor Mercer, o velho entomologista californiano, recebera, dois ou três
dias antes de rebentar a insurreição, um pote de caviar, que um amigo lhe
enviara de São Francisco. Quando, uma vez sitiados, resolveram dividir os
víveres em rações, tinham excetuado o caviar e três garrafas de Lacryma
Christi[3]. Por acordo geral,
puseram essas preciosidades à parte, para festejar o dia em que vissem
terminado o perigo. O ruído do canhão salvador continuava a chegar a seus
ouvidos e esse som, acompanhando seu almoço, parecia-lhes a mais doce das
músicas. Então, por que não ornar o pão duro e o talharim mofado com as
delícias do caviar?
Mas o professor
sacudiu a cabeça calva e respondeu com um sorriso impenetrável:
—Acho melhor esperar
mais um pouco.
Todos protestaram:
—Esperar o quê?
—Os socorros ainda
terão que caminhar muito antes de chegar aqui.
—Devem estar aqui
mais ou menos à hora do jantar — disse o engenheiro, que era um homem seco, com
nariz de pássaro e olhos brilhantes. — Não podem estar, agora, a mais de dez
milhas. Ainda que façam apenas uma milha por hora, devem estar aqui às sete
horas da noite.
—Perdão! — atalhou o
coronel. — Pela persistência do canhoneio, trava-se uma batalha no caminho...
Convém dar uma hora ou duas para a batalha...
—Qual duas horas! —
exclamou Ainslie, com o ímpeto natural da mocidade. — Nem meia hora! Um
destacamento militar passará através dessa canalha como faca por manteiga. Que
resistência podem opor às armas modernas esses macacos armados com mosquetes de
pavio e sabres velhos?
—Tudo depende do
comandante da coluna — opinou Dresler. — Se, por felicidade, for um oficial
alemão...
—Aposto dez libras
como é um inglês — bradou Ralston.
—O comandante francês
tem reputação de ser um mestre em tática — observou Pierre.
—Isso não tem a menor
importância — declarou Ainslie. — Os verdadeiros comandantes da coluna são os
senhores Mauser e Maxim[4]
Com eles, diante de tais adversários, qualquer comandante é um Napoleão, capaz
de ganhar todas as batalhas. Professor, vamos ao caviar!
Mas, como o velho
professor não se deixava convencer, o Sr. Patherson observou, com seu sotaque
escocês, lento e nítido:
—Afinal de contas,
seria uma falta de cortesia para com os oficiais, nossos libertadores, não lhes
oferecer uma refeição decente. Estou de acordo com o professor: guardemos o
caviar para o jantar.
O argumento despertou
em todos o sentimento da hospitalidade. Havia, de fato, um quê de cavalheiresco
na ideia de reservar esse alimento melhor para os libertadores... Não mais se
falou no caviar.
—A propósito,
professor... — continuou Mr. Patherson —, ouvi dizer, há pouco, que esta já é a
segunda vez que o senhor conhece os horrores de um assédio. Conte-nos isso.
O rosto do ancião
tornou-se ainda mais sombrio.
—Foi em 1882 — disse
ele. — Em Sung Tung, no Sul da China.
—Duas vezes! —
exclamou o missionário. — É uma coincidência singular. E como foram socorridos?
—Não fomos
socorridos.
—Como? Então o lugar
em que estavam caiu em poder dos chineses?
—Caiu.
—E o senhor não foi
assassinado?
—É que, além de
entomologista, eu sou médico. Eles tinham feridos, precisavam de mim...
Pouparam-me por isso.
—E os outros?
—Oh, não diga... Não
conte coisa alguma! — exclamou o padre que, vivendo na China há mais de vinte
anos, imaginava os horrores então ocorridos.
O professor
calara-se, mas atrás da tristeza de seus olhos adivinhava-se uma visão de
intenso pavor. As senhoras ficaram pálidas.
—Eu nem devia ter-lhe
feito esta pergunta — murmurou o missionário. — Há coisas em que não se deve
falar. Mas eu creio que o ruído do canhão está se aproximando.
Sobre esse ponto, não
podia haver a menor dúvida. Após uma breve interrupção, o ribombar havia
recomeçado e, agora, ouvia-se o som grave do canhão, acompanhado do tamborilar
mais leve da fuzilaria. Esse ruído parecia vir da vertente oposta da primeira
colina.
Enquanto uns
desguarneciam a mesa, outros correram às muralhas. Apenas o professor se deixou
ficar no mesmo lugar, imóvel, com a cabeça curvada para as mãos nodosas,
conservando no olhar a mesma impressão de profundo horror.
Há fantasmas que
dormem em nossa memória durante anos; mas, uma vez despertados, nada é mais
difícil do que exorcizá-los. O canhoneio cessara; mas o sábio nem dava por
isso, perdido numa evocação única, terrível e suprema de sua vida.
Foi o coronel quem
veio arrancá-lo desse cruel devaneio. Um sorriso radiante dilatava sua larga
face germânica.
—O Kaiser vai
ficar contente — disse ele, esfregando fortemente as mãos. — Certamente serei
condecorado e parece-me que já estou vendo as notícias dos jornais de Berlim:
“Defesa de Ichau, contra os boxers, pelo coronel Dresler, antigo
major do 144º regimento de infantaria. Magnífica resistência de uma pequena
guarnição contra toda a esperança de êxito”.
—Então, acredita que
estamos salvos? — perguntou o professor, sem emoção alguma na voz.
O coronel sorriu de
novo.
—Sabe, professor —
disse ele —, achei-o mais agitado hoje do que no dia em que trouxe de volta, em
sua caixa de coleta, o Lepidus mercerensis[5].
—Julgava-o seguro na
minha caixa — respondeu o entomologista. — Tenho passado por poucos transes em
minha existência, mas um foi tão grave que não me alegro nem me entristeço
mais, senão com ciência certa. Diga-me francamente o que há.
—Ora! — exclamou o
coronel, acendendo o seu cachimbo e estendendo as pernas sobre outra cadeira. —
Juro-lhe pelos meus galões que tudo vai muito bem. Os nossos estão fazendo
progressos rápidos: a cessação do fogo indica que a resistência por parte dos
chineses cessou. Portanto, não tardaremos a ver o destacamento surgir do alto
de uma dessas colinas. Ainslie está no alto da torre da igreja e, logo que os
avistar, dará o sinal, disparando três tiros. Faremos então uma surtida para
nossa satisfação pessoal.
—Então... o senhor
está esperando o sinal?
—Claro! E vim
fazer-lhe companhia, mesmo porque eu queria lhe pedir uma coisa.
—O que é?
—O senhor disse há
pouco que foi uma das vítimas do assédio de Sung Tung... Do ponto de vista
profissional, isso me interessa muito. Agora que não há mais civis aqui, nem
senhoras, pode falar à vontade.
—O assunto nada tem
de agradável.
—De acordo. Deve ter sido
um drama horrendo. Exatamente porque o imagino, viu o senhor com que energia
tenho cá mantido a defesa. Não a achou digna das tradições do exército alemão?
A outra praça talvez não tivesse sido bem defendida.
—Não... Não... Fez-se
tudo o que era possível fazer... Menos uma coisa.
—Ah, houve uma
omissão? Qual?
—Ninguém devia ter
caído vivo nas mãos dos chineses — disse o sábio, com voz surda.
O coronel estendeu
sua larga mão ao professor.
—Apoiado!
Apoiadíssimo! Também já pensei nisso, aqui. E, por mim, estou garantido.
Garanto que não me deitarão a mão sem me matar primeiramente... Hei de morrer
lutando. O mesmo acontecerá com Ralston e com Ainslie. Isso já está combinado
entre nós. Quanto aos outros... Não me atrevi a lhes falar sobre esse ponto. O
senhor compreende... O padre católico, o missionário escocês, as senhoras...
—Mas deixar que sejam
aprisionados vivos seria uma monstruosidade!
—Que quer? Não
acredito que aceitem meios para se livrar desse horror. Nenhum deles é capaz de
atentar contra a própria vida. Questão de consciência. De resto, considero o
perigo conjurado... Mas, enfim, em meu lugar, o que faria?
—Eu não hesitaria.
Antes matá-los do que permitir que sejam torturados com ferocidade indizível.
Eu vi o que se passou em Sung Tung.
—Mein Gott![6] Assassinar essa
pobre gente...
—Eu não hesitaria —
repetiu o velho sábio, com energia terrível. — Eu sei o que os espera. A morte
é mil vezes preferível. No meio de assistir àqueles tormentos ignóbeis,
alucinantes, o que mais me desesperava era a ideia de que, com meia dúzia de
pastilhas inodoras e sem sabor, eu poderia ter poupado aqueles desgraçados dos
sofrimentos indizíveis em que levaram mais de vinte horas para morrer. E o
senhor acha que matá-los, justamente para lhes evitar tamanhos horrores, seria
assassinato? Eu estou pronto a comparecer perante todos os tribunais divinos e
humanos para responder por mil assassinatos semelhantes. Se eu, então, soubesse
o que se ia passar, não teria hesitado e não guardaria o remorso de ter sido
covarde.
O coronel ergueu-se
e, de novo, apertou a mão do professor.
—O senhor fala com
admirável bom senso — disse ele. — Vejo que se os acontecimentos tomassem outro
rumo, eu encontraria no senhor um auxiliar resoluto e bravo. Mas, espere —
atalhou ele, de súbito, erguendo-se —, o sinal de Ainslie está demorando. Vou
ver o que há.
O velho entomologista
ficou de novo sozinho com os seus pensamentos. Ao fim de alguns minutos, como o
som do canhão não voltasse a se fazer ouvir, nem Ainslie desse o sinal, ele se
ergueu para ir também se informar. Mas não teve tempo para isso. A porta se
abriu e o coronel reapareceu, pálido como um espectro e arquejante de haver
corrido. Havia um frasco de brandy sobre o bufê. O alemão
encheu um copo, bebeu, depois deixou-se cair sobre uma cadeira.
—Então? — perguntou o
professor.
—Eles não podem
chegar aqui.
Seguiu-se um silencio
que durou mais de um minuto. Os dois homens se olhavam como se hipnotizados por
uma ideia fixa.
—E... os outros
sabem? — perguntou, afinal, o sábio.
—Não.
—E o senhor, como
soube?
—Eu estava junto da
mina, em nossa trincheira avançada. Vi um vulto entre as ervas. Ergui um lenço
na ponta do sabre. O vulto adiantou-se rapidamente. Era um tártaro cristão,
mortalmente ferido. Vinha enviado pelo comodoro Wyndham, que comanda a expedição
de socorro. A coluna está detida ante forças muito superiores e, por falta de
munição, teve de se entrincheirar à espera de reforços dos navios. Esses
reforços podem demorar três dias.
Os supercílios bastos
e crespos do professor eriçaram-se ainda mais.
—Onde está esse
tártaro? Quero interrogá-lo.
—Mal teve forças para
me dizer isso e morreu. Deixei o seu corpo lá mesmo na trincheira.
—Ninguém o viu, a não
ser o senhor?
—Eu e a sentinela
desse posto... Isto é, creio que também Ainslie, do alto da torre, deve tê-lo
visto. Portanto, deve saber que ele falou comigo antes de morrer; há de querer
saber que notícias ele me trouxe... E se eu disser, terei que dizer igualmente
aos outros.
—Quanto tempo ainda
poderemos resistir?
—Duas ou três horas,
no máximo. Estamos nas últimas.
—Estamos perdidos?
O coronel abriu os
braços num gesto de profunda desolação e repetiu:
—Perdidos.
—Não haverá ainda uma
esperança?
O coronel hesitou um
instante, com os olhos dilatados pela angústia, depois sacudiu a cabeça,
acabrunhado.
—Por minha honra de
soldado, não acredito.
Mas a porta se abriu
de novo e o jovem Ainslie precipitou-se na sala. Atrás dele vinham
Ralston, Patterson e todos os brancos e nativos cristãos.
—Que notícias há
coronel? Que lhe disse aquele homem?
O professor Mecer
antecipou o militar, dizendo com volubilidade:
—Era o que ele estava
me explicando. Vai tudo bem. A coluna teve de fazer alto, mas deve chegar aqui
amanhã pela madrugada. Portanto, o perigo está conjurado.
Houve um grupo de
exclamações entusiásticas. Todos riam, apertavam-se as mãos.
—Mas, e se formos
atacados antes do romper do dia? — exclamou o impetuoso Ralston. — Por que
demônio a coluna não continua a marcha até aqui?
—Qual! — disse o
coronel. — Eles não se atreverão mais a nos atacar... Em todo caso... Voltem
para os seus postos. Não devemos descuidar a vigilância.
E deixou a sala,
acompanhados por todos. Mas, ao sair, lançou ao professor um olhar que
significava claramente: “Deixo a sorte desses infelizes em suas mãos”. E o
professor respondeu-lhe com um triste sorriso.
A tarde inteira se
passou sem que os boxers atacassem. Para o coronel Dresler
essa inação pouco habitual significava que estavam se concentrando para o
assalto definitivo. O resto dos assediados, ao contrário, acreditava que a luta
estava terminada e que o inimigo estava reduzido à impotência. Por isso, à hora
do jantar, todos se reuniram alegremente em torno da mesa. Abriram as garrafas
de Lacryma Christi e o famoso pote de caviar. Todos receberam
uma boa porção dessa iguaria. O professor colocou em seu prato uma colher bem
cheia. O coronel, que o observava atentamente, imitou-o. As senhoras comeram à
vontade. Somente uma pessoa não a aceitou: Miss Jessie Patterson, que não
suportava o gosto picante e salgado do caviar. A despeito da amável insistência
do sábio, recusou provar sequer uma colherinha.
—Oh, minha cara
senhorita! O meu pequeno mimo, um petisco tão raro, não tem a sorte de
agradá-la! Fico desapontado, pois lhe reservara a iguaria na esperança de que
lhe seria agradável. Coma ao menos um pouco.
—Confesso-lhe que não
gosto de caviar. Talvez, com o tempo, venha a apreciar.
—É porque não está
acostumada. Teime, que acabará gostando. Por que não educar o seu gosto agora?
O rosto radiante de
Jessie Patterson iluminou-se com o seu sorriso ensolarado e infantil.
—Oh, que
propagandista de caviar está nos saindo o senhor! Embora não coma do seu
caviar, nem por isso fico menos agradecida.
—Chega a me dar pena
ver uma pessoa não aproveitar uma coisa tão boa... Logo hoje! — redarguiu o
sábio com uma vivacidade que fez desaparecer o sorriso do lindo rosto da
escocesa.
—Hoje? Por que hoje?
—Porque, numa
situação destas, um prato destes é um raro primor.
—Pois se minha filha
não quer, eu quero — atalhou bruscamente Mrs. Patterson. E, com um gesto rápido
de sua faca, passou o caviar do prato da moça para o seu.
Mas o professor não
parecia satisfeito. A perturbação de seu rosto era a de um homem que se
encontra, de súbito, ante um obstáculo insuperável. Ele olhava para um lado e
para o outro como quem procura, em vão, uma saída.
Entretanto, em torno
dele todos conversavam animadamente, fazendo planos a executar após a
libertação.
—Não, não! Não há
férias para mim — dizia o padre Pierre. — Nós, os sacerdotes, jamais tiramos
férias. Agora que temos de pé a escola e a missão, vou entregá-las aos cuidados
do padre Amiel, e rumar ao Oeste para criar outras tantas.
—Então, o senhor irá
partir? — disse Mr. Patterson, com ar de espanto. — Então, está dizendo que irá
deixar Ichau?
O padre Pierre balançou
a venerável cabeça, com ar de reprovação:
—O senhor não deve
ficar tão satisfeito, Mr. Patterson.
—Bem, as nossas
opiniões são bem diferentes — disse o presbiteriano —, mas não tenho qualquer
sentimento pessoal contra o senhor, padre Pierre. Aliás, como é que um homem
razoável e instruído, nesse momento da história do mundo, pode ensinar esses
pobres pagãos que...
Um burburinho geral
de protesto fez o pastor silenciar sua teologia.
—O que o senhor vai
fazer, Mr. Patterson? — alguém perguntou.
—Eu — respondeu Mr.
Patterson — vou passar três meses em Edimburgo para assistir à assembleia
evangélica anual. Mary é quem mais vai gostar. Passar três meses numa
verdadeira cidade, onde há lojas de modistas. E Jessie manterá contato com
pessoas de sua idade. Voltaremos no outono com os nervos mais descansados.
—Disso é que estamos
todos necessitados — disse Miss Siclair, a enfermeira. — Esses sustos matam uma
pessoa. Eu, por mim, confesso que não estou me sentindo bem. Estou sentindo um
zumbido nos ouvidos.
—É curioso — observou
Ainslie —, eu também. Um zumbido forte! Deve ser a tensão nervosa. Tomara
já ver isto acabado. Passo por Pequim como gato por brasas só para me
apresentar ao ministro norte-americano e... tocar para Nova York. E o senhor,
Ralston?
—Não sei ainda o que
farei. Em todo caso, vou gozar uma licença e levarei à minha família uma carta,
que escrevi ontem, quando julguei tudo perdido.
—Tem razão, deve
guardar esta carta — disse o coronel Dresler.
O tom de sua voz era
tão solene e profundo que todos se voltaram para ele.
—O que é que tem
coronel? Parece-me triste — observou Ainslie.
—Não... Estou muito
contente.
—Ora, ainda bem!
Ficar triste é o cúmulo! A propósito, julgo oportuna a ocasião para apresentar,
em nome de todos nós, os agradecimentos mais sinceros pela maneira brilhante
como o senhor, coronel, dirigiu a nossa defesa. Meus senhores e minhas
senhoras, proponho-lhes que bebamos à saúde do coronel Dresler, do imperial
exército alemão. Er soll leben... hoch![7]
Todos se levantaram
de copo em punho, sorridentes. O coronel corou de orgulho profissional.
—Sempre mantive os
meus livros comigo — disse o coronel. — Não me esqueci de nada e não
creio que pudesse fazer mais do que foi feito. Se as coisas tivessem
transcorrido mal, e tivéssemos caído nas mãos do inimigo, os senhores decerto
me teriam isentado de toda culpa ou responsabilidade.
E, melancolicamente,
olhou em torno de si.
—Traduzo o sentimento
de todos presentes, Coronel Dresler... Mas, esperem! — exclamou Mr. Pattherson,
de súbito. — Parece que o senhor Ralston está sentindo alguma coisa.
Todos se aproximaram
de Ralston que, com a cabeça pousada sobre os braços cruzados, na toalha,
parecia dormir tranquilamente.
—Não é nada — disse
vivamente o professor Mercer, apalpando a fronte e os pulsos do inglês. — Ele
está simplesmente adormecido. É uma reação natural, depois de uma tão grave
crise.
—Eu também estou com
um sono quase invencível — balbuciou Mrs. Patterson. E, encostando-se na
cadeira, fechou os olhos.
—Que coisa singular!
— exclamou Mr. Patterson, rindo. — É a primeira vez que vejo minha mulher
adormecer assim de repente, em cima do jantar. O que dirá de si mesma, quando
contarmos a ela? E o mais extraordinário é que eu também estou
cabeceando.
Ainslie mantinha um
estado de espírito de excitação e loquacidade. Ele estava novamente de pé, com
um copo na mão.
—Creio que deveríamos
beber todos juntos e cantar Auld Lang Syne[8] — disse ele,
sorrindo para os convivas. Por uma semana remamos, todos juntos, o mesmo barco
e tivemos que conhecer um ao outro de uma forma que nunca é feita nos
tranquilos dias de paz. Aprendemos a gostar um do outro; e, cada um de nós, a
apreciar a nação do outro. Aqui, temos o coronel a representar a Alemanha; o
padre Pierre, a França; o professor, a América; eu e Ralston, a Grã-Bretanha. E
temos também as senhoras, que Deus as abençoe! Nelas, encontramos anjos de
misericórdia e compaixão ao longo de todo o cerco. Assim, devíamos beber à
saúde delas! Coisa maravilhosa! Elas são exemplo de tranquila coragem, de
paciência, de... Como direi? De fortaleza. De... Por Deus, olhem para o
coronel. Também dormiu! Que sonolência mais infernal!
Seu copo caiu sobre a
mesa e ele, murmurando e murmurando, tombou para trás, afundando na cadeira.
Miss Sinclair, a pálida
enfermeira, também dormia. Estava deitada, como um lírio roto, no braço da
cadeira.
Mr. Patterson olhou
ao redor e levantou-se. Passou a mão sobre a fronte com ar alucinado.
—Céus! — bradou.
—Isto não é natural. Jessie — continuou ele, voltando-se para a filha —,
por que todos estão dormindo? Olhe! O padre Pierre também está dormindo... Sua
mãe está fria. É a morte! Que sono é este? Abra as janelas. Socorro! Socorro!
Socorro!
Deu dois ou três
passos em direção às janelas. A meio caminho, sentiu-se dominado pela vertigem
e dobrou os joelhos. Tentou, ainda, apoiar-se nas mãos, mas acabou
estendendo-se a fio comprido.
A jovem também se
levantou. Olhou em torno de si. Com os olhos horrorizados, viu o pai estendido
e os convivas desfalecidos, absolutamente mudos.
—Professor Mercer!
Socorro! O que é isto? É de se jurar que estão todos mortos. Meu pai! Que
horror!
O velho pôs-se de pé
com visível esforço e murmurou:
—Minha filha, nós
queríamos poupar-lhe esta provação... Se me tivesse ouvido, não teria sofrido
nem física nem moralmente. Eu pus cianureto no caviar...
—Meu Deus!
Num sobressalto, a
moça recuou, com as pupilas dilatadas.
—Monstro! Monstro! O
senhor matou-os todos?
—Não, não. Salvei-os
de torturas indizíveis. Você não conhece os chineses. Eles são terríveis. A
coluna de socorro foi detida. Não pode chegar aqui. Íamos cair em poder dos
chineses e...
Suas palavras foram
interrompidas por uma nutrida fuzilaria que irrompeu, de súbito, à pequena
distância.
—Aí vêm eles — gemeu
o professor. — Minha pobre Jessie... Depressa! Você ainda pode escapar aos
tormentos dos boxers. Coma uma colher de caviar.
Mas agora, lá fora,
junto com o crepitar dos fuzis, ouviam-se aclamações em inglês, gritos de vozes
europeias.
O professor apurou o
ouvido, atônito. Estaria louco? Mas não estava. Agora distinguia nitidamente as
vozes de comando. A coluna de socorro chegara. Estava ali.
— O que eu fiz, santo
Deus! O que eu fiz?
Foi o próprio
comodoro Wyndham, depois de seu desesperado e bem-sucedido ataque noturno, o
primeiro a irromper naquela terrível sala de jantar. Um grupo de convivas
estava alinhado, pálido e silencioso, em volta da mesa. Uma jovem mulher gemia
e agitava-se debilmente, e não havia outro sinal de vida na sala. Todavia,
naquele tétrico ambiente, alguém ainda concentrava suficiente energia para
cumprir um dever supremo. Paralisado de pavor, no umbral da porta, o comodoro
viu erigir-se lentamente, por sobre a mesa, uma cabeça grisalha, e a longa
figura do professor apareceu, cambaleante.
— Cuidado com o caviar...
Não toque no caviar... — murmurou.
Então, o velho homem
foi ao chão, fechando consigo aquele círculo de morte.
Tradução de autor desconhecido.
Fonte: “Eu sei tudo”,
edição de março de 1928.
[1] Doyle refere-se a um
levante popular, de caráter antiocidental e anticristão, ocorrido na China
entre 1889 e 1900.
[2] Interjeição alemã de espanto ou admiração,
correspondente, em português, a “Meus Deus!” ou “Nossa!”.
[4] Referência a armas então modernas e eficientes,
tais como pistolas de repetição, rifles e metralhadoras criadas pelos irmãos
alemães Paul e Wilhelm Mauser e pelo inglês de origem norte-americana Hiram
Maxim.
[6] Meu Deus!
[8] Tradicional canção britânica, de origem escocesa,
típica de Ano Novo. Recebeu, no Brasil, em 1941, uma versão de Alberto Ribeiro
e Braguinha, “A valsa da despedida”, que assim começa: “Adeus, amor/Eu vou
partir/Ouço ao longe um clarim...”.
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